O estupro coletivo de uma garota de 16 anos no Rio de Janeiro exige que o país enfrente sua face selvagem
HUDSON CORRÊA, THAIS LAZZERI E SÉRGIO GARCIA. COM DANIEL HAIDAR, ALINE RIBEIRO E VINÍCIUS GORCZESKY
27/05/2016
>> Trecho da reportagem de capa de ÉPOCA desta semana:
Na noite da terça-feira (24), um vídeo abjeto foi compartilhado na imensidão das redes sociais. Durante cerca de 30 segundos aparecem imagens de uma garota nua e desfalecida em uma cama, com a vagina sangrando, com ao menos duas vozes ao fundo, que zombam da vítima. Um dos carrascos diz: “Mais de 30 engravidou (sic)”. No dia seguinte, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro já havia recebido cerca de 800 denúncias referentes ao vídeo, e a polícia tentava checar a veracidade e localizar a vítima. Uma organização feminista avisou a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa e convenceu a família a levar a garota à polícia. Na madrugada da quinta-feira (26), uma jovem de 16 anos, altura mediana, foi à Central de Delegacias da Zona Norte do Rio de Janeiro denunciar que havia sido vítima de um estupro coletivo. No encontro entre o relato de quem sofreu uma violência e a frieza necessária do registro, tem-se contato com uma bestialidade ocorrida no Rio de Janeiro em pleno ano de 2016.
Na delegacia, a jovem contou o que aconteceu entre o sábado (21) e sua chegada ali. Ela disse que saiu de casa para encontrar o namorado, morador do Morro do Barão, em Jacarepaguá, na Zona Oeste. Lembra-se de ter acordado no dia seguinte “nua, dopada e cercada por 33 homens com fuzis e pistolas”. Ela então vestiu uma roupa masculina e voltou para casa – na verdade, chegou à residência com a ajuda de um agente comunitário, segundo sua família contou. Na terça-feira (dia 24), a jovem voltou ao morro para recuperar seu telefone celular, que havia sido roubado. No depoimento, ela dá a entender que, nessa segunda ida, relatou o que aconteceu ao chefe do tráfico local. Ainda em seu curto depoimento, a jovem disse ser consumidora de ecstasy e lança-perfume, mas que havia um mês não usava drogas.
Como é comum em episódios de estupro, o relato da jovem tem lacunas, compreensíveis pelas particularidades de um crime sexual. O chefe da Polícia Civil, delegado Fernando Veloso, diz que “há indícios veementes de que ocorreu estupro”. Até o final da sexta-feira havia dúvidas sobre quantas pessoas participaram da ação. A jovem diz ter visto 33 homens; o narrador do vídeo sugere que “mais de 30” participaram do estupro. Ao menos quatro suspeitos são investigados. Lucas Perdomo Duarte Santos, o Petão, é citado no depoimento como o namorado da garota. Petão tem 20 anos e é jogador de futebol profissional, disputou o Campeonato Carioca deste ano pelo Boavista, clube de Saquarema. Os outros três citados são Raphael Assis Duarte Belo, Marcelo Miranda da Cruz Correa e Michel Brasil da Silva – os dois últimos são suspeitos de propalar o vídeo na internet. Até o início da tarde da sexta-feira, ninguém havia sido preso.
O essencial, no entanto, é inegável. A jovem foi estuprada, violentada, como acontece com uma mulher a cada 11 minutos no Brasil. A revolta é maior porque seus estupradores não só filmaram, como compartilharam a selvageria em redes sociais, com demonstrações de orgulho. “O que mais assusta nessa situação profundamente lamentável é que foi um estupro, coletivo e ainda por cima com um terceiro elemento: a forma fria como foi divulgado, como se fosse um fato a ser comemorado”, afirma a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade da Universidade de São Paulo (USP). Não é um caso único. Em março, quatro homens suspeitos de integrar uma milícia foram presos, sob a acusação de terem estuprado uma menina de 13 anos também na Zona Oeste carioca. “O episódio de agora é revelador de uma cultura de violência contra a mulher, como se o corpo e a sexualidade da mulher não pertencessem a ela”, diz Silvia Chakian, coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (Gevid), do Ministério Público de São Paulo. “Não se trata de um desvio de um estuprador. Foram 30 homens que participaram e não fizeram nada para evitar um crime dessa natureza”, afirma a promotora. Não só não interferiram, como filmaram o episódio e fizeram questão de propagar a bestialidade por redes sociais, com o retuíte do vídeo, acompanhado de comentários jocosos, que fazem referência também a um chefe do tráfico local, preso em 2014. Alguns deles revelam seus rostos. “Ao apresentarem a prova do próprio crime, a mensagem que passam é que eles não acreditam na punição, não acreditam na Justiça”, diz Silvia. A junção de práticas abjetas com ferramentas contemporâneas não é inédita no mundo: terroristas do Estado Islâmico divulgam nas redes sociais vídeos com as decapitações de reféns, em nome de crenças da Antiguidade. Agora, sabe-se que o Brasil do século XXI também tem seus neandertais digitais, que estupram uma menina como selvagens e têm orgulho de usar a tecnologia para exibir seu ato em redes sociais.
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