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terça-feira, 19 de junho de 2012


Um código penal feminista e como ele pode 

acabar com o drama do auto-aborto

O novo código penal propõe que um laudo médico
teste se a mulher tem ou não condições
de seguir com a gestação
É uma cadeia de tragédias: aos 37 anos, moradora de rua e dependente química, ela se descobriu grávida do terceiro filho. A única certeza que tinha é a de que não poderia ter o bebê. Ao chegar ao 5o mês de gestação ela conseguiu levantar os R$100 que precisou para comprar dois comprimidos de Cytotec, medicamento do trato gástrico com efeito abortivo e de uso restrito no Brasil. Colocou os dois comprimidos dentro de si mesma e partiu para o hospital, onde acabou tendo um parto normal. O bebê, uma menina, sobreviveu por 20 dias mas morreu por conta da extrema prematuridade.
A narrativa acima se passou em 2006, com Keila Rodrigues, moradora de Paulo de Faria, uma município de menos de 10 mil habitantes no interior paulista. Se tivesse acabado ali, a história já seria um drama digno de novela. Mas houve mais. Enquanto convalescia no hospita, Keila foi denunciada por uma enfermeira, que contrariou todas as normas éticas de direitos humanos preconizados pelo Ministério da Saúde. Ao responder por homicídio, ela foi sumariamente absolvida pela juíza Milena Repuo Rodrigues. Achou que acabou aí?
Com o perdão do clichê, desgraça pouca é bobagem. O promotor Marco Antônio Lélis Moreira recorreu e conseguiu enviar Keila a um júri popular, a se realizar em breve.
A história de Keila é uma síntese do modo hipócrita como o aborto é tratado no Brasil. É proibido, acontece ilegalmente em todas as classes sociais, mas só os mais pobres costumam ser punidos e normalmente não encontram amparo nem mesmo onde deveriam receber cuidados,como um hospital público.
Mas há uma chance de que, no segundo semestre, o Estado pare de tratar as coisas como elas deveriam ser e as encare como elas realmente são. No próximo dia 26, a comissão que elaborou a proposta do novo código penal brasileiro o entregará ao presidente do Senado, José Sarney. Na proposta, um dos artigos é revolucionário: de acordo com a proposta de lei, qualquer mulher poderá interromper uma gravidez até a 12a semana de gestação, desde que tenha um laudo médico que ateste que ela não tem condições psicológicas de ter uma criança. “Não é preciso ter depressão ou qualquer outra doença ou transtorno mental ou psicológico. Basta que o médico entenda que ela não suporta levar adiante a gravidez, que ela não deseja e aquilo lhe traz sofrimento”, afirma o jurista Luiz Flávio Gomes, que participou da elaboração do novo código. “Demos uma abrasileirada na legalização do aborto, para suavizar o choque. É uma fórmula parecida com o que foi aplicada na Cidade do México”.


UM CÓDIGO PENAL FEMININO
A proposta de código penal traz outros avanços na defesa dos direitos da mulher. Os dois mais interessantes são:
Matar uma mulher por questão de gênero ou violência doméstica, o que representa quase 100% dos casos de feminicídio, passa a ser homicídio qualificado, isto é, passível de um acréscimo de pena de dois anos que não existiria caso a vítima fosse um homem.
O novo código prevê que exista estupro vaginal, estupro anal e estupro oral. Todos são igualmente graves. Hoje, não existe a distinção. Caso seja aprovada a mudança, o homem terá um aumento de pena caso cometa mais de um tipo de estupro, ainda que seja com a mesma vítima.
O Congresso terá que aprovar (ou não) o novo Código Penal no segundo semestre de 2012. A verdade é que não vai ser fácil fazer passar essas mudanças, sobretudo quanto ao aborto, diante de uma bancada evangélica bem articulada e de parlamentares que por questões filosófico-moral se esquivam de encarar o aborto como questão de saúde pública e concordar com a nova legislação. Às mulheres, resta se organizar e pressionar para que pessoas como a Keila encontrem outra solução para as suas vidas que não abortar clandestinamente um bebê de cinco meses.

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