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domingo, 24 de junho de 2012


"Eu denunciei meu marido por violência", diz Patrícia Bueno Netto, filha do dono de uma das maiores construtoras de SP

  
Patrícia Bueno Netto é uma mulher de coragem. Filha do dono de uma das maiores construtoras de São Paulo, ela entregou à Justiça o agressor com quem se casou. Como Patrícia, nos últimos dois anos, mais mulheres de classe alta têm lançado mão da lei Maria da Penha. As histórias delas, contadas à Marie Claire, servem de alerta em um país onde, a cada duas horas, uma brasileira é assassinada

Por Mariana Sanches. Foto Ana Ottoni
Na delegacia do Morumbi, Patrícia Bueno Netto esperava para registrar um Boletim de Ocorrência em que acusava seu marido de amea­çá-la de morte. Terceira filha do dono de uma das maiores construtoras de São Paulo, era casada com um empresário do ramo da internet. Ali, na polícia, ela começava o longo caminho para entregar à Justiça o homem que, na aparência, era o marido perfeito — mas, na realidade, infligia a ela sérios danos físicos, psicológicos e sociais. Diante de Patrícia, o escrivão não titubeou. Apontou para a pilha de inquéritos esquecidos sobre o escaninho. “Está vendo isso aqui? Isso sim é problema. Rico não tem problema”, disse. O desavisado escrivão não sabia que estava diante de uma mulher corajosa. Ela, que acabara de se separar do marido, insistiu. Naquele momento, há cinco anos, a lei Maria da Penha era apenas uma recém-nascida frágil. E Patrícia, uma raridade.

Hoje, ela é uma das precursoras de uma tendência. Cresce o número de mulheres das classes A e B que denunciam os maridos agressores. Antes, por medo de que a exposição manchasse sua imagem, prejudicasse seu círculo social e seus negócios, e as estigmatizasse, elas eram as mais resistentes em procurar a Justiça. Buscavam ajuda particular ou sofriam caladas até que a situação se encerrasse, tragicamente ou não. Embora não haja estatísticas que dissequem o fenômeno, essa rea­lidade mudou.“Quando a lei surgiu, o perfil de quem denunciava era de classe baixa. O status da classe alta pesava contra a denúncia. Havia o mito de que violência doméstica só acontecia na favela”, diz a juí­za Ane Cristine Santos, do Rio de Janeiro. Em Curitiba, capital do terceiro estado brasileiro com mais feminicídios (os primeiros são Espírito Santo e Alagoas), a juíza Luciane Bortoleto descreve o mesmo cenário:“Nos últimos dois anos, mulheres de classe alta passaram a nos procurar muito. Esperávamos por isso desde que a lei foi criada. Há violência doméstica em todas as classes sociais. Mesmo em países desenvolvidos, como Canadá e Estados Unidos, os índices de violência doméstica são semelhantes aos nossos”. As histórias dessas mulheres, contadas à Marie Claire, servem como alerta em um país onde, a cada duas horas, uma brasileira é assassinada pelo companheiro.

Toda sociedade possui uma estrutura sexual de organização. Apesar das variações geográficas e econômicas, é quase certo que, dependendo do seu sexo, um bebê já tenha seu destino traçado desde o nascimento: se for homem, será dominante, se for mulher, dominada. Esses papéis são atribuídos culturalmente, aprendidos desde o berço e repetidos à exaustão ao longo da vida, abertamente ou de maneira subliminar. De tanto ser reproduzida, a mensagem é introjetada, e homens e mulheres passam a tratar a divisão sexual­ como “natural”, “parte da ordem das coisas”. É dessa maneira que, segundo o sociólogo francês Pierre Bourdieu, a dominação masculina se estabelece. Bourdieu descreve­ a marcha silenciosa de costumes, hábitos e crenças que mantêm homens e mulheres em posição assimétrica. A face mais cruel da ­engrenagem de dominação é a violência do marido contra a mulher. Há milênios, ela produz ­ vítimas. Mas só há seis anos, com a aprovação da lei Maria da Penha, passou a ser tratada como um crime específico no Brasil. Desde então, as denúncias se multiplicam. Um balanço recém-divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostra que entre 2010 e 2011 houve um aumento de 106,7% no número de procedimentos instaurados para apurar violência doméstica. No mesmo período, mais de quatro mil prisões preventivas foram decretadas contra homens agressores.
A agressão praticada nas classes mais altas inclui todos os requintes cruéis da violência doméstica, mas se expressa, particularmente, na ameaça e na tortura psicológica contra a mulher. “É comum que não haja agressão física, apenas mental”, afirma a socióloga Wânia Pasinato, da Universidade de São Paulo. Embora seja invisível, a violência mental pode ser tão destrutiva quanto a física.

"A classe alta evitava denunciar. 
Havia o mito de que violência doméstica só existia dentro das favelas” Ane Santos, juíza

Patrícia é vítima desse tipo de violência. No sexto aniversário da lei Maria da Penha, ela ainda sofre. Parecia uma fera enjaulada ao andar de um lado para o outro da sala de sua casa durante a entrevista. As mãos queriam dizer mais do que a boca. Em menos de três horas, pontuou com doze cigarros sua narrativa. Aos 31 anos, a loira altiva tem olhos tristes e desconfiados. Nasceu com conforto e só conheceu a maldade na fase adulta. Cursou publicidade em uma das melhores (e mais caras) faculdades do Brasil — a Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) —, ­ganhou carro, apartamento, viajou o quanto quis para o exterior. E teve uma festa de casamento dos sonhos, para mil convidados­, depois de um ano e meio de namoro. O noivo lhe foi apresentado por amigos em comum. Quando o casal completou um ano de relacionamento, ele fez uma surpresa: mandou entregar, a cada meia hora, um buquê de rosas vermelhas à futura mulher. Cada buquê trazia uma letra em ouro: C... A ... S... Até formar a frase: “Casa comigo?”. “Era perfeito demais para ser verdade, mas não desconfiei”, relata Patrícia.


O casamento durou três anos. A convivência revelou uma farsa romântica. Primeiro, o marido exigiu que ela interrompesse as sessões de psicanálise. Parecia sentir ciúmes do terapeuta. Aos poucos, a forçou também a se afastar dos amigos. “Ele sempre criava defeito para as pessoas, dizia que eram interesseiras, estranhas, e pedia para eu me distanciar­”, afirma. Depois veio a influência na relação com os parentes. “Minha família é daquelas que almoça aos domingos, janta junto durante a semana. Ele começou a minar essa relação. Chegou a dizer até que minha mãe não gostava de mim. Eu me sentia um lixo­.” Patrícia se casou no mesmo mês em que se formou na faculdade, mas o marido preferia que ela não trabalhasse. Passou a depender de mesada. “O dinheiro que ele me dava era inversamente proporcional ao meu peso. Quanto mais magra eu ficasse, mais dinheiro ele me daria”, conta. “Ele me via como um troféu que exibia. O peso se tornou uma neurose para mim.” Quando se separou, ela, que sempre teve peso considerado adequado, estava dez quilos abaixo do normal.
Às vésperas de completar três anos de casamento, o marido resolveu­ morar na Itália — queria controlar­ os negócios de lá e tirar o passaporte italiano. Patrícia foi contra — não queria ficar tão distante da família — mas não teve direito à voz. Na pequena Mantova, a quase 400 km de Roma, ela passava os dias em casa­, sozinha. Suas tentativas de engravidar foram frustradas, já que o marido não podia ter filhos sem ajuda médica (ele confessou o problemas apenas depois da separação) e tampouco aceitava aderir a tratamentos de fertilização. “Minha vida tinha que ser só voltada para ele. Era uma agressão enorme­, mas todo mundo achava que eu estava muito bem casada.” Patrícia­ entrou em depressão­, emagreceu dez quilos em seis meses. Quando­ voltou ao Brasil para o casamento de uma de suas irmãs­, o pai percebeu que ela não estava bem. Procurou ajuda psicológica para a filha. Mesmo sendo católico fervoroso, concordou que o rompimento era inevitável. Patrícia não voltou mais para a Itália.

"Ele disse ter armas de alcance maior do que 50 metros e que seria fácil me atingir. Blindamos todos os carros” Patrícia Bueno Netto, 31 anos

Foi aí que seus problemas aumentaram. As ameaças começaram por celular e e-mail. O marido, que também voltara para o Brasil, prometia difamá-la. Dizia que se não voltassem a ficar juntos, ela não teria paz. Chegou a procurar o psiquiatra de Patrícia para forçá-lo a convencer a paciente a manter o casamento. Diante da resistência dela, todas as amea­ças foram cumpridas. O ex-marido enviou um dossiê falso para vários dos convidados do casamento. No texto, chamava Patrícia de vagabunda, entre outros palavrões, e acusava a família dela de corrupção nos negócios. Ele ainda levou ao Conselho Federal de Medicina uma denúncia contra o psiquiatra, em que o acusava de assédio sexual contra Patrícia. Ela teve de defendê-lo. “É muito comum os homens ficarem ainda mais agressivos depois de as mulheres pedirem o divórcio”, afirma a desembargadora Angélica de Almeida, de São Paulo. “Eles não admitem perder o controle sobre alguém com quem mantêm uma relação de posse. Um réu já chegou a dizer em audiência que ‘as mulheres ficaram topetudas depois dessa Maria da Penha’.


Ao mesmo tempo em que começava uma guerra judicial que já acionou mais de vinte juízes e gerou pelo menos 750 ações, o ex-marido de Patrícia colocou no ar diversos blogs­ com ofensas e ameaças­ a ela e sua família. “Era quase um processo novo­ por dia. Ele dizia­ que transformaria minha vida num inferno, que não ­pararia enquanto não me destruísse­”, conta. “Blindamos todos os carros da família. Até meu sobrinho de um ano andava com segurança armado 24 horas por dia.” Nem a medida protetiva dada pela Justiça, que impedia o ex-marido de chegar a menos de 50 metros de Patrícia, acalmou a situação. “Ele afirmava ter armas com alcance muito maior do que 50 metros e que seria fácil me atingir. Não tive outra forma de viver a não ser fora do país. Passei seis meses exilada na Espanha.”
De volta a São Paulo, Patrícia luta para ver o ex-marido condenado. Até hoje, cinco anos depois da separação, acorda quase todas as noites sobressaltada por pesadelos. Um exame feito recentemente no Instituto Médico Legal (IML) por quatro psiquiatras forenses comprovou que ela sofreu lesão corporal grave por causa das ações do ex-marido. Embora nunca tenha batido nela, ele a submeteu a um tratamento semelhante à tortura, que desencadeou uma doença conhecida como transtorno de estresse pós-traumático­, comum em soldados sobreviventes a campos de batalha ou vítimas de grandes tragédias, como o ataque às torres gêmeas em Nova York. Ela depende de remédios para dormir. Seu comportamento desconfiado é apenas um dos sintomas mais evidentes da sua doença. “Já houve momentos em que não queria mais viver. Cheguei a pensar que preferia ter levado um tiro a continuar com essa vida”, diz. “Eu sei que nunca mais serei a mesma pessoa.”
A lei Maria da Penha prevê que alguém possa ser condenado por provocar lesões psicológicas em outra pessoa. Mas ainda é difícil haver condenação apenas por violência mental. Patrícia é uma das raras mulheres a ter conseguido um laudo médico que comprove os maus-tratos que sofreu. Em geral, as acusações se baseiam apenas em testemunhos, o que enfraquece a defesa da mulher. “O cruel da agressão psicológica é não deixar vestígios visíveis a olho nu”, afirma a juíza Adriana Mello, do Rio de Janeiro. “Mas, as marcas deixadas por essa forma de violência são profundas. Muitas mulheres me dizem:‘Doutora­, estou ferida na alma’. São feridas difíceis de curar, algumas se tornam depressão e síndrome de pânico, que podem levar ao suicídio”.


A pedagoga Cristina*, 41 anos, passou vinte deles sendo ferida na alma. E também no corpo. Ela se casou aos 18 anos, com o primeiro namorado. O marido, funcionário de um Tribunal de Justiça, foi aos poucos se revelando um sujeito doentiamente ciumento. Não a deixava estudar ou trabalhar. Antes mesmo que nascesse o primeiro filho, hoje com 21 anos, ele passou a comprar — sozinho — as roupas que ela vestiria. Impedia-a até de sair de casa. Para ter certeza de que ela o obedeceria, andava armado. “Até na hora de fazer sexo ele punha a arma na minha cabeça. Era o modo como mais sentia prazer”, diz Cristina. A escalada de violência culminou em agressões físicas antes que o casal completasse o quinto ano de casamento. Fora de casa, ele era tido como profissional modelo, marido padrão. Dentro de casa, aplicava tapas na mulher quando era contrariado. Se um dos dois filhos interferisse, levava sopapos também. “Ele me dizia que a culpa era minha, porque eu não me comportava. As pessoas nem acreditariam se eu dissesse que ele me batia. Comecei a achar que a louca era eu.”
Bem relacionado com juízes e desembargadores, o ex-marido de Cristina costumava trazer para casa pilhas de processos judiciais de mulheres agredidas pelos companheiros. Ele tinha o sádico gosto de espalhar as fotos das perícias médicas, que mostravam assassinatos e espancamentos, sobre a mesa da sala de jantar. “‘Está vendo isso aqui? É isso o que eu vou fazer com você’, ele me dizia”, conta. Ela não conseguiu ajuda até a criação da lei Maria da Penha. Criada em uma família tradicional, católica, sua tragédia particular provocava incômodo aos parentes. “Meus pais tinham vergonha da situação. Preferiam uma filha que sofresse calada em casa a um escândalo­ público­.” Na delegacia, quando tentou denunciar uma agressão, ouviu a seguinte­ resposta do escrivão: “Tá, mas tinha janta em casa quando ele chegou?”.
Por descaso, constrangimento, desamparo, o calvário de Cristina­ se estendeu por vinte anos. Ao final do casamento, ia dormir todas­ as noites com a sensação de que não acordaria no dia seguinte. “Só consegui forças pra sair dali depois que conversei com a juí­za de violência doméstica e senti­ que ela realmente me ajudaria”, afirma­. Há três anos, Cristina saiu de casa. Deixou todos os seus pertences para trás. Dado o risco em que estava, passou um tempo em um dos escassos abrigos de que a Justiça dispõe para acomodar mulheres ameaçadas (são cerca de 75 em todo o Brasil). Desde que foi embora, o ex-marido não permitiu que ela voltasse para casa nem para buscar uma peça de roupa. E passou todas as propriedades do casal para o nome de uma amante. Há três anos, ele está proibido de se aproximar dela. Hoje, Cristina­ mantém uma rotina de professora do ensino fundamental. Reaprende, aos poucos, a gostar de si. Os dois filhos do casal, um de 18 e o outro de 21 anos, moram com ela e cursam faculdade. A relação deles com o pai é distante.
Os dois agressores mencionados­ nessa reportagem jamais foram­ presos pelos crimes que cometeram­, embora já tenham sido condenados. Eles tampouco concederam o divórcio. Ambos postergam os processos com todos os subterfúgios legais que encontram. E o fazem com facilidade, já que o tempo­ da Justiça é muito mais lento do que o do cotidiano. Mas Patrícia, Cristina e outras mulheres­ agredidas pelo­ Brasil estão cada vez mais dispostas a seguir em frente. O senso de urgência de Patrícia a levou ainda mais longe do que a média. Há alguns anos ela entrou na faculdade de direito. Passa os dias a debulhar códigos jurídicos tentando encontrar um final justo para sua história. “Agora vou até o fim. Desistir disso seria desistir de mim mesma”.

Produção: Juliana Moraes / Beleza: Allan Jhonnes (Cappa)
* o nome foi trocado a pedido da entrevistada



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