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quinta-feira, 7 de junho de 2012


Leymah Gbowee: "Ganhar o Nobel me afastou das pessoas"
Ela apanhou do marido, foi alcoólatra e viu os filhos passarem fome. Anos depois, criou uma rede de mulheres que ajudou a acabar com a guerra civil da Libéria, na África, derrubando o ditador Charles Taylor, condenado pelo Tribunal Especial de Serra Leoa (TESL) por crimes de guerra nesta quinta (26). Confira a entrevista exclusiva na qual Leymah Gbowee fala sobre o livro que lançará no Brasil, o Nobel da Paz que conquistou e a situação na Libéria
Por Marina Caruso, de Nova York

Na sede da Fundação Gbowee para a Paz, no Lower East Side, em Nova York, Leymah Gbowee despacha a portas fechadas. Da antessala, escuta-se o vozeirão aveludado da ativista que, em novembro, dividiu o prêmio Nobel da Paz com a presidenta da Libéria Ellen Johnson Sirleaf e a iemenita Tawakkul Karman. Uma menina negra de trancinhas coloridas e bumbum arrebitado por uma fralda descartável corre em direção à porta. É Jaydyn, 2 anos, a caçula dos seis filhos de Leymah. Vestido longo e turbante estampados, Leymah abre a porta, sorri e espalha lápis e papéis sulfite pelo chão. Depois, diz que a menina acompanhará “quietinha” a entrevista.
Aos 40 anos recém-completados, Leymah parece à vontade em sua elegância étnica. Tira as sandálias de dedo com as pontas pés e os repousa sobre a mesa, entre panfletos e livros que falam de paz. O assunto a interessa desde os 17 anos, quando viu a Libéria se transformar no país da carnificina. Na ocasião, o presidente fora deposto por guerrilheiros que ficaram no poder até 2003 e contribuíram para a morte de 250 mil habitantes e o estupro de 50% da população feminina. Os detalhes dessa luta estão no livro Mighty Be Our Powers: How Sisterhood, Prayer and Sex Changed a Nation at War (“Louvados sejam nossos poderes: como as mulheres, a oração e o sexo mudaram uma nação em guerra”), que chega este ano ao Brasil. Na obra, Leymah conta como chamou atenção da opinião pública com uma greve de sexo e revela a luta pessoal contra o alcoolismo e a violência doméstica. Aqui, fala sobre tudo isso e o desconforto que o Nobel causou entre suas colegas.

"Fugi grávida e passei por rebeldes
que decoravam as barricadas com cabeças
de jovens assassinados"

Marie Claire É verdade que uma jornalista internacional desistiu de entrevistá-la depois de você responder que não havia sido estuprada?
LG É. As pessoas têm um prazer sádico em contar histórias ruins. Gostam de perpetuar a imagem de que nós, africanas, somos vítimas, pobrezinhas. Não querem triunfos, só dramas. Os jornalistas são capazes de entrevistar mulheres que foram violentadas com canos de armas, sem divulgar como elas superaram isso. Uma colega minha foi estuprada com a ajuda de seus dois filhos pequenos. Os rebeldes os forçaram a segurar suas pernas enquanto a violentavam. Tiraram sua jaqueta, gozaram em cima dela e a deixaram caída num canto. Sabe o que essa mulher fez? Limpou a jaqueta, vestiu-a de volta e saiu de casa sem trocar uma palavra com os filhos porque tinha de buscar comida para eles. Essa parte da história os jornalistas não contam.

MC Até os 17 anos você viveu numa Libéria diferente desta. Como era e o que mudou?
LG Era um país tranquilo até 1989. Famílias das 16 etnias se reuniam para papear. O Natal era celebrado (70 % da população é cristã e o restante é muçulmana ou cultua elementos da natureza). Aos domingos, os pais iam à igreja e exibiam orgulhosos os filhos, de sapatos pretos engraxados e meias coloridas. As meninas trançavam os cabelos umas das outras para ir à escola. E não se falava em gravidez na adolescência. As crianças não viam os mortos, eram proibidas de ir a funerais. De repente, a morte passou a estar por toda parte. A gente acordava e via um corpo na rua. O anormal virou normal e vice-versa.

MC De onde vem o ódio que deflagrou a guerra?
LG É muito antigo. A Libéria foi colonizada por escravos afro-americanos devolvidos pelos Estados Unidos, em 1822, com a desculpa de que lá teriam mais liberdade, direitos iguais, e foi o oposto. Escravos de outras nações africanas também foram enviados para a Libéria e criaram um grupo de elite que ficou no poder até 1980 (leia mais sobre a história da Libéria ao final da entrevista), quando as guerras civis começaram. Charles Talyor, o último ditador, perpetuou um ódio que já existia.

MC Como começou sua luta pessoal contra a violência?
LG Em 1996, os rebeldes de Taylor se aproximaram da minha casa. Meu marido estava fora e eu, grávida de cinco meses, fugi com os meus filhos, então com 2 e 3 anos. Passei por bloqueios de rebeldes de diferentes etnias que decoravam suas barricadas com cabeças de jovens recém-assassinados. Fui para a casa dos meus pais, num bairro mais distante. Éramos cinquenta parentes em apenas três quartos. Ali era mais seguro, porque meu pai conhecia gente que sabia do avanço dos rebeldes. Mas a comida não dava para todos e, uma vez, meu Joshua (o primogênito) disse: “Tenho tanta fome, mãe. Só queria um pedaço de bolo”. Eu não tinha nada para dar para ele, nem pão. Doeu demais ver que meus filhos só conheciam a vida na fome. Então, estudei para ser assistente social e trabalhei por dez anos com as crianças soldado (que matavam em troca de de comida e de um poder imaginário). Foi quando vi que apenas nós, mães, podíamos fazer algo para mudar a vida das crianças e montei a Women Peacebuilding Network, rede que uniu muçulmanas e cristãs na luta pela Paz.

MC Cristãs e muçulmanas não se estranharam?
LG Um dia sonhei que uma voz me dizia para reunir mulheres para rezar, pois juntas iríamos acabar com a guerra. Acordei, corri para a igreja luterana em que trabalhava como voluntária e contei para o pastor. Ele disse: “O sonho é seu. Você é quem deve honrá-lo”. Procurei, então, a presidente da organização das mulheres luteranas e passamos a nos reunir para rezar. Aos poucos, fomos chamando outras igrejas protestantes e a atenção das muçulmanas, que se engajaram na luta. Líamos trechos da Bíblia e do Corão que falavam da força transformadora das mulheres. Nesses livros, elas não ficavam só rezando, não. Iam à luta. E isso nos encorajou tanto que, em 2001, nos vestimos de branco e fomos fazer piquete num campo de futebol que ficava no trajeto diário do ditador Charles Taylor. No início, éramos vinte ou trinta mulheres protestando todos os dias. Em dois anos, viramos duas mil.

MC Qual a sua opinião sobre o posicionamento da presidenta da Libéria Ellen Johnson Sirleaf em relação ao homossexualismo? 
LG Na minha opinião, não deveria existir discriminação contra um indivíduo com base em sexo, raça, etnia ou sexualidade. Acredito que a África ainda não está madura para a discussão sobre casamento gay. No entanto, continua aceitando práticas culturais como a exploração sexual de meninas menores de idade, adultério e outros atos considerados errados enquanto condena atividades sexuais entre pessoas do mesmo sexo. 

"Deus me abençoou com filhos lindos e um belo trabalho.
Mas escolheu que eu não seria feliz no amor"

MC Como surgiu a ideia de fazer uma greve de sexo?
LG Estávamos exaustas depois de protestar um dia todo. Aí, Assatu­, uma muçulmana do grupo, disse: “Estamos fazendo de tudo para mudar a sociedade. Mas e os homens que são contra a guerra: por que não fazem coisa nenhuma?”. Pensei no que poderia atraí-los para as discussões de paz e Assatu disse: “Já sei, vamos fazer uma greve de sexo. Se os homens perderem o que mais gostam, vão fazer de tudo para recuperar, inclusive ajudar a parar a guerra (largando as armas, orando, negociando ou acolhendo as crianças órfãs, por exemplo). Nas comunidades rurais, deu mais certo. Elas convidaram os homens para irem à Igreja e disseram: “Vocês concordam em rezar e jejuar pela paz do nosso país?”. Eles disseram “siiiim”. E elas: “Mas o jejum só é verdadeiro se você abrir mão de todos os prazeres, não só da comida, certo?”. Eles disseram “siiiim”, e elas continuaram: “se o sexo é o principal deles, então vocês concordam em se abster do sexo se isso nos trouxer a paz?”. Como a nossa cultura é muito religiosa, os homens não conseguiram dizer não.

MC Quanto tempo essas mulheres ficaram sem transar?
LG Dois anos.

MC Você inclusive? Foi difícil?
LG Eu também, claro. Difícil era o que estávamos vivendo. Não se tem libido quando a morte está por todos os lados. Anunciar uma greve de sexo foi a maneira que encontramos de chamar atenção da opinião pública.

MC Não teve medo de haver um estupro coletivo?
LG Nas cidades mais urbanizadas, as mulheres já eram abusadas­ por seus maridos e por rebeldes. Durante uma guerra civil, os homens que não estão matando, e não estão morrendo, estão escondidos para sobreviver. E sabe ­como eles se escondem? Com a ajuda das mulheres, logo, eles nos deviam isso. Ou seja, os homens deviam suas vidas às mulheres.

MC O que fez de você uma mulher, assim, tão forte?
LG Meu pai, que trabalhava como técnico de rádio, era feminista. Foi capaz de abrir mão de uma tradição de homens de família para proteger as cinco filhas. Na África, é costume entre etnias muçulmanas ou cristãs que os pais submetam suas filhas à mutilação genital em rituais secretos, para ganhar o respeito da sociedade. Mesmo assim, ele foi contra. Com ele, aprendi a acreditar que a gente pode mudar as coisas. Com ele e com essa voz que sempre ouvi sussurrar “vai passar, vai passar”.

MC Que vozes são essas? As mesmas do sonho?
LG Sim, ouço desde garota, mas não sei de onde vêm e só comecei a dar atenção a elas aos 20 anos. Me lembro de ouvi-la quando engravidei do Joshua. No meu sonho, a voz me disse que eu esperava um garoto.

MC Qual foi o momento mais difícil da luta pela paz?
LG Se você fizer essa mesma pergunta a outras mulheres que lutam, vai ver que nenhuma é uma garotinha feliz. Tenho uma amiga que diz que é culpa do feminismo. “Vocês feministas nunca conseguem manter os homens por perto” (risos). É bem verdade e fui muito chacoteada por isso. Na África, para ser bem-sucedida, você tem de ter um casamento legal. Eu vivi com o Tunde, meu segundo marido, por quase dez anos (entre 1998 e 2008), mas ele não era divorciado no papel e fui hostilizada por isso. Virei motivo de piada na igreja. As pessoas cochichavam, falavam de mim pelas costas. Tinha dias em que eu acordava pensando “eu não mereço” e bebia, me deprimia. Pensei em desistir, mas fui acolhida por uma muçulmana que leu uma passagem do Corão sobre as imperfeições humanas. Diante do grupo, ela disse que quem não fosse capaz de conviver com a diversidade deveria se retirar da turma de orações. Mais da metade saiu.

MC Como suas colegas reagiram ao Nobel?
LG Meu círculo social encolheu. Fiquei desapontada com alguns amigos. A primeira foi uma amiga­ jornalista com troquei confidências por anos. Tinha­ acabado de saber do Nobel e, enquanto esperava um voo, liguei­ para ela para contar do prêmio e para saber como ela estava­, pois tinha saudade. Depois de uns minutos, vi que ela perguntava coisas técnicas e específicas do Nobel. Foi quando percebi que estava sendo entrevistada e desliguei. Hoje sei que preciso tomar cuidado com o que eu digo para não virar manchete. Dentro do nosso grupo de orações, a reação também foi complicada. Cheguei animada dizendo “nós ganhamos” e algumas disseram: “não, você ganhou”. Mas o dinheiro (500 mil dólares) foi revertido para a instituição. Prefiro olhar para as coisas boas­. O Nobel me ajudou a conseguir mais de cinquenta bolsas de estudo integral para meninas africanas que não tinham nem o direito de sonhar com isso.

"Apanhei por 
cinco anos do meu marido e ainda assim tive quatro filhos 
com ele"

MC E você? Questionou se merecia o prêmio?
LG Se Deus me escolheu, deve ter sua razão. Há mulheres mais espertas do que eu no grupo? Sem dúvida. São elas mais fortes do que eu? Sim. Mas se ele me escolheu, não posso me sentir culpada. Seria desfeita. Se aconteceu assim, é porque eu e as outras mulheres temos a aprender com isso. O mesmo vale para a nossa vida pessoal. Deus me abençoou com um trabalho incrível e seis filhos lindos. Mas escolheu que eu não seria feliz no amor.

MC Você está com James, o pai de Jaydyn, há quatro anos. Não é feliz com ele?
LG Sou. Essa é minha primeira relação tranquila. Mas nesse assunto todo cuidado é pouco. A sociedade nos julga, nos faz acreditar que cabe à mulher manter uma família perfeita. E que, mesmo apanhando, ela deve insistir nisso. Mas isso é mentira. A culpa pode não ser sua, mas do monstro com quem se casou. O homem que bate tem baixa autoestima e só consegue se sentir melhor diminuindo a mulher.

MC Como se pode ajudar?
LG Não julgando quem apanha. Quanto mais você julga, mais você empurra a pessoa para longe de você e para perto do agressor. Quando minha família soube­ que o Daniel me xingava e me batia, me condenou por continuar com ele. Isso só me aproximou mais dele. Em cinco anos e meio com Daniel, tive quatro filhos. Pensava: “preciso ter um bebê que as coisas vão melhorar”. Achava que transando com ele e colocando filhos seus no mundo ele ia parar de me bater. Imagine... Só parou quando consegui­ me desvencilhar daquilo, fui morar fora (Leymah fez especialização em psicologia pós-trauma na Universidade de Virginia, nos EUA) e deixei meus filhos com meus pais e minha irmã.

MC Foi nessa época que você começou a beber?
LG A bebida era uma forma de estancar a saudade que eu sentia dos meus filhos. Tive muita dificuldade de escrever sobre isso no livro, porque sei o quanto os expõe (há uma passagem em que ela diz “É duro admitir, mas me lembro de uma vez em que meus filhos contabilizaram as taças de vinho que eu havia tomado. Foram catorze, em uma noite só”). Outro dia Joshua, que como todo jovem toma seus goles, me disse que ia parar. Ele tem medo de ser o “filho da laureada, que bebe”.

MC Que tipo de mãe você é?
LG A melhor que a vida me permitiu. Tenho ao todo seis filhos. Do casamento com Daniel são: Joshua, 19, Amber, 18, Arthur 16 e Pudu, 14. Com Tunde adotei Ma Lou, que hoje tem 14, e com James tive Jaydyn, de 2. Olhando para trás, faria tudo de novo, inclusive casar com Daniel. Tive filhos lindos com ele e aprendi a ser forte. Se nossa relação tivesse dado certo, eu não estaria aqui hoje. Os abusos me fizeram muito mais forte, me fizeram estudar, trabalhar, mudar. Mas isso não pode servir de exemplo. Nenhuma mulher merece encontrar sua força passando pelo que eu passei.

MC Você já fez terapia?
LG Faço sempre. Deus é meu psicólogo invisível e a gente conversa sobre as minhas provações e as de crianças e mulheres africanas. Tenho três músicas especiais, para tocar no carro, enquanto dirijo e converso com ele. Uma delas é “The Rock”, da Whitney Houston. O carro é meu consultório e Deus meu psicólogo.

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