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segunda-feira, 5 de maio de 2014

João, um ladrão aprendiz da vida.

Por Mônica El Bayeh

Na 'Visita de Domingo', o encontro verídico entre uma professora e um aluno que rouba armado

Sem abrigo e sem afeto, meninos expulsos de casa acabam no desvio e, por mais que tentem, não costumam acabar bem  (Foto: João Machado)
Ele já tinha fugido outras vezes. Era preciso tomar cuidado.
- Não tá fazendo nada por quê, João?
- Meu caderno está na outra sala.
- Poxa, como é que vem para a aula e não traz caderno?
- Tenho que pegar na outra sala.
-  Você já fugiu hoje, não é confiável. Então vamos, eu vou junto.
- Que isso, professora?
- Isso, eu vou junto. Tive que ir te pegar na outra sala com uma garrafa de Coca-Cola. Ao invés da Coca-Cola, por que não pegou o caderno, então? Vamos juntos!
- Sério?
- Claro! Vou de babá!
Já com caderno na mão, ele reclama:
- Precisava isso?
- Precisava. Agora vou te escoltar igual bebê pequenino sem juízo. Por falar em bebê, e seu irmão que nasceu ano passado?
- Sei não, não moro mais lá.
- Mora onde?
- Por aí.
- Como assim?

Amigo intervém:
- Ele agora é Cadinho, professora. Cadinho na casa de um, cadinho na casa de outro.
- Por que está assim? E sua mãe?
- A mãe botou ele para fora de casa.
- Eu não acredito nisso. Vocês estão é me enrolando. Uma blusa dessas, limpinha, branquinha quem lava?
- Eu pago, professora.
- Paga com que dinheiro, João, se você nem casa tem?
- Ele rouba, professora.
- Você rouba, João?
- Roubo, professora.
- Então olhe bem para mim, grave bem a minha cara. Se você me assaltar na rua, eu te reprovo, criatura! É sério isso? Você rouba mesmo, João?
- Roubo, professora.
João é franzino, negro, cheio de ginga. Um rosto às vezes humilde, às vezes malandro. Um sorriso aberto encantador e pouco divulgado.
João é manso. Nunca vi João brigar. Comigo, nunca  levantou a voz, nunca me respondeu mal. Prefere se esgueirar sorrateiramente a bater de frente. Dissimulado, ele foge. Quando você olha de novo, cadê? João sumiu.
Não se percebe agressividade nele. Aquele João ali, se me dissessem que furtava, até acreditaria. Uma coisa sem embate que dependesse apenas de um dom ardiloso de surrupiar o alheio.
Inconformada, continuo meu interrogatório.
- João você rouba no susto ou você usa arma?
Já tive alunos que assaltavam com pepino no bolso, com cenoura. Até com desodorante. Avanço. O formato, no medo, fazia lembrar um revólver. 

- Arma, né, professora.
- Você anda armado, João?
- Ando.
- Vem armado para a escola?

João fez que sim com a cabeça. O amigo, percebendo a merda, para socorrer, disse que não. Aí João dizia que não e com a cabeça fazia que sim. Eu já sabia a resposta. A cabeça do João me contou. Engraçado, não senti medo. Brinquei:
- João, olhe a minha situação: eu te dei zero. Como eu posso dar zero para uma criatura armada?  Você tem que fazer alguma coisa, João, para eu poder te dar nota e não correr o risco de te deixar zangado. Olha que perigo.
João tem a voz baixa, mansa. Não tem voz de quem grita: Perdeu!
- João, você fala tão baixo que eu daqui mal te escuto. O que você fala quando assalta?
As amigas intervêm:
- Perdeu!
- Qual que é? Passa tudo!
O coletivo imaginário somado à experiência diária da comunidade dá embasamento.
- João, você não pode me assaltar, eu não escuto o que você fala. Imagina como seria? João, não ia dar certo!
Rimos muito. O amigo, para brincar comigo, bota pilha na situação:
- Ele rouba celular . Ele gosta de Iphone.
- Ai, João!
Gemo, enquanto mostro que estou guardando o meu na bolsa.
- Melhor guardar o meu! Você não viu nada aqui, hein!
Rimos. O amigo continua na pilha:
- Ele rouba carro também. Fox, principalmente.
- Aquele nojo que eu já nem chamo de carro? Pode levar, João. Sujo, velho, engasgando toda hora.
- Ele lava, professora.
- Nem assim aquilo presta.
- Ele roubou um Kia.
- Sério João?
- Foi.
- E fez o quê?
- A gente vende.
- Por quanto?
- Seis mil.
- Só?
- É.
- Mas, então quem compra sabe que é roubado.
- Sabe como?
- Pelo preço, pela falta de documentos.
- Tem gente que deixa no porta- luvas, e aí? Com documento, vai saber como?
- Ai, João o meu fica no porta-luvas!  É... mas o cara roubado dá queixa na polícia, o carro fica marcado.
- Eles não venderam, não, professora. O carro tá lá no morro. Eles andam com o carro pelo morro.
- Mas, João, agora sério. Por que tua mãe te colocou para fora de casa? Me conta a verdade.
Os amigos contaram por ele:
- A mãe pegou ele roubando!
- A mãe pegou ele fumando maconha!

Pelo visto as queixas eram muitas. Os motivos da mãe também. Mas quando o filho dá defeito, a gente joga fora? É filho ou celular de camelô, desses paraguaios que não têm conserto?
A mãe tinha uma ninhada. Eu nem lembro mais quantos, mas muitos. O último, era recém-nascido no ano passado. Um a menos não faz falta? Ou um a menos dá até alívio?
Um filho que não dá certo acusa a gente. Aponta para o que se tem de mais doído. Filho que dá problema é carne da gente exposta. Somos nós de bunda de fora na rua. Se mando embora, pelo menos não vejo. Se não vejo, não sinto? O que meus olhos não veem não me cutuca, nem me cobra responsabilidades?
Penso nos meus dois, não consigo me imaginar colocando ninguém para fora. Minha responsabilidade acaba  quando me livro do filho que dá problemas? A casa não é deles também? O que se entende por lar termina quando?
Filho é relógio de corda. Quem dá corda é a gente. Se a corda quebra, o tempo para de contar por causa disso? Como fica um filho quando eu desisto dele? Ou será que quando eu desisto de um filho, na verdade, só comunico? Só bato o martelo e a porta porque já desisti sim, mas há muito tempo atrás? 
João não tinha um lar. Não tinha onde ficar. Agora, ali, eu entendia por que ele não ficava. Esse era o grande problema do João comigo: ele não ficava, fugia. Quando ficava, nunca estava ali. Um corpo vazio de alma. Uma alma que, agora eu via claramente, se chamava esperança. Costuma começar com um olhar de mãe. Ai que triste.

Descemos para o recreio. Prometo a eles que aquele assunto não sairá dali. Desço para a sala dos professores. Passo pela direção e vejo João com o diretor. Me intrometo:
- O que houve dessa vez?
- Ele destratou a professora da de sala de leitura.
- Sabe que João está sem ter onde morar?
O diretor puxa assunto, João desconversa e sai. Lá fora me chama para conversar e me cobra explicações.
- Você pisou na bola comigo, professora!
- Pisei nada, João. Não falei da nossa conversa. Falei que você não tem onde morar, porque não tem mesmo e ele precisa saber para entender qualquer coisa que aconteça.
- E se ele ligar para a minha mãe?
- Você quer que ele ligue?
- Não.
- Vamos lá, então pedir para ele não ligar. Eu vou contigo.
- Deixa, tá tranquilo.

Como tudo o que é bom dura pouco, recreios costumam ser breves. Muito breves, bem mais do que deveriam. De volta à aula, o amigo do João imita gritos de arara. É um barulho ensurdecedor. Me sinto num zoológico. Depois de muito pedir para que ele pare parto para outra abordagem:
-  Menino, se você não parar te jogo o sapato. Se o sapato não pegar, você será atingido pelo meu super chulé. O estrago é o mesmo.
- Não sou eu, é o João que está gritando.
- Não é, eu vi. E se gritar de novo, te jogo o sapato.
- E se pegar no João?
- Se pegar no João, eu peço desculpas, sopro, dou beijo. E jogo de novo para acertar em você.
João, na última carteira, nada faz. Ri cansado.
- João, faz o trabalho. Eu tenho que ter nota para te dar. Como vou dar zero para um homem armado?
- Professora, eu estou cansado.
- João, cansada estou eu que dei aula o dia inteiro desde as sete da manhã e já são quase cinco.
O amigo defende:
- Professora, o João pega às seis. Vai de seis ao meio-dia. Vem para a escola. Pega de novo de seis à meia- noite.
Penso: João trabalha mais do que eu.  Sem casa para chegar depois. Merece todo meu respeito.
-João, esse tempo todo é só roubando?
- Não, professora, ele vende drogas também.
- João, você tem que continuar a estudar. Pelo menos este ano. Aí já sai com o primeiro grau garantido. Se um dia cansar da vida loca, já tem o diploma para procurar um trabalho. Você é bonito, inteligente, consegue coisa melhor.
- Inteligente eu não sou, não.
Gostei de saber que João se achava bonito. Já era um bom começo.
O amigo acrescenta:
- Ladrão burro não tem futuro.
- Ah, não tem mesmo, João.  Até para ser ladrão tem que ser esperto. Tem que estudar para fazer as contas do tráfico e não dar troco errado.

Por sorte, mesmo cansado com seu horário de trabalho puxado, João abre o caderno e faz o trabalho. Parece aliviado por ter me contado. Também fiquei aliviada em ouvir. Agora estávamos mais próximos.
Sem casa, sem pouso, sem ter nem onde guardar o que é seu, eu fico muito feliz de ter uma nota para dar ao João. Não pelo medo da arma, que ele supostamente tem na mochila. Eu acho que até nem tem.
Mas pelo tanto que a vida roubou dele. A vida roubou muito de João. E ele não só resiste, como ainda paga para vir limpinho. Não concordo com o que ele faz. Nada justifica o roubo. Mas entendo que João é um ladrão guerreiro! Torto, mas resistente. Um aprendiz da vida em sua saga solitária. Como tem 15 anos, debutante sem ser, João precisa escolher outro destino para ele.


perfil Mônica El Bayeh - blog da Ruth (Foto: ÉPOCA)

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