20/05/2016
Pedro Ribeiro Nogueira
Desde o começo da última década, as juventudes assumiram um papel central na vida política mundial. São elas que vão às ruas, derrubam governos, criam novas dimensões do comum e propõem saídas para um mundo globalizado. Da Primavera Árabe às Jornadas de Junho, dos Indignados Espanhóis aos Pingüinos Chilenos, os jovens – tão conectados como precarizados – assumem com as mãos as tarefas de se educar e pensar politicamente os novos tempos, reclamando seu lugar na vida moderna.
Reagindo à má inserção laboral, que transforma sua transição para a vida adulta numa “multiplicidade de atalhos que nem sempre conduzem ao final”, elas criam alternativas políticas, de trabalho e educação para sobreviver aos novos tempos, mesmo que muitas vezes vejam seus métodos e meios voltados contra si.
“A realidade é que os movimentos juvenis não têm a capacidade de resolver todos os problemas contra os quais se posicionam”, postula o pesquisador catalão Carles Feixa Pàmpols, em entrevista ao Portal Aprendiz. “No fundo, o que querem não é uma solução para tudo senão fazer parte do processo, ser protagonistas das mudanças. Eles estão reclamando uma renovação geracional na política.”
Doutor em Antropologia Social pela Universidade de Barcelona ehonoris causa pela Universidade de Manizales (Colômbia), Carles pesquisa sobre culturas juvenis, a relação entre violência, cultura e espaço público e, nos últimos tempos, tem dedicado seus estudos a discutir movimentos de juventude que tomaram a Espanha em 2011, tendo publicado os artigos La Generación Indignada. Espacio, poder y cultura en los movimientos juveniles de 2011: una perspectiva transnacional e Jóvenes y espacio público. Del estigma a la indignación.
Na entrevista, Carles – que participará em junho deste ano do XIV Congresso Internacional de Cidades Educadoras como palestrante na mesa “Juventudes interpeladas. Dos problemas das juventudes à ampliação de direitos”, em Rosário, na Argentina – detalhou essas ideias e provocou a sociedade a pensar de maneira mais ampla nas políticas públicas para a juventude, saindo do paradigma do “pão e circo” e propondo saídas “mais ambiciosas”.
Confira abaixo a íntegra da entrevista:“Precisamos voltar a uma concepção de cultura juvenil associada à educação. Há um século, pedagogos renovadores como Gustav Wyneken, um social democrata, já propunha que a escola secundária e a cultura juvenil deveriam estar associadas. Ele acreditava na capacidade criativa dos jovens e propunha que a escola deveria se abrir para a cidade, para o trabalho, para o espaço público, dando a eles a oportunidade de aprender criando.”
Portal Aprendiz: O senhor desenvolve pesquisas sobre cultura juvenil e, inclusive, já publicou um livro sobre jovens na América Latina. Como é ser jovem em um mundo digital e globalizado?
Carles Feixa Pàmpols: Para começo de conversa, é impossível definir um perfil unívoco do jovem e da jovem hoje. O que nos cabe falar é de jovens ou de juventudes, por conta de sua diversidade intrínseca. Os processos de globalização nos fazem supor que alguns elementos tecnológicos se universalizam e trariam essa homogeneidade, no entanto, ele também carrega em paralelo um processo contraposto de deslocalização. Ainda assim, existem alguns nexos de união, que correspondem a uma conjuntura histórica e geracional que partem dos papeis das redes digitais, da coletividade, e desembocam em movimentos de resistência global – a primavera árabe, os Indignados, as movimentações na América Latina, os “pingüinos” no Chile. Ou seja, é uma geração cujo imaginário é marcado pelo ativismo.
Por outro lado, há outro elemento em comum que é: a maioria desses jovens são excluídos sociolaborais, ou seja, é uma geração hiper formada – em média – e que vê completamente precarizada sua entrada no mundo do trabalho. Na América Latina, é claro, sempre foi assim, e a desigualdade de classe e gênero é uma constante histórica, mas considero que a precaridade está se estendendo. Isso ajuda a criar o estereótipo do jovem que não estuda e nem trabalha. Ele é uma das faces do capitalismo informacional – que também pode ser chamado de neoliberalismo – que, ao propor um modelo de juventude neoliberal, faz com que o caminho para a vida adulta deixe de ser definido. Ele é substituído por uma multiplicidade de atalhos que nem sempre conduzem ao final.
Aprendiz: Essa noção de atalhos que não conduzem ao final não deixa de lembrar como as movimentações juvenis também muitas vezes redundaram em seu oposto, ou seja, não conseguiram encontrar um caminho para transformar seus sonhos nas transformações que desejavam. Na Primavera Árabe, muitos dos países, como o Egito, acabaram repondo regimes truculentos. No Brasil, as Jornadas de Junho não conseguiram mudanças estruturais e hoje temos um país governado interinamente por homens, velhos, brancos e corruptos, enfim, pela mesma classe dirigente que combateram. Como entender esses sonhos e esses monstros?
Carles: A realidade é que os movimentos juvenis não têm a capacidade de resolver todos os problemas contra os quais se posicionam. São problemas econômicos e sociais profundos, que demandariam uma reestruturação integral da sociedade. O único que podem fazer é teatralizar o que querem combater, dizer que as coisas não funcionam e tentar resolvê-las, pedir que sejam resolvidas. Não se pode querer que os movimentos resolvam os problemas, mas sim que, no mínimo, reivindiquem a outras gerações que busquem apontar viabilidades e intercâmbios como, por exemplo, que a democracia se aprofunde e supere o parlamentarismo, que busquem contrapesos de participação social -que não por acaso o mundo digital já permite ou deveria permitir num futuro imediato.
Eu lembro de Francisco Goya [pintor espanhol] que dizia que “os sonhos da razão produzem monstros”. Muitas vezes, esses monstros podem ter rostos simpáticos e nos ajudam a redefinir a mudança social – de forma criativa, positiva e cooperativa – e outras apenas se aproveitam disso para criar um devir de intolerância, como foi o fascismo respondendo ao período de crise dos anos 1920. Temos que entender o que aconteceu no mundo. Teve o Syriza na Grécia e, em muitos países árabes, a primavera não acabou em inverno. Infelizmente, é verdade também que há um crescimento da extrema direita, tanto na Europa como na América Latina, uma volta às décadas conservadoras depois de um avanço progressista democrático.
Ainda assim, acredito que o papel da juventude não é ser o aríete do progressismo ou do conservadorismo – afinal de contas, eles foram a vanguarda do fascismo – mas sim, no fundo, o que querem não é uma solução para tudo, senão fazer parte do processo, ser protagonistas das mudanças, eles estão reclamando uma renovação geracional na política, contra as gerações que se encastelaram no poder acadêmico, político e revolucionário. É claro que é um erro eliminar o antigo como um todo, mas seria um erro da mesma magnitude não dar passagem para as energias criativas que vêm de baixo.
Aprendiz: Nos aproximando do tema do Congresso, se uma cidade está preocupada em dar voz e espaço à juventude, que tipo de políticas públicas ela deve priorizar? De que maneira uma Cidade que quer ser Educadora deve se relacionar com seus jovens e adolescentes?
Carles: As políticas de juventude sempre são locais ou surgem do local, ou seja, deveriam estar conectadas ao princípio da subsidiariedade, que é a noção de que qualquer política social deve estar próxima dos cidadãos. No entanto, muitas vezes, no nível supra estatal, como é a União Europeia, as políticas têm um caráter muito vertical no campo da juventude. Há também o problema de políticas públicas para a juventude se confundirem com entretenimento, com pão e circo, ou seja, uma vez que não conseguimos resolver as grandes questões desse grupo, dado que não temos recursos para atacar a questão da transição ao trabalho, melhor que se entretenham, melhor que nos dediquemos a pensar em diversão, música e arte. É claro que cultura não é secundário e é muito importante para as juventudes urbanas de hoje, mas eu sinto que devíamos ser mais ambiciosos ao pensarmos em políticas para essa faixa da população.
A noção das Cidades Educadoras, que teve em Barcelona seus primeiros esboços com os governos progressistas do começo dos anos 90 na cidade, tinha a ver com políticas de juventude que entendiam a educação para além do acadêmico e a cidade como espaço de convivência, como um lugar para uma autoeducação, que via cidade como um espaço autoral, uma vez que os cidadãos e cidadãs que ali viviam também faziam sua gestão. A verdade é que os processos educativos autônomos se dão informalmente há muito tempo, nas brincadeiras de rua, no esporte de várzea na Argentina e no Brasil. As quadras de terra dos bairros, inclusive, há muito são lugares de intercâmbio social e cultural, de aprendizado, convivência entre grupos de várias idades.
Aprendiz: Como se dão esses processos?
Carles: Bom, num campo de futebol, a criança vive com o adolescente, que vive com o jovem adulto. Esse intercâmbio de várias idades é algo que pode ser perdido se encaixamos a juventude numa estrutura pedagógica rígida, se encaixamos a vida urbana num sistema corporativo e economicista. Eu acho que da liberdade e da convivência no espaço público, dessa realidade urbana, saem coisas interessantes e é isso que eu quero defender no Congresso: precisamos voltar a uma ideia de cultura juvenil associada à educação. Há um século, pedagogos renovadores como Gustav Wyneken, um social democrata, já propunha que a escola secundária e a cultura juvenil deveriam estar associadas. Ele acreditava na capacidade criativa dos jovens e propunha que a escola deveria se abrir para a cidade, para o trabalho, para o espaço público, dando a eles a oportunidade de aprender criando.
Nesse processo, os professores viravam mais facilitadores que transmissores – ele chamava isso de “A Escola da Vida”. Infelizmente, essas experiências foram interrompidas pelo fascismo, mas com a internet, isso se torna novamente potente. Nossos jovens já sabem mais de tantas coisas que os adultos, que agora devem auxiliá-los em sua formação crítica – afinal, é preciso selecionar a torrente de informação e isso apenas se dá pelo processo educativo.
Em resumo, parece que entendemos a dimensão do lúdico mais na educação primária, mas os jovens foram esquecidos numa escola antiga. E a educação para a juventude tem que ser mais próxima da educação infantil, tem que ser mais interativa, ou seja, precisamos resgatar a cultura juvenil como uma cultura de aprendizagem.
Aprendiz: Como está hoje a dimensão educadora de Barcelona?
Carles: Não estou muito atualizado, mas a proposta de Cidades Educadoras respondia a uma conjuntura de governos progressistas de coalizão. Recentemente, sinto que demos alguns passos atrás, mas agora há um novo movimento, uma nova prefeita na cidade, que ainda estão se assentando e vamos ver o que sai. Não se pode recuperar o passado, mas é possível retomar a noção que estava atrás disso, que é a da democracia participativa e cidadã. O pano de fundo era que a educação deveria ser participativa e não podia ser impositiva, que ela deveria criar coesão social e igualdade e que não podia ser um arbítrio estatal, e sim algo talhado com mãos cidadãs.
Eu vejo isso agora em Madri e em outras cidades com os governos que emergiram do 15-M e de grupos ligados à mudança política e social que, imbuídos de seu forte componente geracional, estão tentando repensar a cidade desde esta perspectiva, mesmo que ainda não tenham nada explícito nesse sentido. Um aspecto muito interessante dessa época eram as casas de juventude, que foram levantadas em cada bairro, e eram espaços públicos de convivência para os jovens estudarem e fazerem atividades sociais. Agora, estão tentando reconstruí-las e eu acho que, enquanto equipamentos de convivência, eles podem nos ajudar a evitar o fascismo e a xenofobia crescentes.
Aprendiz: Então, na sua opinião, pensar em lugares de cultura e convivência podem ser antídotos para a intolerância e a xenofobia?
Carles: Sim, afinal, são lugares que fomentam a convivência entre diferentes setores sociais. Antes era a cidade, a rua, a praça, mas eles foram dominados pelo automóvel e segregados pela escola, de modo que se torna urgente criar espaços como estes, analógicos ou digitais, mas que busquem superar a privatização e a fragmentação e que transcendam a aprendizagem puramente escolar.
Se pensarmos em uma Cidade Educadora digital, por exemplo, ela deve estar conectada ao real, ao fato de que os jovens aprendem a usar a internet nas ruas, mas podem se aperfeiçoar com professores, adultos e com seus pares, que lhes ajudem a recolher referências para inovar, para que eles criem novos nichos laborais e entendam sua autoeducação, convertendo sua paixão em um modo de vida.
(A foto que ilustra essa matéria é de Ana Gironés Valdivielso, via Flickr/Creative Commons)
Essa é a primeira de uma série de entrevistas com palestrantes do XIV Congresso Internacional de Cidades Educadoras.
Portal Aprendiz
Reagindo à má inserção laboral, que transforma sua transição para a vida adulta numa “multiplicidade de atalhos que nem sempre conduzem ao final”, elas criam alternativas políticas, de trabalho e educação para sobreviver aos novos tempos, mesmo que muitas vezes vejam seus métodos e meios voltados contra si.
“A realidade é que os movimentos juvenis não têm a capacidade de resolver todos os problemas contra os quais se posicionam”, postula o pesquisador catalão Carles Feixa Pàmpols, em entrevista ao Portal Aprendiz. “No fundo, o que querem não é uma solução para tudo senão fazer parte do processo, ser protagonistas das mudanças. Eles estão reclamando uma renovação geracional na política.”
Doutor em Antropologia Social pela Universidade de Barcelona ehonoris causa pela Universidade de Manizales (Colômbia), Carles pesquisa sobre culturas juvenis, a relação entre violência, cultura e espaço público e, nos últimos tempos, tem dedicado seus estudos a discutir movimentos de juventude que tomaram a Espanha em 2011, tendo publicado os artigos La Generación Indignada. Espacio, poder y cultura en los movimientos juveniles de 2011: una perspectiva transnacional e Jóvenes y espacio público. Del estigma a la indignación.
Para pesquisador, é preciso pensar em uma escola que saia de seus muros e aprenda com a vida.Unisinos |
Confira abaixo a íntegra da entrevista:“Precisamos voltar a uma concepção de cultura juvenil associada à educação. Há um século, pedagogos renovadores como Gustav Wyneken, um social democrata, já propunha que a escola secundária e a cultura juvenil deveriam estar associadas. Ele acreditava na capacidade criativa dos jovens e propunha que a escola deveria se abrir para a cidade, para o trabalho, para o espaço público, dando a eles a oportunidade de aprender criando.”
Portal Aprendiz: O senhor desenvolve pesquisas sobre cultura juvenil e, inclusive, já publicou um livro sobre jovens na América Latina. Como é ser jovem em um mundo digital e globalizado?
Carles Feixa Pàmpols: Para começo de conversa, é impossível definir um perfil unívoco do jovem e da jovem hoje. O que nos cabe falar é de jovens ou de juventudes, por conta de sua diversidade intrínseca. Os processos de globalização nos fazem supor que alguns elementos tecnológicos se universalizam e trariam essa homogeneidade, no entanto, ele também carrega em paralelo um processo contraposto de deslocalização. Ainda assim, existem alguns nexos de união, que correspondem a uma conjuntura histórica e geracional que partem dos papeis das redes digitais, da coletividade, e desembocam em movimentos de resistência global – a primavera árabe, os Indignados, as movimentações na América Latina, os “pingüinos” no Chile. Ou seja, é uma geração cujo imaginário é marcado pelo ativismo.
Por outro lado, há outro elemento em comum que é: a maioria desses jovens são excluídos sociolaborais, ou seja, é uma geração hiper formada – em média – e que vê completamente precarizada sua entrada no mundo do trabalho. Na América Latina, é claro, sempre foi assim, e a desigualdade de classe e gênero é uma constante histórica, mas considero que a precaridade está se estendendo. Isso ajuda a criar o estereótipo do jovem que não estuda e nem trabalha. Ele é uma das faces do capitalismo informacional – que também pode ser chamado de neoliberalismo – que, ao propor um modelo de juventude neoliberal, faz com que o caminho para a vida adulta deixe de ser definido. Ele é substituído por uma multiplicidade de atalhos que nem sempre conduzem ao final.
Aprendiz: Essa noção de atalhos que não conduzem ao final não deixa de lembrar como as movimentações juvenis também muitas vezes redundaram em seu oposto, ou seja, não conseguiram encontrar um caminho para transformar seus sonhos nas transformações que desejavam. Na Primavera Árabe, muitos dos países, como o Egito, acabaram repondo regimes truculentos. No Brasil, as Jornadas de Junho não conseguiram mudanças estruturais e hoje temos um país governado interinamente por homens, velhos, brancos e corruptos, enfim, pela mesma classe dirigente que combateram. Como entender esses sonhos e esses monstros?
Christian c l Flickr/Creative Commons
“Papel da juventude não é ser o aríete do progressismo ou do conservadorismo”. |
Eu lembro de Francisco Goya [pintor espanhol] que dizia que “os sonhos da razão produzem monstros”. Muitas vezes, esses monstros podem ter rostos simpáticos e nos ajudam a redefinir a mudança social – de forma criativa, positiva e cooperativa – e outras apenas se aproveitam disso para criar um devir de intolerância, como foi o fascismo respondendo ao período de crise dos anos 1920. Temos que entender o que aconteceu no mundo. Teve o Syriza na Grécia e, em muitos países árabes, a primavera não acabou em inverno. Infelizmente, é verdade também que há um crescimento da extrema direita, tanto na Europa como na América Latina, uma volta às décadas conservadoras depois de um avanço progressista democrático.
Ainda assim, acredito que o papel da juventude não é ser o aríete do progressismo ou do conservadorismo – afinal de contas, eles foram a vanguarda do fascismo – mas sim, no fundo, o que querem não é uma solução para tudo, senão fazer parte do processo, ser protagonistas das mudanças, eles estão reclamando uma renovação geracional na política, contra as gerações que se encastelaram no poder acadêmico, político e revolucionário. É claro que é um erro eliminar o antigo como um todo, mas seria um erro da mesma magnitude não dar passagem para as energias criativas que vêm de baixo.
Aprendiz: Nos aproximando do tema do Congresso, se uma cidade está preocupada em dar voz e espaço à juventude, que tipo de políticas públicas ela deve priorizar? De que maneira uma Cidade que quer ser Educadora deve se relacionar com seus jovens e adolescentes?
Carles: As políticas de juventude sempre são locais ou surgem do local, ou seja, deveriam estar conectadas ao princípio da subsidiariedade, que é a noção de que qualquer política social deve estar próxima dos cidadãos. No entanto, muitas vezes, no nível supra estatal, como é a União Europeia, as políticas têm um caráter muito vertical no campo da juventude. Há também o problema de políticas públicas para a juventude se confundirem com entretenimento, com pão e circo, ou seja, uma vez que não conseguimos resolver as grandes questões desse grupo, dado que não temos recursos para atacar a questão da transição ao trabalho, melhor que se entretenham, melhor que nos dediquemos a pensar em diversão, música e arte. É claro que cultura não é secundário e é muito importante para as juventudes urbanas de hoje, mas eu sinto que devíamos ser mais ambiciosos ao pensarmos em políticas para essa faixa da população.
A noção das Cidades Educadoras, que teve em Barcelona seus primeiros esboços com os governos progressistas do começo dos anos 90 na cidade, tinha a ver com políticas de juventude que entendiam a educação para além do acadêmico e a cidade como espaço de convivência, como um lugar para uma autoeducação, que via cidade como um espaço autoral, uma vez que os cidadãos e cidadãs que ali viviam também faziam sua gestão. A verdade é que os processos educativos autônomos se dão informalmente há muito tempo, nas brincadeiras de rua, no esporte de várzea na Argentina e no Brasil. As quadras de terra dos bairros, inclusive, há muito são lugares de intercâmbio social e cultural, de aprendizado, convivência entre grupos de várias idades.
Aprendiz: Como se dão esses processos?
Carles: Bom, num campo de futebol, a criança vive com o adolescente, que vive com o jovem adulto. Esse intercâmbio de várias idades é algo que pode ser perdido se encaixamos a juventude numa estrutura pedagógica rígida, se encaixamos a vida urbana num sistema corporativo e economicista. Eu acho que da liberdade e da convivência no espaço público, dessa realidade urbana, saem coisas interessantes e é isso que eu quero defender no Congresso: precisamos voltar a uma ideia de cultura juvenil associada à educação. Há um século, pedagogos renovadores como Gustav Wyneken, um social democrata, já propunha que a escola secundária e a cultura juvenil deveriam estar associadas. Ele acreditava na capacidade criativa dos jovens e propunha que a escola deveria se abrir para a cidade, para o trabalho, para o espaço público, dando a eles a oportunidade de aprender criando.
Fotomovimiento l Flickr/Creative Commons
Para antropólogo, espaços públicos de convivência podem ser úteis para combater xenofobia. |
Em resumo, parece que entendemos a dimensão do lúdico mais na educação primária, mas os jovens foram esquecidos numa escola antiga. E a educação para a juventude tem que ser mais próxima da educação infantil, tem que ser mais interativa, ou seja, precisamos resgatar a cultura juvenil como uma cultura de aprendizagem.
Aprendiz: Como está hoje a dimensão educadora de Barcelona?
Carles: Não estou muito atualizado, mas a proposta de Cidades Educadoras respondia a uma conjuntura de governos progressistas de coalizão. Recentemente, sinto que demos alguns passos atrás, mas agora há um novo movimento, uma nova prefeita na cidade, que ainda estão se assentando e vamos ver o que sai. Não se pode recuperar o passado, mas é possível retomar a noção que estava atrás disso, que é a da democracia participativa e cidadã. O pano de fundo era que a educação deveria ser participativa e não podia ser impositiva, que ela deveria criar coesão social e igualdade e que não podia ser um arbítrio estatal, e sim algo talhado com mãos cidadãs.
Eu vejo isso agora em Madri e em outras cidades com os governos que emergiram do 15-M e de grupos ligados à mudança política e social que, imbuídos de seu forte componente geracional, estão tentando repensar a cidade desde esta perspectiva, mesmo que ainda não tenham nada explícito nesse sentido. Um aspecto muito interessante dessa época eram as casas de juventude, que foram levantadas em cada bairro, e eram espaços públicos de convivência para os jovens estudarem e fazerem atividades sociais. Agora, estão tentando reconstruí-las e eu acho que, enquanto equipamentos de convivência, eles podem nos ajudar a evitar o fascismo e a xenofobia crescentes.
Aprendiz: Então, na sua opinião, pensar em lugares de cultura e convivência podem ser antídotos para a intolerância e a xenofobia?
Carles: Sim, afinal, são lugares que fomentam a convivência entre diferentes setores sociais. Antes era a cidade, a rua, a praça, mas eles foram dominados pelo automóvel e segregados pela escola, de modo que se torna urgente criar espaços como estes, analógicos ou digitais, mas que busquem superar a privatização e a fragmentação e que transcendam a aprendizagem puramente escolar.
Se pensarmos em uma Cidade Educadora digital, por exemplo, ela deve estar conectada ao real, ao fato de que os jovens aprendem a usar a internet nas ruas, mas podem se aperfeiçoar com professores, adultos e com seus pares, que lhes ajudem a recolher referências para inovar, para que eles criem novos nichos laborais e entendam sua autoeducação, convertendo sua paixão em um modo de vida.
(A foto que ilustra essa matéria é de Ana Gironés Valdivielso, via Flickr/Creative Commons)
Essa é a primeira de uma série de entrevistas com palestrantes do XIV Congresso Internacional de Cidades Educadoras.
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