por Amanda Beatriz
Era uma vez uma menina. Era uma vez uma menina negra. Era uma vez uma menina negra que queria ter cabelo amarelo “cor de biscoito Fandangos”. Até que um dia esta garotinha ganhou de presente uma boneca negra. E, então, naquele momento, aconteceu uma verdadeira epifania!
Era uma vez uma menina. Era uma vez uma menina negra. Era uma vez uma menina negra que queria ter cabelo amarelo “cor de biscoito Fandangos”. Até que um dia esta garotinha ganhou de presente uma boneca negra. E, então, naquele momento, aconteceu uma verdadeira epifania!
A criança da nossa história se viu projetada em sua boneca. Ao contemplar o gracioso bebê negrx de vestido lilás claro, aquela criança se entendeu negra pela primeira vez. Conseguiu enxergar-se bela através da imagem refletida pela bonequinha! Mais ainda, inconscientemente, aquela garotinha notou que suas características físicas eram bonitas e merecedoras de serem copiadas.
Não preciso dizer que a ideia do cabelo “amarelo” foi sumariamente descartada!
De lá pra cá, nunca mais senti necessidade de ter cabelos loiros. Não porque – em si – pintá-lo seja algo bom ou mau. Nada disso. O fato é que a vontade de ter o cabelo na cor “de biscoito Fandangos” – era assim que eu falava quando era criança – se dissipou na medida em que descobri, com a ajuda daquela boneca, a beleza existente na cor do meu próprio cabelo.
Foi aí que comecei a descobrir as nuances castanhas da minha cabeleira. Meus olhos se abriram para a textura gostosa e macia dos meus fios. Aprendi a admirar a “cor-de-bombom” da minha pele! Por meio dos olhos da bonequinha, pude visualizar como o formato dos meus olhos café é ricamente amendoado… Não senti mais, desde então, o desejo de usar lente de contato verde.
Meus lábios eram como o da boneca. Ina tinha os lábios grossos assim como os meus. E eram bonitos! Ah, se eram! Como aqueles lábios salientes abrilhantavam minha graciosa filhinha! Notei que não precisava ter lábios que não eram meus. Os lábios “finos” das atrizes globais deixaram de ser meu objeto de desejo.
E o nariz… O que falar dele! Confesso que o meu nunca foi um problema para mim, pois sempre ouvia “elogios” do tipo: “Olha só como ela tem os traços finos!”, “Que nariz mais formoso e delicado”, “Seu nariz é tão bonito que nem parece com o de preto”… E, de fato, durante um tempo, eu me defini como a “mulata de nariz fino e de traços delicados”. Afinal de contas, era esse o modo o qual as pessoas se referendavam a mim.
E, outra vez, ei-la! Eis que surge, de novo, a bendita boneca!
Quando a menina de tranças observou atentamente a criancinha em miniatura que estava em seu colo, de imediato, tratou de analisar aquele nariz com olhar de descrédito e desconfiança… Ele – o nariz – era tão diferente do “fino e delicado”. Tenho que admitir, cara leitorx, que a primeira impressão foi bastante negativa.
Entretanto, à medida que eu brincava com a Ina – e desde que fui presenteada, só queria brincar com ela! – o nariz, aos poucos, foi me parecendo mais agradável, simpático… bonito! Eu pensava com meus botões: “O nariz da Ina fica tão bem nela”. “A Ina é tão linda”. “Que curioso: é bonita e não tem o meu nariz”. “E eu aqui, achando que só as meninas de nariz ‘fino’ e ‘delicado’ eram belas”. Em meu íntimo se operava uma mudança de ponto de vista, cada vez que admirava minha bonequinha preta, pois, lá dentro, eu começava a entender o quanto sua própria beleza fazia com que tudo naquele corpo se harmonizasse certinho!
A boneca era “negramente” linda! Ela era como eu: negra de olhos café-amendoado, pele “bombom”, lábio grosso, cabelo crespo e, ainda por cima, era coroada com aquele nariz! Ela tinha o nariz que me ensinaram, desde cedo, a considerá-lo feio… Para minha surpresa, eu a descobri inusitadamente bonita! Graças à Ina, minha boneca, um novo olhar acerca de mim, enquanto menina negra, se descortinou diante dos meus olhos.
Finalmente estava apta a reconhecer o valor único de beleza, contido em si mesmo e inerente a meus atributos físicos. Na medida em que brincava diariamente com aquela réplica de criança negra moldada em vinil, minhas características étnicas ganhavam forças. Aos poucos, a negritude foi deixando de ser “objeto sujeito à mensuração de padrões externos” e migrou para a condição de beleza referencial. Foi assim que se iniciou, em minha pessoa, o complexo e não linear processo de construção da autoimagem negra. Minha bagagem existencial começava a assumir contornos de padrão estético com vida própria!
O marco fundador da reflexão política? Não tenho dúvidas de que foi o contato contínuo e reiterado com esta boneca em minhas brincadeiras.
Entender o significado político de uma boneca negra é perceber que o ato de presenteá-la a uma criança negra vai além de se ofertar um mero brinquedo. Quando os pais ou os responsáveis presenteiam a criança com a boneca que reproduz suas características físicas – sistematicamente desprestigiadas e reputadas feias pela sociedade – estimula-se o desabrochar da elevação da autoestima desta criança. E muito mais, eu me atreveria ir além, a partir da conexão afetiva que a criança desenvolve com a boneca, se encoraja o olhar de reconhecimento da sua própria identidade. A pessoa não só aprende a se aceitar negra, mas também aprende a se sentir bem sendo negra.
Pense um pouco, cara leitorx. Se uma criança, um jovem, um adulto ou um idoso negro não se encanta pela sua cor de pele, não se afeiçoa a seu nariz, não aprecia a cor de seu cabelo e não consegue identificar beleza alguma em seus olhos… Significa dizer, em outras palavras, que esta pessoa não se sente confortável sendo aquilo que ela é.
Para além de pensarmos, ingenuamente, que este é um acontecimento absolutamente normal, é preciso refletir sobre o porquê uma beleza tão diferente da nossa é a mais atraente e adequada, a ponto de ser necessário reeditar a própria identidade. Enfatizo, contudo, que não há nada de errado em querer se enxergar da maneira a qual se entenda como sendo a mais agradável.
Entretanto, quando é necessário desconfigurar tudo o que se é – “apagando” as marcas de sua natureza – em prol de alcançar outra modelagem estética “mais desejável”; podemos concluir que isto já é um sinal indicativo de que algo precisa ser urgentemente reavaliado.
E a boneca auxilia neste processo de empoderamento. A boneca ajuda quando ainda se é criança.
Qual de nós nunca se sentiu instigada, desde menina, a ter que corresponder às expectativas de um padrão de beleza que não é o da sua etnia? Conforme já foi dito: cor da pele, tipo de cabelo, espessura dos lábios, tipo de nariz e por aí vai… Nesse contexto é que boneca desponta como veículo didático e não verbal para comunicar a criança negra várias informações tais como:
- Você é negro;
- Sua compleição física é bonita;
- Não há nada de inadequado e/ou inconveniente em ser negro;
- Ser negro é tão bonito quanto ser de outra etnia. Da mesma forma que pessoas com características físicas diferentes da nossa fabricam seus brinquedos de acordo com seus atributos estéticos; nós também produzimos bonecos negros que copiam nossa imagem e semelhança. Bonecos tão belos quanto o são os de qualquer outra raça;
- Se aceite. Se entenda lindo. Se enxergue bonito. Não há nada de errado em ser como você é.
A construção da autoestima negra é lenta e complexa. Não porque negros menosprezem sua autoimagem “gratuita e espontaneamente” ou porque tenham algum tipo de sentimento de inferioridade, mas sim, por existir toda uma construção social deletéria em torno da estética negra – esta, raramente é bela por si só e, em geral, é classificada como “exótica”, acessória, coadjuvante e de segunda categoria –.
Pois bem. Dito isso, é aí que a boneca negra – efetivamente – cumpre seu papel enquanto “instrumento político”.
Uma coisa que percebi assistindo vídeos no Youtube sobre o “Teste da Boneca” é que frequentemente diversas crianças até se identificam como negras quando a psicóloga lhes pergunta se a boneca que veem é parecida com elas. No entanto, me surpreendi no momento da segunda pergunta: quando indagadas se achavam bonita a boneca negra, a maioria replicou que era feia. Por outro lado, essas mesmas crianças, uma vez questionadas acerca da boneca branca, unanimemente, responderam que a achava bonita.
Em 2007, na Nigéria – país com mais crianças negras do que em qualquer outro lugar do mundo – Taofick Okoya se chocou ao descobrir que não havia disponível no mercado nenhuma boneca negra para dar de presente à sobrinha. Em um país com cerca de 170 milhões de habitantes, se constituindo a mais populosa nação africana, é absurdamente incoerente pensar que não haja bonecas dotadas de características étnicas com as quais suas crianças se identifiquem.
Pensando nisso, Okoya, em um gesto de coragem e de empreendedorismo, lançou no mercado a linha de bonecas negras “Rainhas da África”. A ideia de fabricar as bonecas se consolidou com mais afinco depois que sua filha pediu para “virar” branca. A partir daí, Okoya buscou a inspiração necessária para fazer com que a menina se tornasse confiante em sua cultura e se sentisse pertencente às suas raízes.
As Rainhas da África são personagens fictícios criados para contar a trajetória de princesas reais da História Africana. O grande diferencial das bonecas é que sua indumentária imita o modo de vestir recorrente na cultura do país. A origem das bonecas é facilmente identificada através das roupas e dos acessórios. A meta de Okoya é de lançar, futuramente, bonecas alusivas a outros grupos étnicos africanos.
De acordo com o site da empresa e sua fanpage no Facebook, produtos tais como: livros, quadrinhos, músicas e séries animadas também foram desenvolvidos. Tudo isso com a finalidade de propiciar o fortalecimento da identidade africana.
Vale ressaltar que tal como a Barbie, as Rainhas da África são esguias e magras. Além disso, a feição das bonecas não é totalmente compatível com a fenotipia negra. Segundo Okoya, suas primeiras modelagens eram mais encorpadas, porém não houve boa aceitação entre as crianças. Então, se decidiu padronizar o corpo das bonecas de acordo com o referencial esbelto. As Rainhas possuem o nariz, a boca e o cabelo à moda da beleza Ocidental, tal como a Barbie. O empreendedor explicou que pretende mudar este conceito, viabilizando a confecção de moldes mais sofisticados – delineados com características africanas de maior coerência com a etnia negra – tão logo que a marca tenha sua imagem mais consolidada no mercado. Por hora, só é possível ofertar as opções da linha atual. Ainda assim, considero ser um significativo avanço no empoderamento negro, se comparado ao cenário anterior, de total vazio da representatividade cultural preta.
Na Nigéria, a aceitação é enorme: as Rainhas ganharam o coração do público mirim e já desbancaram a boneca Barbie na preferência das meninxs nigerianxs.
Portanto, acredito ser de extrema importância para o resgate da autoestima da criança negra, o contato permanente com a boneca que reproduza – o tanto quanto possível – a compleição física de seu respectivo grupo étnico. Creio que este poderoso instrumento político é aliado estratégico que se traduz em ferramenta potencialmente fortalecedora no processo de construção do empoderamento negro. É fato que tal processo é percebido como lento e vagaroso. Entretanto, estou segura e convencida de que, no final, terá valido a pena!
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