Contribua com o SOS Ação Mulher e Família na prevenção e no enfrentamento da violência doméstica e intrafamiliar

Banco Santander (033)

Agência 0632 / Conta Corrente 13000863-4

CNPJ 54.153.846/0001-90

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Psiquiatra critica revitimização das mulheres que sofrem violência sexual

O Portal Compromisso e Atitude entrevistou a médica psiquiatra Cláudia Facuri, do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, que conduziu uma pesquisa com mulheres vítimas de violência sexual atendidas no CAISM (Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher), em Campinas (SP).

O estudo avaliou o perfil, os sintomas psíquicos, o tratamento ambulatorial e as características da agressão de 687 mulheres adultas e adolescentes vítimas de violência sexual atendidas entre 2006 e 2010 no CAISM, hospital universitário de referência no atendimento a casos de violência sexual, que também oferece assistência à gestação decorrente dessa agressão. O atendimento é gratuito e funciona 24 horas, todos os dias do ano.

Os dados do estudo apontaram que as agressões ocorreram principalmente no período noturno, entre 18 horas e 7 horas da manhã, na rua, no caminho para a escola ou o trabalho, em vias com pouca ou nenhuma iluminação, por um agressor desconhecido e único, com intimidação por força física ou porte velado de arma branca ou de fogo. Desse universo, 8,4% já tinham sofrido violência sexual anterior, cometida no âmbito doméstico, e 16% já tinham sido vítimas de estupro.

Confira a entrevista:

Chama a atenção na pesquisa o fato de 16% das mulheres terem informado já ter sofrido violência sexual anterior ao estupro motivador da procura do CAISM e, ao mesmo tempo, essas mulheres serem as que menos dão continuidade ao acompanhamento pós-atendimento emergencial. Quais são, na sua avaliação, os principais motivos desse abandono do acompanhamento?
Dentro do que estudei não consegui avaliar essa questão, mas o que está disposto na literatura é que as mulheres que sofreram violência no passado não necessariamente sofreram violência não-intrafamiliar. Geralmente essas mulheres procuraram ajuda, contaram para alguém e não foram acreditadas. Então, existe um receio de que sejam novamente não acreditadas ou até responsabilizadas, como sabemos que os abusadores podem fazer. Além disso, também de acordo com o que está lançado na literatura, uma mulher que sofre violência sexual na infância e na adolescência se torna uma vítima de maior risco de nova vitimização, porque o impacto na saúde mental dela, na construção de autoestima, em alguns aspectos gera uma incapacidade de avaliar situações de risco. É relatado inclusive uma postura contrafóbica, ou seja, ao invés de evitar situações de risco eu passo a me expor a situações.

Gostaria que a senhora explicasse melhor essa questão da autoexposição a maiores riscos, tendo em vista que há um senso comum de que as vítimas “provocam” a violência.
Isso é um dos grandes mitos do estupro. Várias coisas estão na literatura e podem ser encontradas em definições da OMS e na própria cartilha do Ministério da Saúde sobre os agravos à violência contra a mulher e a criança e adolescentes. Mas o que existe em relação à exposição ao risco é que uma primeira vitimização sexual é um fator de risco para uso de substâncias para enfrentar crises e quadros depressivos. E uma pessoa intoxicada está mais exposta a risco. Uma pessoa com baixa autoestima, que não se acha merecedora de relações mais saudáveis, vai se expor a outras relações violentas.

Nesse caso, a senhora está falando da violência conjugal?
Sim. E existe outra questão. Dificilmente alguém que foi exposta à violência sexual na infância ou na adolescência, intradomiciliar, não foi exposta a outros tipos de violência. É improvável que essa pessoa não tenha sido exposta a violência psíquica, afetiva, financeira, e até mesmo física.
Há um estudo feito aqui em Sumaré, próximo a Campinas, sobre a percepção da violência por mulheres da região. E existe a percepção de que se elas apanhassem mas batessem de volta, zerava, isso não tinha sido um evento violento. Então, existem nuances que extrapolam o que a gente conseguiu verificar, mas são compatíveis com as hipóteses que encontramos na literatura.

Os 8,4% de mulheres apontadas no estudo como vítimas com antecedente familiar de violência sexual, por outro lado, parecem um índice baixo diante dos estudos que apontam que, na maioria dos casos a violência sexual acontece dentro de casa, praticada por parceiros ou parentes. A que a senhora atribui essa diferença nos dados, já que a pesquisa coordenada pela senhora também aponta que a maioria das mulheres sofre a violência sexual na rua e por parceiro desconhecido?
Atribuo ao fato de a rede de atenção à violência contra a mulher em Campinas ter sutilezas. Existe o projeto Iluminar, conduzido pela doutora Verônica Alencar, que tem uma boa atuação. E existem outros lugares onde pessoas vítimas de violência intradomiciliar recorrente acabam sendo encaminhadas, como o SOS Mulher.*[SOS Ação Mulher e Família]
Então, o CAISM acaba recebendo os casos agudos. Porque alguém que é submetido à violência intradomiciliar em geral é submetido a mais de um evento de agressão, e quando procura ajuda ou o faz pela recorrência ou por uma idade mais precoce. Então, existe um viés de busca por ajuda no Hospital José Aristodemo Pinotti que passa bastante pelo atendimento no aspecto de saúde – tratamento com a profilaxia antirretroviral, antibióticos etc.

E quais são os principais efeitos psíquicos e psicológicos da violência sexual sobre a saúde desse grupo especificamente, das mulheres com antecedente familiar de agressão?
O que pude observar é que essas mulheres foram mais fragilizadas na apresentação de sintomas. A nova violência faz com que elas fiquem ainda mais vulneráveis àquelas vivências [da agressão antecedente] e retomam quadros da primeira. Então, elas fazem quadros mais intensos e se misturam às memórias. Existem, inclusive, casos de pessoas atendidas que são vítimas de violência sexual e foram levadas a atendimento e que suas mães ou irmãs também tinham sido vítimas. Nesses casos, todas elas tiveram sintomas. Ainda que a violência contra as familiares tivesse acontecido em outros momentos.

E quais são os principais sintomas? Como uma vítima que não buscou ajuda ou seus familiares podem identificar que ela está sofrendo os reflexos da violência e deve buscar auxílio profissional?
É preciso compreender duas coisas. A primeira é que a maior parte delas vai fazer algum sintoma, mesmo que isso não vire refere diagnóstico para transtorno mental. Tem sintomas que fazem com que a gente olhe para isso, especialmente para a intensidade com que eles acontecem e avaliar a indicação de terapia médica ou não. Psicoterapia para todas é essencial. Lidar com isso com ajuda um profissional treinado, competente para isso é essencial.
Mas, voltando aos sintomas, a alteração de sono é o que as vítimas mais referem. Uma piora no padrão de sono, às vezes com pesadelos, às vezes com despertar noturno, dificuldade para conciliar o sono. Quando a violência se deu no período noturno é comum que elas tenham muita dificuldade para conciliar tranquilidade nesse momento. As pessoas ficam um pouco hiperreativas, ou seja, se assustam facilmente, têm sobressaltos, algumas vão ficar mais isoladas, mais chorosas.
E existe uma situação que chamamos de revivescência, que é ter invasões de lembranças que você luta para não ter. Isso se for muito frequente e associado a outros sintomas pode levar ao diagnóstico de stress pós-traumático. Então, elas trazem para a gente a memória da voz, do cheiro, do gosto, de flashbacks de imagens que elas tentam afugentar. Alterações transitórias de apetite também, mas não são as mais importantes. Isso tende a melhorar com o tempo, quanto melhor for o apoio familiar e quanto antes elas forem submetidas a algum tratamento psicológico.
Existem ainda alguns fatores, como ter transtorno mental prévio e ter sofrido violência anterior, que contribuem para um maior agravamento [do quadro clínico]. E muitas delas vão ter reação suicida, vão ter um discurso suicida na verdade, porque é um continuum de sintomas. Uma ideação. Às vezes não é exatamente um desejo de se matar, mas um desejo de morte, uma desistência da vida.
Mas, apesar de isso ter um impacto grande e ser muito importante, é bom dizer que a maior parte delas consegue retomar um funcionamento saudável, o quanto elas vêm para o ambulatório de atendimento com um desejo enorme de retomar a vida.
Nossa maior dificuldade é com mulheres que não melhoram ou melhoram pouco com as intervenções psicoterapêuticas ou medicamentosas. Ou melhoram menos do que a gente gostaria. Porque existe uma parcela dessa população mais refratária. E aí as famílias que no início eram muito solícitas e estavam apoiando começam a entrar num discurso do “vamos lá”, “vamos voltar pro normal”, “já deu, né”, “põe uma pedra em cima disso e vamos tocar a vida”. Porque o tempo do apoio da rede social em alguns momentos não é o tempo da vítima, que precisa de mais tempo e o ambiente quer que o tempo seja o que ele determinou. Aí, essas pessoas perdem o apoio e isso piora bastante as coisas.

Quais são os principais dados apontados pela pesquisa no aspecto psíquico?
Eu não conheço as reações psíquicas de um terço da mulheres que foram lá, porque foram só para atendimento imediato. O que preocupa. Dos outros dois terços, houve muito mais sintomas e diagnósticos psiquiátricos efetivos e quadros psiquiátricos entre adultas do que entre as adolescentes. Isso nos faz querer continuar a nos debruçarmos sobre essa população, pois são muitas as hipóteses sobre as causas disso.
Talvez as mulheres adultas já tenham uma noção sobre seu lugar no mundo, sobre o impacto da violência na sexualidade, já tenham um parceiro e por isso se preocupem com os reflexos disso na relação. Porque a gente não oferece tratamento aos parceiros que não foram os agressores e espera que eles apoiem sem serem orientados e acolhidos. Isso é um limite do cuidado que a gente consegue ofertar hoje com os recursos que temos.
E um terço dessas mulheres adultas precisaram ser medicadas, inclusive com os critérios diagnósticos para transtorno mental, especialmente stress pós-traumático e transtorno depressivo.
Entre as adolescentes, metade delas não apresentaram sintoma algum. Em alguns casos nós atribuímos essa reação a características próprias da adolescência, como a vivência onipotente do tempo e da coisas, ou mesmo à naturalização da experiência de violência. Essa relação não entra na cabeça delas como uma ação violenta, mas num lugar de sexualidade, e ocorre uma subvalorização disso.

A que motivos a senhora atribui a melhora das taxas de adesão ao seguimento do atendimento ambulatorial em relação ao estudo anteriormente realizado no CAISM? Dispositivos como a Lei Maria da Penha ajudaram, nos casos das vítimas de violência doméstica?
Um dos motivos, na minha opinião, foi a orientação em relação ao encaminhamento. A população e os profissionais de saúde estão melhor orientados sobre como proceder numa situação como essa. Em geral, as nossas pacientes não acionam a Lei Maria da Penha porque quando vão fazer a ocorrência policial estão muito mais preocupadas com a violência sexual, por ter sido violentada como mulher. Isso não é algo que tem sido cuidado dessa forma no momento da ocorrência.
Também não vi as mulheres que sofreram outras violência físicas associadas à violência sexual se sentirem tranquilas em procurar esse respaldo. Essas mulheres têm muito medo de revitimização. Algumas delas foram roubadas e violentadas, outras tiveram seus domicílios invadidos. E a possibilidade delas serem identificadas e buscadas novamente faz com que elas tenham muito medo. Algumas delas inclusive, depois da informação de que existe a prisão do agressor ficam mais tranquilas.
Outro elemento que temos na literatura é que as mulheres são muitos descrentes de que a lei funcione. Não em relação à Lei Maria da Penha especificamente, mas à legislação em geral e à rede legal. Porque hoje você não consegue prender alguém por estupro se não tiver um flagrante ou comprovação de DNA.

Por último, que estratégias a senhora apontaria como importantes para contribuir com o aumento da adesão das vítimas ao atendimento ambulatorial?
O primeiro ponto é melhorar cada vez mais o atendimento a essas mulheres no primeiro contato. Se eu for respeitosamente recebida no serviço de saúde ou no serviço legal, vou ficar mais tranquila em retornar ali, me sentirei menos exposta e efetivamente cuidada. Serviços capacitados para atender essas mulheres como preconizado é essencial.

E o que a senhora pensa da recente lei que padroniza o atendimento a essas vítimas no SUS?
A lei é muito positiva, mas existe um intervalo entre ela e a efetiva capacitação. É difícil sensibilizar uma equipe de saúde para atender uma situação que é tabu. As pessoas estão pouco resolvidas internamente para lidar com a violência. E a violência sexual é muito tangível, muito próxima de todo mundo, todas estamos igualmente expostas a esse risco. Então, quando alguém que você cuida se aproxima muito de você, se você não tiver essas questões muito bem cuidadas isso é muito fragilizante.
Então, a gente precisa tirar os mitos sobre violência sexual desses grupos de atendimento e dos espaços de busca de ajuda e atendimento, para que essas mulheres sejam efetivamente acolhidas e cuidadas.
Outra coisa é não ser só os centros de referência que fazem esse atendimento facilita o acesso. Hoje em dia as mulheres que moram em Sumaré, Hortolândia, Montemor têm que ir até a Unicamp. E quantos ônibus elas têm que pegar? Quanto do seu dia gastam com isso? No caso da mulher que trabalha, como justificar a ausência a cada tantos dias? Para quem tem criança, tem que levar junto.

*Nota do blog do SOS Ação Mulher e Família.

Nenhum comentário:

Postar um comentário