Livro propõe alternativas a uma indústria alimentar que padronizou dietas, disseminou agrotóxicos e “aditivos”, reduziu comida a consumo e não venceu a fome
Por Juliana Dias, editora do site Malagueta
O sistema alimentar moderno transformou radicalmente a estrutura social, econômica, política e cultural das sociedades. Inspirada na lógica industrial, os objetivos estão centrados numa economia de baixo custo e grande escala, projetada com tecnologia e eficiência para oferecer “mais por menos” ao consumidor final. Essa equação se traduz em mais produtos na prateleira a um preço cada vez menor de produção, que beneficia exclusivamente os grandes fabricantes e redes varejistas multinacionais.
Em O Fim dos Alimentos (Editora Eevier, à venda na internet), o jornalista norte-americano Paul Roberts descortina o cenário da economia alimentar, com um panorama inédito que reúne subsídios para compreender sintomas que vão da obesidade ao declínio das refeições preparadas em casa. Nutrida por desigualdade e injustiça, esta economia reproduz um ciclo tendencioso e vicioso, em que a demanda do consumidor, seus desejos e interesses implacáveis são utilizados como justificativa para manter um modelo de produção, consumo e distribuição questionável.
A concorrência do setor varejista espreme ao máximo os lucros da cadeia produtiva para se manter no topo da preferência de seu cliente. Este cliente, por sua vez, parece também ter sido moldado geneticamente, culturalmente e socialmente para absorver mais calorias em nome da conveniência e da falta de tempo que o próprio sistema o enreda. Quanto menos tempo se tem para cuidar da alimentação, mais as empresas alimentícias lucram com inovações que facilitam um estilo de vida em que o trabalho ocupa a maior parte do dia e cada vez exige mais, assim como a cadeia produtiva precisa ser cada vez mais eficiente.
A antropóloga Mary Douglas, no livro O Mundo dos Bens (Editora UFRJ, à venda na internet) supõe que a capacidade essencial do consumo é dar sentido. Trata-se de um sistema de significação, e a verdadeira necessidade que supre é a simbólica. Para cumprir com excelência tal missão, as verbas de marketing e publicidade dão conta de explorar a experiência alimentar, abarcando os valores de uma cultura ou sociedade. A culpa, a insegurança e a vida corrida ganham significado no ato de consumir. No final das contas, quem ganha com tanto tempo e energia desprendidos em prol de um modelo capitalista que consome, esvazia?
Roberts indica um caminho em que gigantes como a Nestlé e o Mc Donald’s mais parecem maquinar contra a humanidade, exaurindo suas forças, como se as pessoas e os recursos fossem infinitos, ou substituíveis infinitamente.
A industrialização da refeição começa no campo epistemológico ao conceituar alimento como mercadoria, sem considerar, como aponta o autor, que o alimento em si não é fundamentalmente um fenômeno econômico. “O produto subjacente – o que comemos – nunca na verdade se conformou aos rigores do modelo industrial moderno”. No entanto, a crise alimentar, ele alerta, é fundamentalmente econômica. A partir desta constatação, podemos pensar nas outras dimensões em que essa crise atinge, como a perda do saber e fazer tradicionais. O jornalista sugere que as relações familiares, a identidade cultural e diversidade ética estavam intimamente relacionadas com o ato de preparar e consumir comida. Agora, esta função está a cargo de grandes corporações.
As culturas alimentares que tratavam a culinária como elemento central para a manutenção da estrutura social e da tradição estão lentamente sendo trocadas por uma cultura alimentar globalizada. “A refeição social é obsoleta e a arte da cozinha é feitichizada em livros de receitas e programas culinários”.
Os alimentos foram dissecados em sua essência e transformados em insumos. O dicionário Houaiss define o verbete como “bem utilizado ou transformado em outros produtos pelo processo produtivo de uma empresa; ou fator de produção”. A etimologia traz a ideia de “tomar, invadir; despender, gastar”. Exatamente como faz a marcha da economia alimentar.
Roberts explica que o alimento é tão impróprio à produção em massa que tivemos de reengendrar plantas e animais para torná-los mais eficientes economicamente. E para corrigir os efeitos colaterais, ergueu-se uma indústria de medicamentos, flavorizantes, aditivos e fertilizantes em prol da qualidade, percebida na textura e no sabor de quem compra. Tudo pode ser constituído. O crescimento desproporcional dos frangos compromete a umidade da carne, por isso, injeções de salmora e outras substâncias garantem o aspecto natural. Todo o esforço da indústria está em parecer caseiro, artesanal e natural, como se tivesse sido feito em casa, na hora. Em nome dessa naturalidade, a saúde das plantas, dos animais, do solo e do homem podem estar ameaçadas.
A indústria construiu uma reputação baseada na capacidade de produzir comida suficiente para abastecer a população com segurança. Com a análise de Roberts, observamos que esta relação de confiança é sustentada com altos investimentos em tecnologia, mas que não são suficientes para impedir práticas fraudulentas – como colocar carne de cavalo em lasanhas, hambúrgueres e kebabs no Reino Unido; e adicionar ureia no leite do Rio Grande do Sul, ambos acontecimentos do primeiro semestre de 2013. Para o autor, o mais grave é que apesar de toda eficiência e abundância, o sistema alimentar moderno não chegou nem perto de erradicar a fome. Roberts suspeita que “há algo de muito errado quando ninguém é produtor, quando ninguém é cozinheiro, e quando o mais próximo que se chega de produzir uma refeição é no buffet de restaurante a quilo”.
A economia alimentar cresceu num contexto da Segunda Guerra Mundial e Revolução Industrial. Aliou-se a fome com a vontade de comer. Num primeiro estágio, a produção industrial caiu como uma luva, era sinal de fartura e progresso. Mas esta máquina alimentar já indica sinal de desgastes. Esta iminente crise será a mais problemática porque a produção ocorre num contexto global, onde os custos são mais baixos. Entretanto, torna-se vulnerável às intempéries como meios de transportes ou capacidade de exportadores. Outro fator apontado no livro é a resistência à mudança. Por isso, sua manutenção depende de investimento contínuo em produção. Por ser tão bem arranjado, uma mudança genuína deve partir de fora da lógica predominante. Caso contrário, as alternativas são incorporadas e reinventadas, como os alimentos orgânicos e os produtos saudáveis. Ademais, a propaganda de bom preço e qualidade esconde muitos dos verdadeiros custos. Os consumidores, peça-chave que roda essa engrenagem, demonstram pouca inclinação a prestar mais atenção ao que comem.
Roberts cita iniciativas em prol de um modelo alternativo, como levar a agricultura aos ambientes urbanos, comida de verdade nos refeitórios da escola e técnicas culinárias na sala de aula. No Brasil, a Lei de Alimentação Escolar (11.497) determina que a Educação Alimentar e Nutricional perpasse o currículo e o processo de ensino-aprendizagem. Diante do panorama exposto, os educadores deveriam tomar parte na discussão sobre o sistema alimentar, considerando não apenas a saúde, mas a complexidade que esta economia engendra. Faz-se necessário uma narrativa abrangente, interdisciplinar e transdisciplinar sobre o que se come, que pode se construída na base da educação, assim como a indústria busca novos consumidores desde o ventre materno. Nos três primeiros capítulos, o livro trata de três grandes mudanças na relação de produção, distribuição e consumo.
Fome de progresso
O autor inicia a obra situando o leitor a respeito da evolução do homem em busca de alimentos. A carne e, posteriormente a agricultura, foram cruciais para desenvolvimento humano e fixação na terra. Desde os primórdios da sociedade, a segurança alimentar se apresentou como uma questão militar e política. A capacidade de produzir grãos caminha com o incremento na produção de carne. A partir de 1500 e 1700 a redescoberta da carne teve papel fundamental para o crescimento da população mundial. Durante séculos, a fome destruiu de forma eficaz a capacidade mental, social e produtiva de populações inteiras. A constante ameaça da escassez versus o crescimento populacional impulsionou inovações e tecnologias, que afastaram o fantasma da fome; e ampliou a baixa estatura provocada pela desnutrição.
Na visão do autor, o globalismo, ou o sistema alimentar internacional foi gerado sob a ideologia do livre-comércio. A fome transformou o alimento em mercadoria e desencadeou uma abundante produção de comida. Os Estados Unidos, berço desta superabundância, o congresso criou um vasto sistema de apoio a produção de alimentos. Segundo o economista de Havard Ray Goldberg, o sistema foi “o maior serviço de utilidade quase-pública do mundo”.
A padronização tornou-se um princípio norteador da produção. Em nome desse padrão de qualidade, o alimento é esmiuçado, descaracterizado e reconstituído. O agricultor moderno concentrou seus esforços em uma só cultura, como milho e soja, base para uma infinidade de produtos; ou espécie de gado. Em 1957, Goldberg e John Davis sugeriram o termo agronegócio (conjunto de operações da cadeia produtiva, do trabalho agropecuário até a comercialização/Houaiss) ao invés de agricultura (trabalho do campo, arte de cultivar).
Conforme o jornalista “a uniformidade e a especialização haviam sido os marcos da economia alimentar moderna em seus primórdios; a consolidação e a desigualdade seriam seu legado mais duradouro”.
É muito fácil hoje
A etapa seguinte da economia alimentar foi protagonizada pelos fabricantes de alimentos. O agronegócio resultou em menos gastos para os consumidores; e os produtos de conveniência resultaram em menos tempo gasto no preparo das refeições. A Nestlé é o principal exemplo de Roberts por ser a líder mundial da indústria alimentícia; e ser alvo de inúmeras polêmicas. Nas sociedades industrializadas, o tempo se converteu em uma valiosa mercadoria. Empresas como a suíça Nestlé passaram a atender, além da demanda de preço, a praticidade. A fabricação de alimentos se enfileirou na esteira do modelo fabril e automobilístico, com grande volume, padronização e variedade. Interessante destacar que o paladar é conservador. O historiador Enrique Renteria (2007) afirma que essa importância dada à alimentação é surpreendente visto que é na escolha do que comemos que mostramos menos ousadia. Da mesma forma, Roberts ressalta que o sucesso de empresas como a Nestlé e o Mc Donald’s assinala um dos desenvolvimentos mais radicais e potencialmente inquietantes da história da economia alimentar, pois os seres humanos são de fato inerentemente “conservadores em se tratando de alimentos”.
O sistema de produção, distribuição, divulgação e consumo de alimentos ganhou terreno à medida que o comensal perdeu a capacidade de preparar e entender sua própria comida. Tem o mérito de instigar o apetite por novidades embaladas e com rótulos indecifráveis. As mudanças na forma de comer foram acolhidas ou consideradas como um mal necessário, pois permitiu o controle maior do tempo. Mas ao longo do processo de industrialização do comer os consumidores se mostram cada vez mais dispostos a aceitar produtos sintéticos ou processados. E para convencer o cliente desta “necessidade” a publicidade e o marketing são ostensivos. O autor informa que a indústria alimentícia americana gasta cerca de US$ 33 bilhões por ano, atrás apenas do setor automobilístico. Além da comunicação, o setor investe em analistas de diversas áreas como antropologia e psicologia. Até 2030, a previsão do tempo de cozinha ideal deve ficar entre 5 a 15 minutos. O futuro do alimento, adverte Roberts, é ser um acessório. O sucesso desse modelo se baseia no declínio contínuo da refeição à mesa como uma parte significativa da cultura.
A multidimensionalidade da alimentação (Fischler, 1995) é reduzida a uma mercadoria, desprovida de sua essência, mas enxertada de sentido para consumidor, com informações angariadas em pesquisas de comportamento. O relatório anual do Mc Donald’s, de 1994, avalia que se deve monitorar as mudanças nos estilos de vida dos consumidores e intercepta-los a cada vida. Não é tão difícil monitorar quando as relações também se tornam padronizadas e previsíveis; e a agenda de compromissos abarrotada é uma angústia universal.
Compre um e leve outro grátis
A terceira etapa da cadeia produtiva alimentar é ainda mais cruel e espreme produtores e fabricantes contra suas margens de lucro. Quem dá as cartas são as grandes redes varejistas com operações internacionais. Na liderança está o Wal-Mart, tão demonizado quanto a Monsanto, a Nestlé e o Mc Donald’s. Os fornecedores escolhidos são obrigados a praticamente zerar o lucro para entregar produtos com qualidade, uniformidade e volume. Qualquer irregularidade, isso inclui verduras e legumes, os alimentos/produtos são devolvidos e o fornecedor descredenciado. O Wal-Mart inovou a oferecer descontos diários a sua clientela. Para isso, reduziu os estoques internos, pressionou fabricantes que por sua vez cobraram mais eficiência dos produtores. Em troca, o volume de vendas em contraponto com uma necessidade constante de inovação e investimentos para manter a produção em patamares elevados. “A cultura alimentar é definida pelo preço, com base no valor intrínseco e no tamanho da porção e num sistema de produção global tão enxuto e just in time que é ao mesmo tempo propenso a sofrer contratempos”, afirma o autor, se referindo a exigência de perfeição. Os processadores de carne foram as primeiras vítimas do grande aperto varejista. Daí para se obter frangos em 40 dias foi uma trajetórias de demandas baseadas em custo e eficiência. Entretanto, os mercados mais promissores estão nos países emergentes e em desenvolvimento, que enfrentam desafios em termos de segurança alimentar, bem como de estrutura como ferrovias, depósitos e infraestrutura para distribuição de produtos. Até quando a pressão por preço vai nortear a produção, a distribuição e o consumo, quando estamos lidando com mercadorias forjadas a partir de recursos finitos, como o solo, a água, os animais?
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