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sábado, 14 de maio de 2016

Quatro problemas estruturais brasileiros que a epidemia de zika revela

Em debate promovido pelo Saúde!Brasileiros, os especialistas Daniela Pedroso, Thomaz Gollop e Artur Timerman destrincham com coragem quais são os impasses históricos descortinados pelo zika que teremos de enfrentar de uma vez por todas

Em meio a tantas dúvidas sobre uma das maiores tragédias de saúde pública do Brasil, alguns fatos dispensam estudos clínicos para serem demonstrados. Eles remontam a deficiências históricas, a gargalos dos quais o País têm tanta dificuldade de sair que, nas tentativas frustradas de apagar o fogo, cria verdadeiros incêndios. Nessa bagunça, são poucos que conseguem -ou têm a coragem- de chegar a raiz de tantos contratempos acumulados. Mas no debate promovido pelo Saúde!Brasileiros e Circuito Mulheres Mobilizadas SP, reunimos alguns deles. 
“Essa tríplice epidemia serve para discutirmos uma série de fatos que a ela se associam, desde o saneamento básico até a situação das nossas mulheres”, enfatiza o infectologista Artur Timerman, um dos convidados desse corajoso time.
A psicóloga Daniela Pedroso e o ginecologista Thomaz Gollop também foram os especialistas que falaram a uma plateia exigente nesta segunda-feira (7), na Livraria Cultura do Shopping Bourbon. Juntos, eles conseguiram elencar quatro problemas estruturais -muitos deles históricos- que a epidemia de zika e alterações associadas a ela revelam. São eles:
Da esquerda para a direita, Daniela Pedroso, Thomaz Gollop, Artur Timerman, Monique Oliveira e Monica Tarantino no debate da Livraria Cultura. Foto: Miguel Said Vieira.
Da esquerda para a direita, Daniela Pedroso, Thomaz Gollop, Artur Timerman, Monique Oliveira e Monica Tarantino no debate da Livraria Cultura. Foto: Miguel Said Vieira.

1) Há uma omissão sobre as graves consequências das anomalias associadas ao zika;
2) A mulher não tem o direito de decidir. Mães serão obrigadas a cuidar de crianças com graves problemas sem o direito de optarem pela interrupção da gravidez;

3) O discurso do combate ao mosquito esconde um grave problema histórico de saneamento básico;

4) As outras epidemias não estão sendo tratadas com a seriedade que merecem; São Paulo trata o problema como se zika fosse só no Nordeste


1) Há omissão sobre as graves consequências das anomalias associadas ao zika.

“Então, deixa eu falar algo pra vocês, os profissionais de saúde estão falando assim, né: ‘Mamãe, canta pra ele que ele vai ouvir, que ele vai cantar’. Isso é mentira, tá? Os bebês seriamente comprometidos vão ter deficiência mental e psicomotora grave”, diz Thomaz Gollop. “Omitir essa informação é um absurdo completo.”
O próprio Thomaz Gollop, que também é especialista em medicina fetal, dá uma ideia da extensão do problema e porque se faz necessário não limitar o que está acontecendo à microcefalia somente. “São dois tipos de microcefalia. Na primária, não há nenhum tipo de deficiência intelectual ou cerebral, só há um defeito na caixa craniana. Já na secundária, há um outro fator externo em que extensão dos danos é bem maior –como é o caso do zika.”

O especialista cita um estudo publicado no prestigiado JAMAcom 31 bebês nascidos mortos, suas mães tiveram infecção pós-zika. O artigo mostra a extensão do problema. Deficiências oculares graves, alterações auditivas, anomalias cerebrais, calcificações intracranianas e alterações nas articulações em alguns bebês.
“Isso não é microcefalia. Isso é uma síndrome. É um conjunto de anormalidades causadas muito provavelmente causado pelo zika. O termo microcefalia é totalmente inadequado para mostrar o que está acontecendo”, diz Gollop.

Os convidados frisam que as pessoas não estão sendo informadas sobre tudo o que está acontecendo, e a extensão desse problema. “Essas mães não sabem o que esperar dessas crianças. Elas estão sendo deixadas à deriva. Não há atenção, não há suporte por parte dos nossos governos. Há um papel do Ministério de amenizar o que está acontecendo, então, a gente fica com a impressão de que estamos falando de uma deficiência mental leve. Não se coloca todas as consequências que são nefastas para essas criança e para essa família às claras”, enfatiza Daniela Pedroso.
Artur Timerman conta sua experiência e também corrobora que o problema é muito maior do que está sendo colocado. “Eu fui visitar um colega no Rio Grande do Norte e ele me disse: ‘Estamos vendo coisas que nunca vimos antes. Crianças com excesso de pele, bebês com a aparência de idosos de 90 anos, totalmente deformadas.”
Foto: EBC
Especialistas consideram que há uma omissão sobre as graves anomalias associadas ao zika. Foto: EBC














“Se tem algo muito sério que o Ministério está falhando, e está falhando em várias, uma das mais importantes é a falta de orientação para que essas mulheres posterguem a gravidez.
“Eu no consultório estou reservando uma hora todo dia para atender telefonema de mulheres angustiadas e inquietas. Eu me coloco na posição de uma mulher com vinte semanas de gravidez que vai fazer um ultrassom. Deve ser um momento muito angustiante para ela.”
Timerman reproduz um desses diálogos, que tem nos consultórios para ilustrar o quanto há de desinformação sobre o assunto. 

M: Eu tenho chance de ter tido zika? 

T: Tem. Lógico que tem. A secretaria aqui de São Paulo acha que não, mas tem. 

M: Tem como eu saber? 

T: Ainda não. Nós não temos o teste sorológico.

M: Se eu tive, tem chance de transmitir para o meu filho? 

T: Tem. Segundo um estudo recém-publicado, há tem 30% de chance, que é um número elevadíssimo, muito maior do que para a rubéola e para outras infecções. 

M: O senhor acha que eu devo abortar? 

T: As informações eu já te dei. 


2) A mulher não tem o direito de decidir. Mães serão obrigadas a cuidar de crianças com graves problemas sem o direito de optarem pela interrupção da gravidez. 

“Porque o Estado brasileiro sempre nega a nós, mulheres, o direito de decidir?” pergunta Daniela Pedroso, que também é psicóloga e chefe Núcleo de Aborto Legal do Hospital Pérola Byington, em São Paulo. Daniela classifica como tortura a obrigação que o governo impõe para que mulheres leve a gestação como essa diante e diz também que essa postura infringe todos os tratados de direitos humanos internacionais dos quais o Brasil é signatário.

“Ninguém nunca lembra dessa mulher. Está todo mundo pensando como vai ser esse bebê, como vai ser essa criança. Mas e como é que fica essa mulher carregando uma gestação por sete meses sem saber o que esperar dessa criança, como cuidar, o que fazer? Por que essas mulheres não podem ter, novamente, o direito de decidir?” 

Daniela lembra que o aborto no País já é “legalizado”, mas para algumas pessoas. “O aborto é sim permitido para as mulheres que têm dinheiro. Para as que podem pagar uma clínica, para as que podem pegar o avião e fazer no País onde é legalizado.”
Para Gollop, a mulher também deve ter o direito de decidir e pondera que trata-se de uma escolha -e não de uma banalização do aborto. “Permitir essa opção não significa de maneira nenhuma que a mulher vai ser obrigada a interromper a gestação. Ela vai ter a possibilidade legal de ter assistência médica, se ela decidir que ela não tem ombros para carregar um bebê com esse tipo de problema.”

Também o especialista enfatiza que a decisão sobre o aborto é de foro íntimo. “Se 70% é contra o aborto, os outros 30% devem decidir segundo o que acham. Eu não quero saber o que a minha vizinha acha que eu devo fazer com o meu bebê que é anormal, ela não vai criar o meu filho deficiente. É muita hipocrisia.”

No Brasil, por ano, 700 mil mulheres provocam o aborto por causas diversas, cita Gollop. “Se nós colocássemos essas mulheres na cadeia, os governos teriam que deslocar uma fortuna para fazer cadeia porque não tem lugar para todas elas.”
Timerman também foca na necessidade de permitir que a mulher tenha essa opção. “A decisão é dela, da mulher. E vai ter todo o meu apoio qualquer que seja a opção”, diz. “Não tem nada a ver, mas vocês lembram que até 1977 era proibido o divórcio no Brasil?”, pergunta.

3) O discurso do combate ao mosquito esconde um grave problema histórico de saneamento básico.

Outro consenso entre os convidados é sobre o saneamento básico ser o pano de fundo da tríplice epidemia instaurada por aqui. “Não adianta ficar em cima do mosquito, ele é consequência da falta de saneamento básico”, diz Gollop. “Eu tenho horror a essas campanhas que fazem um auê danado, de ir ministros num sábado matando o mosquito. Não estão fazendo nada que preste.”
Foto: Agência Brasil
O saneamento básico é um outro gargalo estrutural que possibilita o retorno das epidemias associadas ao Aedes. Foto: Agência Brasil
A estrutura urbana caótica também está na raiz do problema, segundo Timerman. “Ninguém armazena água em casa de sacanagem. Armazena porque precisa armazenar. Sabemos a deficiência de abastecimento que tem no Brasil inteiro. Só 30% das casas no Brasil tem coleta e tratamento de esgoto. E a coleta de lixo, sendo redundante, é um lixo. Em São Paulo, há mais de 1500 carros abandonados. Isso mostra o total caos urbano.”
Daniela mostra o quanto a mulher acaba sendo vitimada novamente pelo sistema. “Não é um vasinho de flor na sua casa que causou tudo isso. É uma falha muito maior, de todo o sistema de saneamento. Eles estão jogando de novo a culpa pra mulher. A culpa é daquela florzinha que ela deixou juntar água. Mas não, a culpa é de todo esse sistema.”

4) As outras epidemias não estão sendo tratadas com a seriedade que merecem; São Paulo trata o problema como se zika fosse só no Nordeste

É maior epidemia de dengue na história mundial e ela acontece aqui no Brasil, afirma Timerman, que também é presidente da Sociedade Brasileira de Dengue e Arboviroses. 
Nos últimos cinco anos, segundo o especialista, de 2010 a 2015, mais de 8 milhões de brasileiros tiveram dengue e morreram mais de 7.000 pessoas de dengue no Brasil. “Nunca antes se teve tanta dengue. Isso em casos notificados”, enfatiza.
Timerman fala da importância de também olhar para o chikungunya. “Há cinco anos estamos vivendo também uma epidemia de chikungunya, uma doença que vem sendo um pouco deixada de lado, mas que é extremamente importante, incapacitante. Eu estou com três pacientes internados hoje com chikungunya. E continua-se falando pouco sobre.”
O infectologista frisa a necessidade de orientar para que mulheres não engravidem nesse momento –mesmo em São Paulo, que tem tratado o problema como se ele fosse do Nordeste, segundo ele.

“Nosso secretário de Saúde fala que as pessoas em São Paulo podem engravidar, que não tem problema. Não pode é ir pro Nordeste. No ano passado, o maior número de casos de dengue no Brasil foi aqui, em São Paulo. E agora, será que esse mosquito não vai transmitir zika só porque o secretário decretou que ele não vai?”, questiona.

O especialista crítica a notícia recente, dada pela Secretaria de Saúde, que anunciou nas últimas duas semanas os primeiros casos de microcefalia associados ao zika aqui na cidade. “Fui chamado hoje para uma entrevista e disseram: ‘o primeiro caso de microcefalia comprovada por zika em SP’. Isso é mentira, isso é mentira”, frisa Timerman. “Tem muito mais. Por que negar isso? Eu não entendo. O problema é muito grave.”

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