Elas foram
guilhotinadas, conquistaram o direito ao voto, “queimaram” sutiãs,
protestaram contra as ditaduras e o
capitalismo, desafiaram as religiões, passaram a decidir sobre o momento de
serem mães, tomaram as universidades, criticaram a ciência, inventaram novas
teorias e campos de estudos, invadiram o mercado de trabalho, criaram leis para
se protegerem contra a violência e passaram a ocupar altos cargos políticos em
importantes países ao redor do mundo. São inúmeras e inegáveis as conquistas e,
se as mulheres já conquistaram tanto, há quem possa argumentar que o feminismo
perdeu a sua razão de existência.
As marcantes
presenças tanto de mulheres quanto de bandeiras feministas em recentes
mobilizações políticas ao redor do mundo parecem anunciar que ainda não se
conquistou o suficiente. Os protestos de jovens mulheres em forma de invasões a
eventos públicos com seios à mostra, como faz o grupo ucraniano Femen, e de
marchas pelas ruas das grandes cidades do mundo, vestidas apenas com lingeries,
autonominadas como Marchas das Vadias, revelam que o feminismo continua
vicejante. Mas será que continua o mesmo? Que mensagem essas manifestações
trazem sobre o feminismo no mundo contemporâneo, ao utilizarem o próprio corpo
como instrumento de resistência às mais distintas formas atuais de opressão,
tais como racismo, lesbo-homofobia, o capitalismo, os regimes políticos
ditatoriais?
Simploriamente
tomado como uma indesejável guerra entre os sexos, o ser feminista ainda
carrega uma conotação negativa, supostamente antifeminina. Caudatário das
revoluções do século 18, o feminismo pode ser caracterizado genericamente como
uma ideologia política típica da modernidade, da qual decorre uma produção
teórico-intelectual e uma prática política, ambas intensas e plurais, que vem
se transformando ao longo dos anos. Compartilha, portanto, do ideário e do
conjunto de valores iluministas como a centralidade do sujeito indiviso e
universal, a racionalidade, a igualdade e a liberdade, que até hoje compõem o
léxico da política no mundo ocidental. Importa destacar que a essa concepção de
sujeito iluminista corresponde uma identidade, compreendida como coerente, fixa
e que é central na constituição do indivíduo moderno.
Em diálogo
com esse conjunto de valores, o feminismo – entendido como uma ideologia política
– constituiu-se historicamente a partir da formulação de uma identidade
coletiva e de um projeto de vida em sociedade particulares. Eles baseiam-se na
suposição de que todas as mulheres, universalmente, compartilham experiências
de opressão e interesses de transformação desta condição, oriundos do fato de
terem nascido com as marcas corporais de fêmeas da espécie humana. Logo, o
projeto político feminista implicaria na resistência a um poder que domina e
oprime as mulheres, emancipando-as. Criar-se-ia, assim, uma nova identidade
coletiva para elas, marcada pela liberdade e pela igualdade, o que redundaria
em outra forma de vida em sociedade. Foi assim que o feminismo investiu a
categoria social mulher – tomada a partir de uma concepção identitária baseada
no aparato biológico, no corpo feminino – de um estatuto particular, tornando-a
seu maior patrimônio político.
O feminismo,
no entanto, não é um bloco homogêneo. Há, ao longo de sua história, relevantes
marcos, diferentes perspectivas sobre seu sujeito e seu projeto políticos e
formas variadas de expressão e mobilização, o que constitui a riqueza dessa
ideologia a ponto de se reivindicar referi-la no plural. Mais ou menos
consensualmente, entende-se que o feminismo teve seu primeiro grande marco mobilizatório
em torno da igualdade entre homens e mulheres. Ao enfatizar direitos e
possibilidades iguais para ambos os sexos, a tradição igualitarista caracterizou predominantemente o feminismo
desde seu surgimento, que tem como uma referência a “Declaração dos Direitos da
Mulher e da Cidadã” de Olympe de Gouges, escritora e revolucionária francesa
guilhotinada em 1793, até as mobilizações femininas pela igualdade entre homens
e mulheres pelo direito ao voto, do início do século 20, movimento conhecido
como Sufragismo.
Após esse
período, há um arrefecimento das mobilizações feministas, que recrudescem somente nos anos 1970. Instigado pelos
escritos existencialistas de Simone de Beauvoir sobre a condição da mulher, o
novo feminismo institui um outro paradigma contestatório em torno da identidade
feminina. Tal identidade é compreendida como una, imutável, coerente e marcada
pela opressão, que se origina na particularidade do e se manifesta no corpo das
mulheres. São corolários desse paradigma a compreensão de que as mulheres
compartilham de uma realidade separada e radicalmente distinta da realidade
masculina, de que o poder emana dos homens sobre as mulheres, de que os
sistemas de dominação são transculturais e trans-históricos e estão imiscuídos
aos modos de produção e de reprodução sociais. É também por meio desse
paradigma identitário que o feminismo promove uma contundente problematização e
consequente politização de arenas da vida social nunca antes questionado como a
família, a sexualidade, a vida doméstica em todas as suas dimensões e,
sobretudo, a subjetividade. Contudo, não tardam as críticas à forma como a
identidade feminina é compreendida e defendida neste novo feminismo.
É dos
movimentos pós-coloniais, de mulheres negras, lésbicas e de juventude que
surgem as críticas à perspectiva predominante do novo feminismo. Essas outras
experiências de exclusão anunciam que o novo feminismo pretensamente universal
é, antes, situado. Ele é ocidental, branco, heterossexual, adulto, letrado e de
classe média. Essas perspectivas encerram, também, uma crítica sobre
universalização do quadro ideológico do poder e das relações de poder do
pensamento ocidental. No bojo dessa crítica é que a noção de identidade
feminina, que alimenta esse paradigma, passa a ser desconstruída. Sua contestação
passa pelo questionamento da sua
universalidade, da sua fixidez e, sobretudo, da própria noção de corpo como
base biológica e material incontestável da identidade.
O sujeito da
política, a identidade e o corpo passam a ser relativizados, tornando-se contextuais e contingentes. Propugna-se a
complexificação dessa identidade a partir da incorporação e da articulação de
marcadores sociais da diferença como gênero – a grande categoria política e
analítica que deu o pontapé inicial ao processo de questionamento da fixidez
identitária – raça, sexualidade, classe, religião, nacionalidade, entre outros.
Como conseqüência desse conjunto de desafios críticos ao novo feminismo, tem-se
a pluralização das suas possibilidades mobilizatórias e, também, das perspectivas
feministas na contemporaneidade.
É neste
contexto que podem ser compreendidas as recentes manifestações das feministas
ucranianas do Femen que, com seus seios à mostra, protestam, ao mesmo tempo,
contra o abuso dos corpos das mulheres pela prostituição e pelo turismo sexual
e contra as ditaduras remanescentes na Europa oriental. É também nessa nova
chave compreensiva que a Marcha das Vadias questiona a persistente banalização
das violações sexuais das quais as mulheres são vítimas e também o racismo, a
homofobia, a desigualdade de acesso ao poder e de salários entre homens e
mulheres e o modo capitalista de vida que promove o consumo como signo de
cidadania e destrói o meio ambiente. Tais manifestações feministas nos ensinam
que as matrizes de desigualdades não podem ser tomadas isoladamente; antes elas
são intrinsecamente associadas.
E o que
dizer, então, do feminismo como ideologia política da contemporaneidade? Ao que
parece, ele vive em um paradoxo. Os dois exemplos de protestos feministas acima
mencionados colocam em evidência, novamente, o corpo feminino. Anunciam que,
mesmo em tempos em que ser mulher não é mais exclusivamente definido pela
materialidade da biologia, o corpo feminino ainda é onde se manifesta tanto a
opressão quanto a resistência a ela. Essas mulheres insistem em nos fazer ver
que é necessário lembrar que o seu corpo é o seu território, sobre o qual nem o
Estado e nem as Igrejas devem ter ingerência. Mostram, com isso, que há muito
que transformar no conjunto de valores relativos ao imaginário sexual que estão
disponíveis na nossa cultura e que são predominantemente compartilhados, as
nossas convenções de gênero.
Ao mesmo
tempo, no entanto, elas sugerem que há algo na própria constituição da
ideologia política feminista e nas suas formas de resistência que também
necessita ser transformado, dada a persistência das mesmas violações às
mulheres e ao feminino. Talvez o desafio contemporâneo para o novo feminismo
seja a possibilidade de se constituir prescindindo do seu grande patrimônio
político, as mulheres, como o seu sujeito político. Estamos, pois, à espera de
uma nova inflexão para o feminismo contemporâneo.
Alinne
Bonetti,
antropóloga,
professora do Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade (BEGD), do
Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero
e Feminismos (PPGNEIM) e pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares
sobre a Mulher (NEIM), Universidade Federal da Bahia (UFBA)
http://revistacult.uol.com.br/home/2012/08/o-velho-e-bom-feminismo/
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