Leymah Gbowee: "Ganhar
o Nobel me afastou das pessoas"
Ela apanhou do marido, foi alcoólatra e viu os
filhos passarem fome. Anos depois, criou uma rede de mulheres que ajudou a
acabar com a guerra civil da Libéria, na África, derrubando o ditador Charles
Taylor, condenado pelo Tribunal Especial de Serra Leoa (TESL) por crimes de
guerra nesta quinta (26). Confira a entrevista exclusiva na qual Leymah Gbowee
fala sobre o livro que lançará no Brasil, o Nobel da Paz que conquistou e a
situação na Libéria
Por Marina Caruso, de Nova York
Na sede da Fundação Gbowee para a Paz, no Lower East Side, em Nova York, Leymah
Gbowee despacha a portas fechadas. Da antessala, escuta-se o vozeirão
aveludado da ativista que, em novembro, dividiu o prêmio Nobel da Paz com a
presidenta da Libéria Ellen Johnson Sirleaf e a iemenita Tawakkul Karman. Uma
menina negra de trancinhas coloridas e bumbum arrebitado por uma fralda
descartável corre em direção à porta. É Jaydyn, 2 anos, a caçula dos seis
filhos de Leymah. Vestido longo e turbante estampados, Leymah abre a porta,
sorri e espalha lápis e papéis sulfite pelo chão. Depois, diz que a menina
acompanhará “quietinha” a entrevista.
Aos 40 anos recém-completados, Leymah parece à vontade em sua elegância
étnica. Tira as sandálias de dedo com as pontas pés e os repousa sobre a mesa,
entre panfletos e livros que falam de paz. O assunto a interessa desde os 17
anos, quando viu a Libéria se transformar no país da carnificina. Na ocasião, o
presidente fora deposto por guerrilheiros que ficaram no poder até 2003 e
contribuíram para a morte de 250 mil habitantes e o estupro de 50% da população
feminina. Os detalhes dessa luta estão no livro Mighty Be Our Powers:
How Sisterhood, Prayer and Sex Changed a Nation at War (“Louvados
sejam nossos poderes: como as mulheres, a oração e o sexo mudaram uma nação em
guerra”), que chega este ano ao Brasil. Na obra, Leymah conta como chamou
atenção da opinião pública com uma greve de sexo e revela a luta pessoal contra
o alcoolismo e a violência doméstica. Aqui, fala sobre tudo isso e o
desconforto que o Nobel causou entre suas colegas.
"Fugi
grávida e passei por rebeldes
que decoravam as barricadas com cabeças
de jovens assassinados"
que decoravam as barricadas com cabeças
de jovens assassinados"
Marie Claire É verdade que uma jornalista internacional desistiu de
entrevistá-la depois de você responder que não havia sido estuprada?
LG É. As pessoas
têm um prazer sádico em contar histórias ruins. Gostam de perpetuar a imagem de
que nós, africanas, somos vítimas, pobrezinhas. Não querem triunfos, só dramas.
Os jornalistas são capazes de entrevistar mulheres que foram violentadas com
canos de armas, sem divulgar como elas superaram isso. Uma colega minha foi
estuprada com a ajuda de seus dois filhos pequenos. Os rebeldes os forçaram a
segurar suas pernas enquanto a violentavam. Tiraram sua jaqueta, gozaram em
cima dela e a deixaram caída num canto. Sabe o que essa mulher fez? Limpou a jaqueta,
vestiu-a de volta e saiu de casa sem trocar uma palavra com os filhos porque
tinha de buscar comida para eles. Essa parte da história os jornalistas não
contam.
MC Até os 17 anos você viveu numa Libéria diferente desta. Como era e o
que mudou?
LG Era um país
tranquilo até 1989. Famílias das 16 etnias se reuniam para papear. O Natal era
celebrado (70 % da população é cristã e o restante é muçulmana ou
cultua elementos da natureza). Aos domingos, os pais iam à igreja e exibiam
orgulhosos os filhos, de sapatos pretos engraxados e meias coloridas. As
meninas trançavam os cabelos umas das outras para ir à escola. E não se falava
em gravidez na adolescência. As crianças não viam os mortos, eram proibidas de
ir a funerais. De repente, a morte passou a estar por toda parte. A gente
acordava e via um corpo na rua. O anormal virou normal e vice-versa.
MC De onde vem o ódio que deflagrou a guerra?
LG É muito
antigo. A Libéria foi colonizada por escravos afro-americanos devolvidos pelos
Estados Unidos, em 1822, com a desculpa de que lá teriam mais liberdade,
direitos iguais, e foi o oposto. Escravos de outras nações africanas também
foram enviados para a Libéria e criaram um grupo de elite que ficou no poder
até 1980 (leia mais sobre a história da Libéria ao final da entrevista),
quando as guerras civis começaram. Charles Talyor, o último ditador, perpetuou
um ódio que já existia.
MC Como começou sua luta pessoal contra a violência?
LG Em 1996, os
rebeldes de Taylor se aproximaram da minha casa. Meu marido estava fora e eu,
grávida de cinco meses, fugi com os meus filhos, então com 2 e 3 anos. Passei
por bloqueios de rebeldes de diferentes etnias que decoravam suas barricadas
com cabeças de jovens recém-assassinados. Fui para a casa dos meus pais, num
bairro mais distante. Éramos cinquenta parentes em apenas três quartos. Ali era
mais seguro, porque meu pai conhecia gente que sabia do avanço dos rebeldes.
Mas a comida não dava para todos e, uma vez, meu Joshua (o primogênito) disse:
“Tenho tanta fome, mãe. Só queria um pedaço de bolo”. Eu não tinha nada para
dar para ele, nem pão. Doeu demais ver que meus filhos só conheciam a vida na
fome. Então, estudei para ser assistente social e trabalhei por dez anos com as
crianças soldado (que matavam em troca de de comida e de um poder
imaginário). Foi quando vi que apenas nós, mães, podíamos fazer algo para
mudar a vida das crianças e montei a Women Peacebuilding Network, rede que uniu
muçulmanas e cristãs na luta pela Paz.
MC Cristãs e muçulmanas não se estranharam?
LG Um dia sonhei
que uma voz me dizia para reunir mulheres para rezar, pois juntas iríamos
acabar com a guerra. Acordei, corri para a igreja luterana em que trabalhava
como voluntária e contei para o pastor. Ele disse: “O sonho é seu. Você é quem
deve honrá-lo”. Procurei, então, a presidente da organização das mulheres
luteranas e passamos a nos reunir para rezar. Aos poucos, fomos chamando outras
igrejas protestantes e a atenção das muçulmanas, que se engajaram na luta.
Líamos trechos da Bíblia e do Corão que falavam da força transformadora das
mulheres. Nesses livros, elas não ficavam só rezando, não. Iam à luta. E isso
nos encorajou tanto que, em 2001, nos vestimos de branco e fomos fazer piquete
num campo de futebol que ficava no trajeto diário do ditador Charles Taylor. No
início, éramos vinte ou trinta mulheres protestando todos os dias. Em dois
anos, viramos duas mil.
MC Qual a sua opinião sobre o posicionamento da presidenta da Libéria
Ellen Johnson Sirleaf em relação ao homossexualismo?
LG Na minha opinião,
não deveria existir discriminação contra um indivíduo com base em sexo, raça,
etnia ou sexualidade. Acredito que a África ainda não está madura para a
discussão sobre casamento gay. No entanto, continua aceitando práticas
culturais como a exploração sexual de meninas menores de idade, adultério e
outros atos considerados errados enquanto condena atividades
sexuais entre pessoas do mesmo sexo.
"Deus me abençoou com filhos lindos e um
belo trabalho.
Mas escolheu que eu não seria feliz no amor"
MC
Como surgiu a ideia de fazer uma greve de sexo?
LG Estávamos exaustas depois de protestar um dia
todo. Aí, Assatu, uma muçulmana do grupo, disse: “Estamos fazendo de tudo para
mudar a sociedade. Mas e os homens que são contra a guerra: por que não fazem
coisa nenhuma?”. Pensei no que poderia atraí-los para as discussões de paz e
Assatu disse: “Já sei, vamos fazer uma greve de sexo. Se os homens perderem o
que mais gostam, vão fazer de tudo para recuperar, inclusive ajudar a parar a
guerra (largando as armas, orando,
negociando ou acolhendo as crianças órfãs, por exemplo). Nas
comunidades rurais, deu mais certo. Elas convidaram os homens para irem à
Igreja e disseram: “Vocês concordam em rezar e jejuar pela paz do nosso país?”.
Eles disseram “siiiim”. E elas: “Mas o jejum só é verdadeiro se você abrir mão
de todos os prazeres, não só da comida, certo?”. Eles disseram “siiiim”, e elas
continuaram: “se o sexo é o principal deles, então vocês concordam em se abster
do sexo se isso nos trouxer a paz?”. Como a nossa cultura é muito religiosa, os
homens não conseguiram dizer não.
MC
Quanto tempo essas mulheres ficaram sem transar?
LG Dois anos.
MC
Você inclusive? Foi difícil?
LG Eu também, claro. Difícil era o que
estávamos vivendo. Não se tem libido quando a morte está por todos os lados.
Anunciar uma greve de sexo foi a maneira que encontramos de chamar atenção da
opinião pública.
MC Não
teve medo de haver um estupro coletivo?
LG Nas cidades mais urbanizadas, as mulheres
já eram abusadas por seus maridos e por rebeldes. Durante uma guerra civil, os
homens que não estão matando, e não estão morrendo, estão escondidos para
sobreviver. E sabe como eles se escondem? Com a ajuda das mulheres, logo, eles
nos deviam isso. Ou seja, os homens deviam suas vidas às mulheres.
MC O
que fez de você uma mulher, assim, tão forte?
LG Meu pai, que trabalhava como técnico de
rádio, era feminista. Foi capaz de abrir mão de uma tradição de homens de
família para proteger as cinco filhas. Na África, é costume entre etnias
muçulmanas ou cristãs que os pais submetam suas filhas à mutilação genital em rituais
secretos, para ganhar o respeito da sociedade. Mesmo assim, ele foi contra. Com
ele, aprendi a acreditar que a gente pode mudar as coisas. Com ele e com essa
voz que sempre ouvi sussurrar “vai passar, vai passar”.
MC Que
vozes são essas? As mesmas do sonho?
LG Sim, ouço desde garota, mas não sei de
onde vêm e só comecei a dar atenção a elas aos 20 anos. Me lembro de ouvi-la
quando engravidei do Joshua. No meu sonho, a voz me disse que eu esperava um
garoto.
MC
Qual foi o momento mais difícil da luta pela paz?
LG Se você fizer essa mesma pergunta a outras
mulheres que lutam, vai ver que nenhuma é uma garotinha feliz. Tenho uma amiga
que diz que é culpa do feminismo. “Vocês feministas nunca conseguem manter os
homens por perto” (risos). É bem verdade e
fui muito chacoteada por isso. Na África, para ser bem-sucedida, você tem de
ter um casamento legal. Eu vivi com o Tunde, meu segundo marido, por quase dez
anos (entre 1998 e 2008), mas ele não era
divorciado no papel e fui hostilizada por isso. Virei motivo de piada na
igreja. As pessoas cochichavam, falavam de mim pelas costas. Tinha dias em que
eu acordava pensando “eu não mereço” e bebia, me deprimia. Pensei em desistir,
mas fui acolhida por uma muçulmana que leu uma passagem do Corão sobre as
imperfeições humanas. Diante do grupo, ela disse que quem não fosse capaz de
conviver com a diversidade deveria se retirar da turma de orações. Mais da
metade saiu.
MC
Como suas colegas reagiram ao Nobel?
LG Meu círculo social encolheu. Fiquei
desapontada com alguns amigos. A primeira foi uma amiga jornalista com troquei
confidências por anos. Tinha acabado de saber do Nobel e, enquanto esperava um
voo, liguei para ela para contar do prêmio e para saber como ela estava, pois
tinha saudade. Depois de uns minutos, vi que ela perguntava coisas técnicas e
específicas do Nobel. Foi quando percebi que estava sendo entrevistada e
desliguei. Hoje sei que preciso tomar cuidado com o que eu digo para não virar
manchete. Dentro do nosso grupo de orações, a reação também foi complicada.
Cheguei animada dizendo “nós ganhamos” e algumas disseram: “não, você ganhou”.
Mas o dinheiro (500 mil dólares) foi revertido para a instituição.
Prefiro olhar para as coisas boas. O Nobel me ajudou a conseguir mais de
cinquenta bolsas de estudo integral para meninas africanas que não tinham nem o
direito de sonhar com isso.
"Apanhei por
cinco anos do meu marido e ainda assim tive quatro filhos
com ele"
cinco anos do meu marido e ainda assim tive quatro filhos
com ele"
MC E você? Questionou se merecia o prêmio?
LG Se Deus me
escolheu, deve ter sua razão. Há mulheres mais espertas do que eu no grupo? Sem
dúvida. São elas mais fortes do que eu? Sim. Mas se ele me escolheu, não posso
me sentir culpada. Seria desfeita. Se aconteceu assim, é porque eu e as outras
mulheres temos a aprender com isso. O mesmo vale para a nossa vida pessoal.
Deus me abençoou com um trabalho incrível e seis filhos lindos. Mas escolheu
que eu não seria feliz no amor.
MC Você está com James, o pai de Jaydyn, há quatro anos. Não é feliz com
ele?
LG Sou. Essa é
minha primeira relação tranquila. Mas nesse assunto todo cuidado é pouco. A
sociedade nos julga, nos faz acreditar que cabe à mulher manter uma família
perfeita. E que, mesmo apanhando, ela deve insistir nisso. Mas isso é mentira.
A culpa pode não ser sua, mas do monstro com quem se casou. O homem que bate
tem baixa autoestima e só consegue se sentir melhor diminuindo a mulher.
MC Como se pode ajudar?
LG Não julgando
quem apanha. Quanto mais você julga, mais você empurra a pessoa para longe de
você e para perto do agressor. Quando minha família soube que o Daniel me
xingava e me batia, me condenou por continuar com ele. Isso só me aproximou
mais dele. Em cinco anos e meio com Daniel, tive quatro filhos. Pensava:
“preciso ter um bebê que as coisas vão melhorar”. Achava que transando com ele
e colocando filhos seus no mundo ele ia parar de me bater. Imagine... Só parou
quando consegui me desvencilhar daquilo, fui morar fora (Leymah fez
especialização em psicologia pós-trauma na Universidade de Virginia, nos EUA) e
deixei meus filhos com meus pais e minha irmã.
MC Foi nessa época que você começou a beber?
LG A bebida era
uma forma de estancar a saudade que eu sentia dos meus filhos. Tive muita
dificuldade de escrever sobre isso no livro, porque sei o quanto os expõe (há
uma passagem em que ela diz “É duro admitir, mas me lembro de uma vez em que
meus filhos contabilizaram as taças de vinho que eu havia tomado. Foram
catorze, em uma noite só”). Outro dia Joshua, que como todo jovem toma seus
goles, me disse que ia parar. Ele tem medo de ser o “filho da laureada, que
bebe”.
MC Que tipo de mãe você é?
LG A melhor que
a vida me permitiu. Tenho ao todo seis filhos. Do casamento com Daniel são:
Joshua, 19, Amber, 18, Arthur 16 e Pudu, 14. Com Tunde adotei Ma Lou, que hoje
tem 14, e com James tive Jaydyn, de 2. Olhando para trás, faria tudo de novo,
inclusive casar com Daniel. Tive filhos lindos com ele e aprendi a ser forte.
Se nossa relação tivesse dado certo, eu não estaria aqui hoje. Os abusos me
fizeram muito mais forte, me fizeram estudar, trabalhar, mudar. Mas isso não
pode servir de exemplo. Nenhuma mulher merece encontrar sua força passando pelo
que eu passei.
MC Você já fez terapia?
LG Faço sempre.
Deus é meu psicólogo invisível e a gente conversa sobre as minhas provações e
as de crianças e mulheres africanas. Tenho três músicas especiais, para tocar no
carro, enquanto dirijo e converso com ele. Uma delas é “The Rock”, da Whitney
Houston. O carro é meu consultório e Deus meu psicólogo.
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