Adolescente, brigava muito com minha mãe. Mas pude dizer quanto a amava antes de perdê-la
WALCYR CARRASCO
O Dia das Mães se aproxima, e novamente sou inundado por anúncios e ofertas promocionais. Já perdi minha mãe faz tempo. Essa data sempre me faz reviver a falta, a dor e a complexidade dessa relação, tão importante para qualquer um. Assumo: me torno francamente piegas. Penso que, entre os inúmeros liquidificadores, jogos de xícaras e pratos que dei a minha mãe, talvez não tenha sabido expressar meu amor o suficiente. Ou soube? É uma pergunta sem resposta, a não ser que, entre os mistérios do mundo, existam realmente os encontros em outra vida. Francamente, filhos fazem das mães gato e sapato. Uma secretária do lar minha no Rio de Janeiro – é assim que se diz empregada em termos politicamente corretos, não é? – teve uma única filha, sem casamento. Morava na época numa comunidade, precisava trabalhar, mas lutou para fazer o melhor pela menina. E se superou. Conseguiu vaga numa escola pública de qualidade. Botou a menina na natação de um clube famoso, gratuitamente, para impedir que ficasse solta. O tempo passou. Num projeto social do governo para retirar famílias de área de risco, a mãe conseguiu uma casinha. A filha encheu as paredes de medalhas, ganhas sucessivamente na piscina. Seu futuro parecia traçado: faria educação física, seria personal trainer, professora. Quem sabe, campeã internacional.
Claro, brigavam. A mãe montava guarda feroz. Quando a garota começou a namorar, insistia em ir ela, o namorado e a filha à pizzaria, se saíam à noite. Um horror para uma jovenzinha de 16 anos. Esperava na saída dos treinos. Vigilância absoluta. Também exagerava nos mimos. O excesso criava sonhos. A menina queria morar na Zona Sul, exigiu um curso de informática, que a mãe pagou, e não foi a nenhuma aula. De frustração em frustração, a relação entre ambas estremeceu.
Sem nenhum sinal prévio, um dia a filha fez a mochila e fugiu de casa. Deixou uma carta, acusando a mãe de maus-tratos, até ameaçando com denúncia se a procurasse. Eu sabia bem que brutalidade não havia nenhuma. Ela tinha 17 anos. A mãe procurou a polícia. Ouviu que não adiantava: se achassem a fugitiva, com 17 anos, ela sumiria de novo, e de novo. Eu estava fora do país e só soube disso tudo depois. Caso contrário, teria exigido alguma ação. A mãe chamava no celular. A filha trocou e não deu o número novo. Às vezes, ligava. Ou telefonava para algum parente dizendo que estava bem. Negava sempre o endereço. Largou escola. Mudou de clube para praticar natação, mas avisou: se a mãe aparecesse, nunca mais falaria com ela. No aniversário, minha funcionária esperou um telefonema que não veio. Nem no Dia das Mães. No aniversário da filha, comprou uma corrente de ouro a prestação, na esperança de vê-la. Que nada!
– Só sei que está viva – disse.
Minhas piores expectativas se confirmaram quando um funcionário meu, de São Paulo, contou que, numa viagem ao Rio, a garota mostrara sua página no Orkut. Apresentava-se com o nome seguido do adjetivo “safadinha”.
Um ano depois, sem explicação alguma, a filha reapareceu. Procurou a mãe, e tiveram uma longa conversa. Na semana seguinte, voltou para casa. Nunca disse onde morou, o que fez nesse intervalo.
– Um dia eu conto.
Arrumou namorado e hoje mora com ele. Tenta voltar a estudar e foi trabalhar em telemarketing. O esporte saiu do horizonte. Assim como os sonhos da mãe, que sempre dizia:
– Eu queria que minha filha tivesse o que não tive.
Pois é. Ao que tudo indica, não terá.
É uma história tremenda, que presenciei. Na minha imaginação, essa garota fez mil coisas. No mínimo, estava com alguém que não queria assumir o relacionamento, talvez por ser casado. Pensando na página do Orkut, sei não...
Disse que hoje me sinto piegas. A ingratidão dos filhos é palpável, acontece sempre em algum momento. Em certos aspectos, até me identifico com essa garota. Adolescente, também brigava com minha mãe pelas coisas que ela não podia me dar. Quando ela ficou gravemente doente, recebi o conselho de uma amiga:
– Se tiver alguma coisa para dizer a sua mãe, é agora. Depois, ela não estará lá para ouvir.
Até hoje agradeço esse aviso. Tive a oportunidade de dizer quanto amava minha mãe e quanto era feliz por ser seu filho. Valeu.
Vejo muitos livros ensinando mulheres a ser mãe, desde que a gente nasce até em outras fases da vida. Mas também é preciso aprender a ser filho.
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