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Não é todo dia que chega ao Brasil um filme da Venezuela. Menos ainda um filme extraordinário como Pelo malo, premiado numa porção de festivais mundo afora, muito bem recebido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo do ano passado, e que entra em cartaz nos próximos dias.
Não é todo dia que chega ao Brasil um filme da Venezuela. Menos ainda um filme extraordinário como Pelo malo, premiado numa porção de festivais mundo afora, muito bem recebido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo do ano passado, e que entra em cartaz nos próximos dias.
Tudo gira em torno de um impasse aparentemente banal: contra a vontade da mãe, um menino de 9 anos, mulato, quer alisar o cabelo para parecer um cantor popular. A faísca produzida por esse atrito doméstico basta para a diretora e roteirista Mariana Rondón iluminar toda uma sociedade, uma época, um país.
Além de querer alisar seu “cabelo ruim”, o pequeno Junior (Samuel Lange Zambrano) gosta de cantar e dançar. Sua mãe (Samantha Castillo), jovem viúva que tenta recuperar o emprego de vigilante particular, vê em tudo indícios de que o filho é – ou está prestes a virar – um maricón. Entre as atitudes que ela toma na esperança de “torná-lo um macho” está a de fazer sexo com o amante diante dos olhos do menino.
O prodígio mais notável do filme é manter em seu centro a tensão da troca de olhares – perplexos, hostis – entre mãe e filho, ao mesmo tempo em que expõe um amplo e vívido painel histórico, social e cultural. Fundo e figura recebem a mesma atenção da câmera, sem que um desfoque ou obscureça o outro.
Caracas é aqui
A Caracas que pulsa na tela, com seu trânsito caótico, seus ônibus lotados, seus ambulantes, suas paredes descascadas e pichadas, seu lixo nas ruas, assemelha-se a qualquer metrópole brasileira. Aqui e ali, entretanto, sobretudo nas breves inserções de programas de TV e rádio, aparecem sinais inequívocos de tempo e lugar: o messianismo popular em torno de Hugo Chávez (então agonizante), a obsessão venezuelana com os concursos de miss.
Parece que Pelo malo foi acusado em seu país de ser “antichavista”, o que mostra que a estupidez não tem fronteiras. O alcance de sua crítica vai muito além de um governo e um regime específicos, atingindo uma configuração histórico-cultural comum a todo o continente, com seus preconceitos, estereótipos e hierarquias de gênero, etnia e classe social.
Miss ou soldado
Uma das passagens mais eloquentes, nesse sentido, é aquela em que Junior vai com uma amiguinha (Maria Emilia Sulbarán) ao fotógrafo para fazerem a 3×4 da carteirinha de escola. O fotógrafo diz que, por uns bolívares a mais, ela pode ser fotografada com uma coroa de miss e ele com uma boina do exército. Não há outras opções.
Assim como equilibra sutileza e contundência na exposição de seus temas, a diretora consegue a proeza de não deixar que a gravidade do drama sufoque a leveza e o humor com que a narrativa é conduzida. A imaginação confusa e o espírito lúdico de Junior – em especial suas tentativas desastradas de alisar o indomável pelo malo – produzem momentos cômicos memoráveis, assim como suas conversas disparatadas com a amiguinha.
Numa cena marcante, as duas crianças estão no corredor externo de seu prédio e se divertem observando os moradores do edifício em frente, um daqueles monstruosos pardieiros com centenas de pequenos apartamentos. Ali eles veem, e vemos junto com eles, que entre as misses e os soldados, há uma gama vertiginosamente variada de existências humanas. O clima ao mesmo tempo triste e divertido dessa cena, espécie de versão terceiro-mundista de Janela indiscreta, impregna todo o belo filme de Mariana Rondón.
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