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sábado, 3 de novembro de 2012


Nem tudo é bullying: superproteção pode atrapalhar o desenvolvimento das crianças

Especialistas alertam que o excesso de mediação dos pais e da escola está privando as crianças e os adolescentes do importante aprendizado que é resolver os próprios problemas
Paulo Camargo

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 Foto: Getty Images
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A cena é cada vez mais comum. Basta a criança discutir com um colega, receber uma crítica em classe, ser recusada na brincadeira organizada por um grupo na hora do recreio ou ter uma vontade repentina de faltar na escola e pronto: os pais já invadem a diretoria cobrando providências. E chegam com o diagnóstico na ponta da língua: “É bullying!” De tão repetido e debatido nos últimos tempos, o termo ganhou tamanha popularidade que virou rótulo para qualquer situação de conflito no ambiente escolar, até para os pequenos desentendimentos aparentemente normais ou aquelas piadinhas sarcásticas sempre trocadas por adolescentes.
Para o bem da garotada, esse não é o melhor dos cenários, alertam alguns especialistas. “Considerar que tudo é bullying é tão nocivo quanto achar que nada é”, avisa o psicólogo José Ernesto Bologna, de São Paulo. Uma das primeiras a levantar essa polêmica discussão foi a doutora em psicologia e pesquisadora inglesa Helene Guldberg, autora de Reclaiming Childhood: Freedom and Play in an Age of Fear (“Reivindicando a infância: liberdade e brincadeira em uma era de medo”). No livro, ainda não publicado no Brasil, ela denuncia o florescimento, nos Estados Unidos e no Reino Unido, do que chama de “indústria do bullying”.
O fenômeno teria encontrado terreno fértil para crescer porque vivemos em uma época marcada pelo excesso de proteção e de fiscalização das crianças, assim como pela falta de confiança de que as pessoas, de modo geral, sejam capazes de solucionar seus problemas por conta própria. “É cada vez mais assumida como verdade a ideia de que os indivíduos precisam de terceiros, ou seja, de especialistas que resolvam suas disputas ou lhes digam como se relacionar com o outro”, afirmou Helene Guldberg a CLAUDIA. “Isso é negativo, pois mina a independência e a autonomia.”
De acordo com sua tese, não é uma questão de negar a existência do bullying nem de minimizar sua gravidade, mas de delimitar com maior rigor quando, de fato, se trata de um episódio que merece essa classificação e, principalmente, quando uma intervenção é recomendável. A interferência desmedida de pais ou educadores nas pendengas infantis acaba alimentando as dificuldades da criança para se relacionar, tanto na escola quanto na sociedade, e inibindo ou desenvolvimento dela. “Não é fácil saber o momento de intervir”, admite Helene. “Há sempre o risco de, ao fazer isso, o conflito se agravar. Além do mais, ao se meterem, os adultos estão passando a mensagem de que a criança não tem capacidade de lidar sozinha com a situação.” 
O desafio da convivência 
Pesquisadores definem o bullying como uma perseguição sistemática que se materializa em repetidas humilhações verbais ou físicas. Não é raro que sejam ressaltadas aquelas características que fazem o perseguido se sentir psicologicamente fragilizado, como o excesso de peso ou a opção sexual. Os episódios costumam contar com um trio de protagonistas: o agressor, a vítima e a plateia, que participa da agressão ou apenas se cala e é conivente. A internet e as redes sociais colocaram mais lenha na fogueira ao propiciar o surgimento de uma variedade amplificada desse tipo de violência: o cyberbullying. O que antes ficava circunscrito a um ambiente social agora pode não obedecer fronteiras e ser praticado 24 horas.
O brasileiro Joe Garcia, doutor em educação e estudioso da indisciplina escolar, conta que, apesar de sempre ter existido, o bullying surge descrito e caracterizado na psicologia por volta da década de 1970. “Historicamente, foi um avanço, porque despertou a atenção das autoridades, mas agora precisamos adotar uma atitude crítica em relação aos usos e abusos, limites e possibilidades do conceito”, pondera o educador. Em outras palavras, não dá para sair colocando esse mesmo carimbo nas diferentes manifestações de agressividade que ocorrem dentro da escola, embora todas elas acabem fornecendo uma só revelação: “A convivência ainda é um dos maiores desafios a ser superados”, acredita Garcia. Mas esse desafio nem sempre entra na pauta do dia. Efeito colateral de sua superexposição, o bullying tem monopolizado todas as atenções e ofuscado outras questões relevantes, como a discussão se a educação dada hoje às crianças as prepara mesmo para a vida real.
Em seu livro Why School Antibullying Programs Don’t Work (“Por que os programas antibullying das escolas não funcionam”), não publicado no Brasil, o psiquiatra neozelandês Stuart Twemlow defende que as estratégias de combate adotadas mundo afora revelam uma preocupação maior em punir agressores do que em criar um ambiente de diálogo – e isso é essencial para que as vítimas se sintam capazes de se defender sozinhas e todos possam encontrar formas mais saudáveis de se relacionar. 
A dor do amadurecimento 
No Brasil, há estados em que já é obrigatória a comunicação pela escola dos casos de bullying às Varas da Infância e da Juventude. Além disso, a proposta do novo Código Penal tipifica como crime essa forma de agressão.
Um deslize dos programas de tolerância zero, segundo a inglesa Helene, é dividir as crianças em vítimas e agressores, simplificando demais os relacionamentos. “Não se ensina nada sobre a complexidade de amizades, os inimigos e as relações em geral. Em vez disso, é apenas sugerido que, toda vez que se sentir vitimizada, a criança poderá contar com terceiros para resolver seus problemas”, ela critica. Na sua opinião, se não quisermos formar uma geração incapaz de lidar com insultos e os altos e baixos da vida, precisamos evitar posturas alarmistas e superprotetoras, ainda que o agredido necessite de empatia. “Devemos reforçar a ideia de que ofensas e atos de rejeição são perturbadores, mas que a realidade é assim, feita de bons e maus momentos, e logo ele vai se sentir melhor de novo.” Já o brasileiro Bologna acredita que um equívoco das atuais abordagens do bullying é partir de um mundo ideal homogêneo, quando deveriam preparar para uma sociedade em que a diversidade é regra, não exceção. “A escola é o lugar das iniciações, onde as crianças e os jovens se socializam e devem aprender a conhecer a si mesmos e os outros, a conviver, a se defender e a se proteger.” Difícil para os pais é aceitar que uma dose de dor é necessária para o processo de amadurecimento. Ser ignorado por um grupo da classe ou excluído de uma brincadeira não é o mesmo que sofrer bullying. Mas há mãe que não resiste a se meter em um caso assim.
O impulso de proteger o filho simplesmente não permite ficar parada, e ela peca por excesso. Rejeição, raiva, frustração fazem parte da trajetória de todos, e não se deve privar os filhos de vivenciar tais sentimentoss. Ninguém está dizendo para jogar a criança aos leões para que cresça na marra. Só não pode exagerar na proteção. Ou corre-se o risco de restringir a capacidade dela de enfrentar as situações mais corriqueiras da vida emocional. A questão é que o limite entre abandonar à própria sorte e salvaguardar demais é tênue. Até porque o ambiente escolar tornou-se mais complexo. “Se antes as manifestações de violência eram a opressão e o autoritarismo, hoje as crianças e os jovens sofrem também por solidão, medo, sentimento de não pertencimento e até de anonimato”, diz Bologna. Daí a necessidade de enxergar além da poeira levantada pelo bullying. Ou talvez seja impossível dar apoio nessa hora.

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