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domingo, 4 de maio de 2014

Violência contra crianças é recorrente, mas denúncias ainda são poucas

Juliana Sada, com colaboração de Yuri Kiddo, do Promenino com Cidade Escola Aprendiz

Há 20 dias, o garoto Bernardo, de 11 anos, foi assassinado no Rio Grande do Sul, entre os suspeitos estão o pai e a madrasta. Em fevereiro, o menino Alex, de oito anos, morreu após ser espancado seguidas vezes pelo pai.  Há seis anos, a pequena Isabella Nardoni, na época com 5 anos, foi jogada do sexto andar de um edifício pelo pai e a madrasta. Esses casos de violência contra crianças chocaram a opinião pública. Apesar da notoriedade que ganharam, esses são apenas alguns poucos casos de um universo de violência contra crianças e adolescentes.

No ano passado, o serviço de Disque Denúncia da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da Presidência da República registrou 162 mil relatos de violência física, psicológica e sexual contra crianças e adolescentes. Apesar de crescente, o número de denúncias ainda é pequeno em comparação com a realidade. Dados da Sociedade Internacional de Prevenção ao Abuso e Negligência na Infância estimam que a violência doméstica atinja 18 mil crianças por dia no Brasil.

São vários os motivos que explicam a dificuldade de mensurar a ocorrência da violência, seja por meio de denúncias ou atendimentos na rede de saúde. Entre eles está o fato de nem todos os casos serem denunciados, nem sempre a vítima procurar ajuda e nem sempre alguns atos serem considerados violência. Chantagem, humilhação, ameaças, beliscões e xingamentos são alguns tipos de violência recorrentes, muitas vezes vistos como normais.

Outro fator que leva à dificuldade de se conhecer o fenômeno é que, na maioria das vezes, o autor da violência é alguém da família ou de confiança da criança. Segundo dados da SDH, 70% das violações de direitos das crianças e adolescentes são cometidas por algum familiar. O número traz, além de casos de violência, registros de discriminação, trabalho infantil e negligência. Outro levantamento mostra que metade dos atendimentos realizados por conselhos tutelares têm os pais como autores da violação de direitos.

“A violência é um fenômeno histórico-social complexo e está presente em nossa história desde o processo da colonização, passando pela escravidão e pela sociedade patriarcal, em que a disciplina e o poder eram estabelecidos pelo autoritarismo, pela força e pela violência física”, explica a coordenadora da Campanha Nacional “Não Bata, Eduque”, Marcia Oliveira. Para ela, o uso da violência por familiares como forma de impor a autoridade ainda é culturalmente aceitável. “Muitos adultos não consideram esses tipos de punições como ‘violência’”, afirma.

Uma das violências contra a criança e adolescente que também tem apresentado números alarmantes é a de caráter sexual, como abuso, exploração (com fins comerciais), aliciamento e pornografia envolvendo crianças, entre outras práticas. Segundo um levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), metade dos casos de estupro de crianças e adolescentes tem como autor pais, padrastos, amigos ou conhecidos da vítima. O estudo, realizado a partir de dados coletados pelo Ministério da Saúde, revela ainda que 70% das vítimas de estupro em 2011 tinham menos de 18 anos. O número é mais grave quando se observa que metade das vítimas tinha até 13 anos.

De acordo com a secretária executiva do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, Karina Figueiredo, a questão cultural é importante para esse quadro. “A lógica machista é muito presente em nossa sociedade, e ela diz sobre a dominação do homem sobre mulher, que ela deve ser subserviente e pressupõe que é obrigada a ter relações com o homem, quando ele quiser.”

Para Karina, além da questão cultural, a impunidade e a vulnerabilidade são fatores importantes. “Não vemos quase ninguém sendo preso por isso, muitas vezes é solto logo ou fica respondendo o processo em liberdade. Quando atendemos um caso de violência sexual, vemos que a família em geral está enfrentando uma situação de vulnerabilidade. Não apenas econômica, mas também de vínculos e de afeto”, explica.

Vítimas marcadas para sempre

Segundo o estudo do IPEA, a predominância de crianças e adolescentes entre as vítimas de estupro é “absolutamente alarmante, uma vez que as consequências, em termos psicológicos, para esses garotos e garotas são devastadoras”. A publicação explica que “o processo de formação da autoestima – que se dá exatamente nessa fase – estará comprometido, ocasionando inúmeras vicissitudes nos relacionamentos sociais desses indivíduos”.

Karina ressalta que as consequências da violência sexual são inúmeras. “Quando a questão não é tratada, há impactos na autoestima, nas relações interpessoais, no desenvolvimento da sexualidade e no aprendizado.” A secretária executiva relata que o atendimento às crianças vítimas de violência ainda não é satisfatório. “É necessário uma estrutura de serviços especializados, porque hoje o atendimento está diluído dentro da saúde e da assistência social e esses serviços não têm dado conta das especificidades, já que lidam com diferentes temas também.”

Outras formas de violência contra criança – como castigos físicos, ameaças e xingamentos no ambiente doméstico – têm entre as consequências a reprodução do ciclo da violência. Marcia Oliveira ressalta que a maioria dos adultos foram criados com o uso de práticas violentas (tapas, surras, beliscões, gritos, xingamentos etc.); e é a forma que eles conhecem e reproduzem. “Combater a banalização e aceitação desse tipo de violência tem sido nosso maior desafio. Estamos discutindo uma mudança cultural de longo prazo que contribua para que as pessoas passem a perceber o uso dos castigos físicos e tratamento humilhante como ‘não natural’ e busquem alternativas educativas não violentas”, pontua a coordenadora da Campanha Nacional “Não Bata, Eduque”.


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