por Abderrahim El Ouali, da IPS
Casablanca, Marrocos, 30/04/2014 – Uma proposta para igualar os direitos de herança de homens e mulheres divide o Marrocos: para os “modernistas” é uma aplicação das garantias estabelecidas na Constituição, para os islâmicos é uma violação da lei islâmica ou shariá. E há os extremistas que simplesmente querem matar os que promovem a igualdade de direitos.
O tribunal penal de Casablanca sentenciou, em fevereiro, o xeque Abou Naim a um mês de prisão adiada e multa equivalente a US$ 60 por emitir uma fátua (decreto religioso) ordenando a morte de Driss Lachgar, secretário-geral da União Socialista de Forças Populares (USFP) e outros ativistas de esquerda.
Lachgar presidiu, no dia 20 de dezembro, uma reunião de mulheres do partido na qual pediu revisão das leis de herança para estabelecer um sistema igualitário entre homens e mulheres. Em um vídeo divulgado pelo YouTube, Naim acusa Lachgar de ímpio e apóstata, e conclamou publicamente que o matassem. Além disso, o xeque qualificou de “putas” as mulheres da USFP.
Para alguns, a sentença contra Naim é muito leve. Salah El Wadie, líder do movimento Damir (consciência), destacou que a condenação foi por difamação e não por incitação ao assassinato. O escritor Ahmed Assid, descrito como “porco” no vídeo de Naim, disse à imprensa que o julgamento foi “uma farsa”. Terminado o processo, o debate sobre os direitos de herança apenas começa.
Fatima Ait Ouassi, do movimento 20 de Fevereiro que cobra igualdade de direitos, disse à IPS que “agora é uma necessidade que homens e mulheres compartilhem a herança de maneira equitativa”. Esse movimento surgiu em 2011 no contexto da Primavera Árabe, e promoveu com êxito uma nova Constituição, aprovada em referendo em julho do mesmo ano. A nova Carta Magna estipula a divisão igual de bens entre homens e mulheres.
No entanto, o gabinete islâmico formado logo depois das eleições gerais, em novembro de 2011, incluiu apenas duas mulheres. Com a mudança de outubro de 2013, entraram seis ministras entre 39 ministros. O Marrocos ainda está longe da igualdade de gênero na política, mas nada impede o governo de cumprir a Constituição, pontuou Ouassi.
“Já não vivemos na velha sociedade árabe na qual surgiu o Islã e onde as mulheres viviam sob a supervisão dos homens”, afirmou Ouassi à IPS. “Agora as mulheres trabalham e contribuem plenamente para os bens familiares, como os homens, e é inconcebível que sejam aplicadas leis de desigualdade quanto à herança familiar”, acrescentou. Segundo Lachgar, 19,3% das mulheres urbanas e 12,3% das rurais são chefes de família.
Em caso de morte de um dos pais, a filha tem direito à metade do que herda o filho, segundo a rígida aplicação da shariá. Se morre um homem casado, à esposa corresponde a oitava parte da herança, apesar de “as mulheres trabalharem mais do que os homens”, ressaltou à IPS Samir El Harrouf, membro do Partido Socialista Unido (PSU).
Os conservadores consideram que isso é uma aplicação literal da “lei divina”. O especialista em jurisprudência muçulmana Redouane Benchekroune disse a jornalistas que “ninguém pode modificar os textos sagrados em relação a herança e poligamia”. Mas há outras interpretações. “Segundo meus estudos, isto é simplesmente uma falsa interpretação dos textos”, afirmou Harrouf à IPS. O que o Corão concede às mulheres em matéria de herança é apenas o mínimo a ser respeitado; nada impede que lhe seja dado mais, acrescentou.
Novos estudos sobre jurisprudência mostram a necessidade de “distinguir nos textos religiosos entre as constantes e as variáveis”, explicou Harrouf. “As constantes são os assuntos de fé e culto. Outros requisitos variam segundo o contexto social e histórico, e dependem das condições específicas de cada sociedade e de uma fase particular de seu desenvolvimento histórico”, detalhou.
Ouassi concorda. “Assim como fomos capazes de emendar o código de família, temos que revisar as leis de herança que contradizem os tratados internacionais sobre direitos humanos. Devemos frear imediatamente todas as formas de discriminação das mulheres”, afirmou.
O Marrocos ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher no dia 21 de junho de 1993. Um novo e mais igualitário código de família se converteu em lei em 2005. Segundo o novo código, a poligamia está proibida exceto se a primeira esposa consentir e for autorizada por um tribunal competente.
Mas as pessoas dão um jeito de burlar a lei, casando-se fora dos registros oficiais. Quando uma nova esposa fica grávida, o tribunal é obrigado a ratificar o casamento, porque entram em jogo um recém-nascido e seus direitos civis. Portanto, os setores progressistas pedem que a poligamia seja simplesmente ilegalizada. Os islâmicos que agora estão à frente do governo, e que eram oposição quando o código foi aprovado, o qualificam de “uma incitação à prostituição”.
Entretanto, nesse debate também eles estão divididos. O governante Partido Justiça e Desenvolvimento (PJD) considera que a campanha por herança igualitária constitui uma pressão estrangeira para alterar a “identidade da nação”. Mostafa El Moutassim, líder do partido islâmico Alternativa Civilizacional, afirmou, em um artigo em sua página no Facebook, que está disposto a revisar as leis que regem a divisão da herança. Envolverde/IPS
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