Marcia Tiburi
Filósofa
Tudo começa com uma inversão
Em Eva e os Padres, livro do historiador Georges Duby (Cia. das letras, 2001), lemos a história de um tal Gervais de Tilbury que, passeando entre as vinhas na região de Champagne, encontrou uma moça. No relato Gervais de Tilbury “acha-a atraente, fala-lhe ‘cortesmente de amor lascivo’, prepara-se para ir mais longe. Ela o trata com rudeza, recusa-se: ‘se perder minha virgindade, serei condenada’. Gervais cai das nuvens. Como se pode resistir a ele? Sem dúvida, essa mulher não é normal. É uma herética, uma dessas cátaras que se obstinam em considerar toda cópula diabólica. Ele tenta trazê-la à razão, não consegue. Denuncia-a. Ela é presa. Julgada. A prova é incontestável. Ela é queimada.” (p. 65)
Alguém poderá pensar na ironia da situação, considerando as notícias daquela época quanto à abominação ao sexo por parte da Igreja. No entanto, estamos diante de uma narrativa de perversão. A partir da intenção de Gervais de Tilbury, a moça em questão estava encurralada: ou cedia ou morria. Cedendo ou resistindo, ela não tinha saída. Que a prova de sua condenação fosse “incontestável” – afinal é uma prova apresentada por um clérigo, um homem da Igreja! – e que a moça tenha acabado na fogueira, seria já infinitamente perverso se não fosse ao mesmo tempo que perverso, também assustadoramente atual.
Uma condenação prévia
Esta situação perversa, revela o que podemos chamar de “lógica do estupro” tal como ela funciona ainda hoje operando em nosso modo de pensar a relação sexual entre homens e mulheres (falo de homens e mulheres tendo em vista que estas categorias é que põem em jogo este tipo de violência). Na lógica do estupro, a vítima – uma mulher – não tem saída: de qualquer modo ela será condenada quando, de antemão e sem análise, ela já foi julgada. Cedendo ao estupro ou não, ela será condenada. A vítima é sempre questionada segundo a lógica do estupro que, desde a época da inquisição, era objeto de um sujeito que faria dela o que bem quisesse. O criminoso, na lógica do estupro, não é questionado, porque ele é homem e segundo a lógica do estupro não se objetifica um homem.
Na lógica do estupro toda e qualquer culpa recai sobre a vítima. Ao fazer recair a culpa sobre a vítima, o estuprador não é responsabilizado por seu ato. O estuprador projeta sua culpa no outro e pode aproveitar sua liberdade. Ora, um estuprador não consegue isso sozinho. Ele precisa do apoio de muita gente. De uma sociedade inteira. Na idade média, Gervais de Tilbury teve apoio total da igreja e do tribunal que funcionava segundo leis da própria Igreja, leis feitas por padres: o tribunal da “santa” inquisição. “Santa”, neste caso, também não é uma simples ironia, mas uma perversão.
A responsabilidade em jogo
Ora, ontem como hoje não há estuprador que queira responsabilizar-se por seu ato. Então, a sociedade pode ajudá-lo. O ato de responsabilizar-se implica a capacidade de reconhecer que outras pessoas “lesadas” por um ato tem o direito de reivindicar reparação. E o direito de exigir proteção contra o crime possível. Mas o estuprador não é culpado por seu ato por que ele age dentro da lógica sustentada socialmente, o que implica uma “razão” das coisas. Ou o estuprador age por razão, como o estuprador Gervais quando ele se achava com “a razão”, ou por sua “natureza” de homem (que era sua “razão”), achando-se “no direito” de fazer sexo com uma mulher a quem encontra por aí, independentemente da vontade da mulher em questão de fazer sexo com ele. Isto é absurdo se pensamos segundo a lógica democrática, mas não é absurdo segundo a lógica do estupro que é antidemocrática em seu âmbito mais íntimo e que serve para desresponsabilizar quem detém o poder. A melhor definição de ditadura que podemos usar é essa: ditadura é quando o poder mata sem precisar responsabilizar-se pelo que faz. O poder inventou a lógica do estupro, ou o estupro inventou a lógica do poder? A resposta é mais que simples.
Toda mulher é estuprável ou o sexo é apenas lógico
No caso da história contada acima, a moça não foi estuprada por Gervais, mas era considerada por ele como “estuprável”. Foi para a fogueira porque se recusou ao sexo, mas também porque julgou o sexo que era dela demandado como algo que a prejudicaria. Porém, o estupro potencial que podemos ver neste caso, não era visto por Gervais como um estupro. Era, segundo sua lógica de estuprador, apenas seu “direito”. O sexo nele implicado não era considerado algo hediondo nem diabólico – embora fosse o único verdadeiramente hediondo e diabólico . Por um mecanismo projetivo pelo qual ela deveria ceder a um homem “irresistível”, o próprio estupro era, naquele contexto, apenas uma espécie de sexo “lógico”. Não um estupro. O crime de Gervais não era, para ele, um crime. E porque não era um crime? Ora, simplesmente porque era ele – e sua instituição, a Igreja – quem ditava as regras e as ditava pervertendo o sentido das coisas e acusando o outro de não ter entendido o sentido das coisas. A moça – que era a vítima – é que foi acusada de crime numa inversão perversa que apenas a lógica do estupro é capaz de sustentar, lógica que é elementar no machismo universal a que mulheres estão submetidas há muito tempo.
Pela lógica do estupro, a mulher é sempre “caça”, “presa”. Pela lógica do estupro pensa-se mais no “erro” da vítima, do que no “erro” do criminoso. É como se a vítima fosse culpada por não ter escapado, por não ter corrido mais rápido, por não ter desaparecido antes. Ou por ter “parecido” mulher demais. No Brasil e em muitos outros países, como a Índia – para dar o exemplo do país mais estuprador do mundo – a lógica do estupro faz com que mulheres precisem camuflar-se para sobreviver. Mas mesmo assim, bem protegidas, elas serão estupradas. Mesmo com burcas, porque, como a moça desejada por Gervais, o estuprador pensará como Gervais e lançará sobre ela sua condenação.
Melhor não parecer mulher demais, reza a lógica do estupro, mas acrescente-se que na lógica do estupro, ao mesmo tempo, faz-se a apologia da mulher objetificada pela indústria cultural da pornografia, na publicidade, no cinema, na moda, nas revistas e programas de televisão do chamado “universo feminino”, uma das armadilhas mais bem sucedidas na invenção do “ideal feminino”. Na lógica do estupro a ambiguidade reina: ser mulher tem dois pesos e duas medidas que sempre são ditadas segundo a lógica do estupro típica da sociedade masculinista, machista, em resumo: patriarcal.
Levando a história do estuprador Gervais de Tiblury em conta e lembrando a pesquisa do IPEA (http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=21861&catid=159&Itemid=75) que, há poucos dias, mostrou o status da mentalidade brasileira relativamente à questão do estupro, creio que podemos justamente pensar muito mais na questão da lógica do estupro que rege a mentalidade brasileira atual. Por essa lógica, vale repetir, a vítima é sempre a culpada. Ora, a lógica do estupro não é outra que a da dominação em geral, mas aplicada à mulheres. É a mesma lógica que permitia que brancos, “donos” de negros por eles escravizados, privassem de liberdade, espancassem e matassem os negros. É a mesma lógica, infelizmente, que se aplica por parte do governo – ou dos donos do poder em geral – aos pobres hoje em dia.
A questão das mulheres que participaram da pesquisa do IPEA e o problema da mentalidade geral
Tendo em vista ainda que a ampla campanha “Não mereço ser estuprada”, que circulou pela internet, teve efeitos reativos tais como manifestações organizadas por grupos de homens que, como herdeiros de Gervais, o estuprador medieval, afirmam “Tenho direito de ser machista”, podemos meditar um pouco mais na mentalidade estupradora, infelizmente comum tanto em homens quanto em mulheres como a pesquisa do IPEA veio a mostrar. Pensemos, primeiramente, nas mulheres (os homens são um problema mais complicado de entender e falaremos deles mais abaixo). Quanto às mulheres que pensam assim, podemos dizer que não refletiram sobre o que lhes concerne. Neste sentido, é preocupante que 65% dos entrevistados (homens e mulheres) tenha concordado com a frase “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Ao mesmo tempo, considerando que mais de 90 % das pessoas entrevistadas pensa que “marido que bate em mulher deve ir para a cadeia”, fica evidente, a ambiguidade que habita a mentalidade quanto ao sentido da violência contra mulheres.
Das pessoas em geral não se pode dizer que sejam a favor da violência contra mulheres pura e simplesmente, mas que entendem que o estupro é um tipo de violência “diferente” em função de algo que a mulher fez – daí a questão do “merecimento”. Esta violência que é o estupro – na lógica do estupro – é uma violência de certa maneira “merecida” pela vítima que, a rigor, não é mais tida como vítima, mas numa inversão perversa, torna-se a “culpada”. Isso não quer dizer que 65% dos brasileiros são a favor do estupro, não é simples assim. Também não quer apenas dizer que o estupro seja um tipo de violência que tenha a participação da vítima como culpada. Não é lógico neste sentido. O estupro é o ato em que a outra – a estuprada – não tem nenhuma chance de defesa porque a priori está condenada. Quando 65% da população brasileira diz o que diz, ela afirma que as mulheres não deveriam existir.
O que é “ser mulher” enquanto “ser estuprável”?
Isso porque vivendo dentro da lógica do estupro 65 % da população pensa que ninguém deveria simplesmente ser mulher. Ora, o que é “ser mulher”? Não é possível usar qualquer tipo de essencialismo, qualquer definição seria um erro ontológico (a filosofia e a teologia, bem como todas as ciências e sociedade como um todo, cometeram esse erro essencializando ou naturalizando as mulheres sob o termos “a Mulher”). Ora, ser mulher, em um sentido prático não passa de “parecer mulher”. Na lógica do estupro “ser mulher” é condição ontológica passível de estupro. Daí que os machistas se achem no direito de estuprar também travestis que também são mulheres. O estupro é como uma condenação dirigida a todos os que “são mulheres”. Portanto, na lógica do estupro que rege a sociedade o veredicto que se lança à qualquer mulher é: “Você está condenada ao estupro”. E por quê? Porque, segundo essa lógica a mulher é ontologicamente condenável por ser/parecer. Sua aparência, sua condição estética, apenas revela sua condição ontológica. Daí o apelo que o estuprador faz à roupa. Porque a roupa faz qualquer um parecer mulher e, ao parecer, ser mulher de alguma forma, ou seja, o ser “estuprável”.
Pensar na vítima e esquecer o criminoso
Até agora falamos muito da vítima que faz parte, que é a presa, da lógica do estupro. Mas é justamente a lógica do estupro, como dissemos, que faz pensar mais na vítima do que no criminoso. Por isso, é importante perceber que a lógica do estupro é a mesma que o regime nazista aplicou aos judeus nos anos 40 na Alemanha, que os judeus aplicam aos palestinos hoje, que os franceses aplicaram aos nigerianos, que os donos do maquidonaldis aplicam aos seus usuários e funcionários, que o governo aplica aos pobres sob o regime policial militar atual, que os ruralistas brasileiros aplicam aos índios brasileiros afirmando que eles estão errados em suas reivindicações. São exemplos no mar de exemplos do mundo. O ódio ao outro se diz de muitos modos, muitos são vítimas do ódio patriarcal (capitalista, judaico-cristão-islâmico, europeu) e as mulheres sempre foram vítimas especiais desse ódio diretamente dirigido a elas dentro de casa e em todos os espaços visuais ou virtuais nos quais elas forma transformadas em objetos mistificados pela ambiguidade misógina que às vezes elogia para poder dominar melhor.
Pensamos muito na vítima, porque assim é a lógica do estupro. Este é um problema que termos que resolver se quisermos superar a lógica do estupro. Aqui devemos começar a nos ocupar dos homens. Os próprios homens, potenciais estupradores, podem questionar-se sobre o sentido de ser algo como um “homem” em nosso mundo. Ser “homem” é algo muito antigo e, com todo o respeito, eu diria que é muito antiquado também. Por outro lado, cabe a toda a sociedade estudar melhor não a vítima, mas justamente a pouco percebida figura do “sujeito estuprador” que, salvo exceção, é sempre “homem” (qualquer exceção que venha a ser levantada confirmará a regra geral de que o estupro é realizado por homens contra mulheres e contra todos aqueles que tiverem características consideradas femininas, homossexuais, travestis. Crianças e animais inclusos).
Como alguém se torna um estuprador?
Gostaria neste sentido, de levantar alguns aspectos importantes a serem levados em conta na tentativa de pensar a condição masculina enquanto estupradora. A pergunta central que tenho em mente é a seguinte: “como alguém se torna um estuprador?”. Penso que esta pergunta pode nos ajudar a pensar o estuprador que a sociedade (pais, professores, instituições, meios de comunicação de massa) cria diariamente. O estuprador é aquele que se vê tendo um estranho “direito ao estupro” como aquele que reivindica o “direito de ser machista”. Ele só pode pensar assim porque é uma personalidade autoritária que, como tal, não tem capacidade de ver o “outro”. Paranoico, ele se sente o centro do mundo, o mundo no qual ele é o rei e a mulher é, quando muito, uma serva. Neste sentido, todo estuprador é como Gervais de Tilbury, ele se acha um homem irresistível. E, como o cônego medieval, pensa que tem toda a razão ao desejar uma mulher e decidir queimá-la na fogueira porque não teve dela o que queria. Como Gervais de Tilbury, o estuprador, que reivindica à “santa” inquisição da sociedade o direito de ser machista como direito de aviltar e violentar mulheres, é também um “histérico” que move um mundo (as redes sociais, por exemplo) para ocultar a ferida narcísica que a rejeição produziu nele. Ele disfarça até aniquilar o outro para poder ser alguma coisa. Muitos nunca pensaram na questão séria da histeria masculina porque, na lógica do estupro, só se deve pensar que mulheres é que são histéricas. Assim o estuprador, autoritário e irresponsável, mas sobretudo, ele mesmo um histérico, reivindica a supremacia masculina por meio do pedaço de carne a que chamamos pênis e que é só o que lhe restou quando ele mostrou seu vazio, sua miséria subjetiva, seu narcisismo infantilóide (por que parece com uma caricatura infantil da época em que ele mostrava sua genitália aos coleguinhas no banheiro) que, arranjados na lógica do estupro definem a condição inumana na qual ele se compraz.
Ainda vivemos na idade média. Só invertendo a lógica do estupro sairemos dela.
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