A criação de núcleos especializados em violência doméstica e familiar contra a mulher no Brasil é fundamental para que o MP possa atuar na efetivação da Lei Maria da Penha – seja na responsabilização de agressores, seja na garantia dos direitos das mulheres em situação de violência.
Entre as diversas atribuições designadas pela Lei Maria da Penha ao Ministério Público para o enfrentamento da violência contra as mulheres, à instituição foi dada a tarefa de defesa dos “interesses e direitos transindividuais” (artigo 37 do capítulo VII da Lei nº 11.340/2006). Em outras palavras, cabe ao MP cobrar de outras instituições da Rede de Atendimento à Mulher e de si mesmo ações que garantam o acesso a direitos ao conjunto das mulheres brasileiras.
A Lei dispõe também sobre a necessidade de serem criados Núcleos de Gênero nos Ministérios Públicos, além das Promotorias Especializadas. Mais do que o atendimento a um dispositivo legal, as experiências dos núcleos estruturados em Estados como Bahia, Pernambuco e Piauí e no Distrito Federal mostram que o órgão tem papel estratégico e essencial para que as Promotorias Especializadas façam a necessária articulação e integração com outros serviços do Estado e com as políticas públicas locais. E fomenta também a constituição de equipes multidisciplinares – incluindo a participação de assistentes sociais e psicólogos – sensibilizadas à necessidade de promover a igualdade de gênero.
Atribuições de Promotorias e Núcleos
Segundo os dados da rede disponibilizados pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR), atualmente há no País 53 órgãos do Ministério Público voltados à efetivação da Lei Maria da Penha, somando-se as Promotorias Especializadas e Núcleos de Gênero. Ainda de acordo com a SPM-PR, à Promotoria Especializada caberia, principalmente, mover ação penal, solicitar que a Polícia Civil inicie ou dê prosseguimento às investigações, requerer do juiz a concessão de medidas protetivas de urgência, quando necessárias, e atuar junto às Varas e Juizados Especializados.
Já os núcleos constituiriam um espaço focado na garantia dos direitos humanos das mulheres de forma mais ampla. Podem realizar a fiscalização da aplicação das leis pelos estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher e adotar as medidas administrativas ou judiciais cabíveis, quando constatadas irregularidades ou se necessário para garantir direitos.
É o caso da Bahia, onde Grupo de Atuação Especial em Defesa da Mulher (Gedem) do MP conta com uma equipe de 12 pessoas, que trabalham no monitoramento das políticas, participa de todas as Câmaras Técnicas e integra a Rede de Atenção na região metropolitana de Salvador. Também cria projetos, buscando atuar diretamente para reduzir obstáculos entre as mulheres e seus direitos.
“A atuação dos promotores da área criminal está voltada para fazer com que a investigação seja rápida, que o processo tenha curso e para garantir as medidas protetivas – e o Gedem dá suporte a eles”, define a promotora Márcia Teixeira, coordenadora do Grupo e também presidente da Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Copevid), criada pelo Grupo Nacional de Direitos Humanos (GNDH), do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais (CNPG).
Na prática, porém, na maior parte das vezes as duas funções se misturam. É o caso, por exemplo, do Núcleo de Apoio à Mulher (NAM) do MP de Pernambuco, em que o promotor de Justiça João Maria Rodrigues Filho é coordenador do Núcleo e atua também nas ações criminais. “Foi notada a necessidade de o MP não só oferecer as ações penais, mas também trabalhar interna e externamente para divulgar a Lei Maria da Penha, e também fazer pesquisas sobre sua implementação, até para poder cobrar dos serviços públicos as carências constatadas”, relata.
Criado em 2010, entre as atribuições do NAM estão a formulação e implementação de políticas públicas e medidas de conscientização sobre o problema, além da articulação junto à rede de enfrentamento à violência. Atualmente, por exemplo, o Núcleo prepara um questionário para ser aplicado nas Varas Especializadas, buscando identificar gargalos e pensar formas de conquistar ganhos em celeridade e qualidade na prestação jurisdicional.
“Soubemos recentemente, por exemplo, que uma mulher com processo foi assassinada antes de ter a medida protetiva deferida, sendo que já tinha o pedido há seis meses. Estamos detectando um esgotamento do Sistema de Justiça – as Delegacias da Mulher estão abarrotadas de inquéritos e as sete Varas Especializadas também. Então, com a pesquisa, queremos detectar e buscar soluções para esses gargalos, para barrar o crescimento dos assassinatos na região”, cita.
Educação em direitos
No Piauí, os dois promotores do Núcleo de Promotorias de Justiça de Defesa da Mulher Vítima de Violência Doméstica e Familiar (Nupevid) também somam as atribuições e respondem pelas duas Promotorias Especializadas de Teresina. “Em razão da dinâmica da violência de gênero, não podemos nos restringir à denúncia, temos que dar assistência à mulher em situação de violência, tanto do ponto de vista jurídico quanto do psicológico e social”, aponta o coordenador do Núcleo, o promotor Francisco de Jesus.
O foco do Nupevid é trabalhar o aspecto preventivo da Lei Maria da Penha por meio da educação. O Núcleo tem atuado, por exemplo, na divulgação da Lei em escolas e também, com o ‘Projeto Laboratório Maria da Penha’, em universidades. A proposta do projeto, executado em parceria com a Coordenadoria Municipal de Políticas Públicas para Mulheres de Teresina, é formar multiplicadores do conhecimento sobre a Lei e sobre o problema da violência de gênero nas instituições de ensino superior com cursos de Psicologia, Serviço Social e Direito.
Francisco de Jesus e a promotora Maria do Amparo Sousa se revezam entre as atividades do Núcleo e a prestação jurisdicional, contando ainda com o apoio de um psicólogo e um assistente social na equipe. Apesar da dupla atribuição, para o promotor o Estado ganhou muito em termos de enfrentamento à violência com a criação do Núcleo. “Com esse articulador de políticas públicas, conseguimos combater o ciclo de violência não só com medidas jurídicas, mas com diversas parcerias, como as que temos com as faculdades, a Coordenadoria da Mulher, a mídia local, a Defensoria e muitas outras”, destaca.
Ganhos com a especialização
Para o promotor de Justiça Thiago Pierobom, coordenador do Núcleo de Gênero Pró-Mulher do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), a criação tanto dos núcleos como das promotorias no MP representam “um ganho qualitativo enorme, pois o promotor tem que se sensibilizar para esta temática”, avalia.
O Núcleo do DF foi criado antes mesmo da Lei Maria da Penha. “Desde 2000 começamos a ter os primeiros seminários e encontros para discutir a experiência de gênero. Nesse processo, em 2005 criou-se o núcleo para articular as políticas institucionais do MP no âmbito da violência de gênero. Com a Lei Maria da Penha, começaram a ser criadas as promotorias e hoje temos 38 Promotorias Especializadas no DF”, explica.
No Distrito Federal, porém, o Núcleo de Gênero não atua nos processos criminais. “Somos um centro de apoio operacional, articulamos políticas para um adequado enfrentamento à violência doméstica contra as mulheres e atuamos como uma espécie de promotoria extrajudicial, fiscalizando se há discriminação de gênero prejudicando um conjunto de mulheres de alguma forma. Nessa linha, temos experiências de ações civis públicas, mas não atuamos nos processos criminais em si, que estão com as Promotorias Especializadas”, detalha.
Para ele, a separação das atribuições pode representar um ganho em qualidade, ante a complexidade da tarefa a ser executada. “Uma promotoria de violência doméstica tem uma carga extremamente elevada de trabalho. Então, quando se especializa a dedicação à articulação, que exige um desdobramento grande também, há um bom ganho qualitativo. A instituição passa a contar com uma pessoa cuja atribuição é ter um olhar transversal”, avalia.
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