Num ato de mulheres pelos direitos da mulher, homens se acharam no direito de ridicularizá-las e até de se masturbar em público. Por quê?
por Clarice Cardoso — publicado 31/10/2015
Clarice Cardoso
Ato de mulheres: Cunha sai, a pílula fica
Nenhuma mulher se surpreendeu quando eu contei do rapaz branco, “bem vestido”, e aparentemente de classe média que decidiu se masturbar em plena Avenida Paulista, em São Paulo, enquanto milhares de mulheres protestavam contra o presidente da Câmara Eduardo Cunha, o PL 5069/13 e as cotidianas violências a que estão sujeitas.
Foi na esquina da própria Paulista, assistindo ao ato do outro lado da rua, que aquele rapaz de cerca de 30 anos de idade resolveu abrir as calças, colocar o pênis para fora e se exibir.
Eu esperava o farol fechar para atravessar quando percebi que ele olhava para mim e sorria. Eu já estava no meio da travessia quando percebi o que ele tinha na mão. A única reação foi sair dali o mais rápido possível.
Esse episódio não surpreendeu nenhuma mulher com quem eu conversei. Pior, passei a ouvir os mais variados relatos de situações similares.
Este não é um texto sobre este e os outros homens que encontrei na rua na sexta-feira. Esses homens que se infiltraram num ato de 15 mil pessoas para assediar mulheres e tentar, talvez, causar algum tipo de dispersão.
Este é um texto sobre a absurda incompetência do Estado em garantir a segurança de mulheres nas ruas das cidades, mesmo quando se trata de um ato feito por mulheres pelos direitos das mulheres.
Porque foi isto o que fez com que o cara da esquina achasse que ele podia fazer o que fez: a certeza da impunidade. Nenhum policial iria fazer nada porque sabemos, vemos todos os dias, não é atrás de pessoas assim que a polícia vai. E mesmo se fosse, “atentado ao pudor” é uma redução leve demais para o que acontece.
Pouco antes, tinha observado com atenção os homens que por ali passavam, alguns acompanhando suas mulheres e filhos, outros sozinhos ou com amigas, que caminhavam por São Paulo em sinal de apoio a questões de que eles só conseguem se aproximar por um exercício enorme de abstração. Alguém que não sabe o que é o medo do estupro gritando contra essa cultura é uma pessoa louvável.
No meio deles, um grupo de jovens vestidos de mulher, como se fossem a um baile de Carnaval, caminhava de um lado ao outro da rua se achando muito espirituosos. Porque é engraçado para eles ridicularizar as mulheres (cis e trans). Porque nossos corpos estão à disposição para usar, agredir, julgar ou fazer piada. Não estão? O Congresso acha que sim.
Eles só não eram piores que o grupo que se comportava como se estivessem numa balada. Entre milhares de mulheres, o teste do macho era para ver quem “pegava” mais mulheres. Um comportamento já por si só condenável replicado num ato sério, representativo, que precisa ser tratado com toda a seriedade que merece.
Dois chamaram a atenção pelo “apoio” às avessas que davam à causa. Sem camisa, usaram batom para escrever no corpo: “Meu útero, minhas regras”. A lógica explica o que há de errado nisso.
O que na pauta de demandas de todas aquelas mulheres incomodou tanto esses homens a ponto de eles lançarem mão do assédio como única forma de resposta? Por que é tão difícil para eles respeitar uma situação em que eles não são os protagonistas? Uma situação em que ninguém precisa pedir a ajuda deles para ser ouvida?
É quase como se o assédio fosse a última carta na manga para tentar voltar à cena.
Eu estava trabalhando, usando o crachá que me identifica como jornalista de CartaCapital, quando isso aconteceu. Não é o constrangimento no exercício da profissão o que mais me incomoda, estaria lá também se a situação fosse outra.
O que incomoda é pensar que eu não estava sozinha quando isso aconteceu, e que é aterrador imaginar que poderia ter acontecido se eu estivesse. E de quem seria a “culpa” aos olhos da sociedade.
Nem no meio de milhares de pessoas que gritavam ali em meu nome eu estava a salvo. Porque não existe hoje uma mulher “a salvo”. Nem nos mais altos escalões do poder elas estão livres de serem vítimas do machismo.
O homem de camisa polo não estava ali para me assediar pessoalmente, mas para assediar a Mulher. É absurdamente simbólico que esse cara tenha aparecido ali, naquele ato, contra aquele outro cara, Eduardo Cunha. Ambos povoam áreas afins de vilania, movidos por delírios de grandeza semelhantes e sofrendo de crueldade patológica e de desprezo pelas mulheres e pelas minorias.
Ontem, um homem de classe média me agrediu. No resto dos dias, tem sido o Estado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário