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terça-feira, 31 de maio de 2016

"A sociedade convoca os olhares para que desejem essas meninas", diz pesquisadora



25/05/2016 Por Isabela Moreira                                                     

Antes de começar a ser problematizada na mídia, a erotização precoce de meninas e adolescentes já era estudada por Jane Felipe de Souza, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em 2002, ela cunhou o termo "pedofilização", a partir do qual analisa as contradições dentro de uma sociedade que, ao mesmo tempo em que cria leis para proteger a infância e a adolescência, promove a espetacularização e a sexualização dos corpos infantis.
Conversamos com Souza sobre a problematização da sexualização precoce de meninas e sobre como isso afeta o desenvolvimento delas, tema da nossa edição 299/junho, que está nas bancas. Leia a seguir:

Na sua pesquisa você afirma que existem scripts, ou seja, ideias preconcebidas, do que se espera de um homem e de uma mulher antes mesmo de nascerem. O que compõe o script feminino?
Esses scripts vão mudando de acordo com o tempo histórico. Exemplo: há 100 anos seria inimaginável que as mulheres chegassem a certos postos de trabalho. Até pouco tempo atrás acreditava-se que as mulheres deveriam casar e ter filhos, que não haveria necessidade de que elas trabalhassem e se alfabetizassem. Hoje já não se pensa assim — pelo menos em grande parte da sociedade ocidental as mulheres têm acesso a educação e trabalho. Enquanto isso, também os homem podem, por exemplo, usar bijuterias — coisa que antigamente pertencia apenas ao campo do feminino.
Essas expectativas sociais vão mudando de acordo com o tempo histórico e com a cultura na qual o sujeito está inserido. Ser mulher hoje no Brasil é diferente de ser mulher no Irã ou em algum outro país em que as liberdades femininas não têm tanto apelo. Esses scripts nada mais são do que expectativas que se estabelecem tanto para mulheres quanto para homens — ainda há quem acredite que os homens precisam ser mais agressivos, por exemplo.
O conceito de gênero surge para questionar a ideia de uma essência ou natureza que explique os comportamentos. No fim do século 19, alguns médicos e psicólogos diziam que homens eram mais inteligentes que as mulheres porque seus cérebros eram maiores. É essa necessidade de se pautar em aspectos biológicos para justificar diferenças, as colocando como desigualdade, inferioridade, que o conceito de gênero procura combater. 

Você cunhou o termo pedofilização. O que ele significa?
A pedofilização como prática social contemporânea é um conceito que desenvolvo desde 2002 para tentar mostrar a interessante contradição que existe na nossa sociedade, que ao mesmo tempo em que faz leis para proteger a infância e adolescência, também coloca os corpos infantis dentro da perspectiva de espetacularização desses corpos e da sexualidade.
É como se a sociedade dissesse assim: desejem os corpos femininos infantis
É como se a sociedade dissesse assim: desejem os corpos femininos infantis. Então, como isso se expressa? Por exemplo, a indústria de lingerie tem feito peças infantis que imitam lingeries de mulheres adultas, ou então sutiãs de bojo para bebês. Qual é o sentido disso para meninas tão pequenas?
Esse conceito também se desdobra em mais dois aspectos: um deles é apresentar as meninas de uma forma erotizada em seus gestos, com roupas muito justas, como se fossem mulheres adultas. O outro é se aproveitar desse universo infantil para colocar mulheres adultas em cenários e trajes infantis, alimentando um fetiche.
Em vários ensaios fotográficos as mulheres são colocadas com apetrechos infantis, agarradas em bichinhos de pelúcia, vestindo roupinhas que imitam um uniforme colegial ou adereços que imitam enfeites de menininhas. É colocar a mulher de um jeito infantil — a erotização a partir do viés infantil. É como se esse misto de ingenuidade e sedução fosse evocado para a visão masculina em especial. São esses desdobramentos que eu tenho trabalhado e algumas outras pesquisas também têm sido feitas a partir desse conceito. Eu chamo isso [a pedofilização] de mau-trato emocional, violência emocional para com as meninas e mulheres, porque é como se você dissesse a elas que só valem alguma coisa se seus corpos forem altamente erotizados, se forem corpos para contemplação.
E quando você observa nas redes sociais as coisas que as meninas falam sobre si mesmas e sobre seus corpos, você vê claramente esse conceito em operação. A nossa sociedade está convocando os olhares, em especial os masculinos, para que desejem essas meninas, essas novinhas, essa crianças.

Quais são os efeitos disso nas meninas quando elas ainda estão descobrindo suas próprias sexualidades?
Elas estão sendo o tempo todo convocadas a ter um determinado tipo de padrão corporal, um tipo de comportamento que é extremamente violento
Você observa isso na publicidade, na moda, esse apelo, essa pressão. É importante a gente ver nesses artefatos culturais quais são os chamamentos para essa constituição de uma feminilidade na nossa cultura. Não é à toa que há várias meninas com bulimia, anorexia, uma insatisfação generalizada com seus corpos.
Uma pesquisa mostra que meninas muito jovens insatisfeitas com seus corpos são capazes de enumerar uma série de coisas que não gostam. Isso não é de graça, elas estão sendo o tempo todo convocadas a ter um determinado tipo de padrão corporal, um tipo de comportamento que é extremamente violento, que é um desrespeito com elas. Por outro lado, temos também — e é importante que se diga isso — grupos de meninas que estão se rebelando contra esses ditames da cultura. Muitos grupos feministas, inclusive que atuam fortemente a partir do ciberfeminismo, estão lutando para que essas questões sejam apontadas, discutidas e problematizadas.

Parece ter ocorrido uma mudança na abordagem desse tema ao longo dos últimos meses. As pessoas parecem estar problematizando mais, principalmente por conta das redes sociais.  Você que estuda essa temática há mais de uma década percebe uma mudança efetiva?
Eu tenho visto especialmente do final de 2015 para cá dois momentos fundamentais: o #primeiroassédio, que começou a discutir essas questões, e o #meuprofessorabusador. Esses dois em especial convocam a sociedade a pensar nesses temas. Muitos homens ficaram chocados ao ver os relatos do  #primeiroassédio porque não tinham dimensão do quanto as suas próprias filhas, irmãs e mães passaram por situações extremamente constrangedoras, porque até então a sociedade achava isso normal.
Mas hoje muitos grupos feministas de meninas do ensino médio e das universidades estão discutindo e pautando essas questões. Muitos deles, que se fortaleceram a partir da internet e das redes sociais, têm tido uma importância muito grande para mostrar para a sociedade que essas coisas acontecem e que precisamos discuti-las e mudar as concepções machistas que até então vinham sendo articuladas e aceitas como normais. E hoje pautamos que isso não é normal, é uma violência, um desrespeito e precisa ser discutido. Os homens precisam se educar, as famílias precisam educar seus meninos para que eles sejam mais respeitosos.

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