Após conversarem em um grupo fechado no Facebook, os pais decidiram sair do armário digital e levar a discussão a público
Fran* tem oito anos e sempre gostou de bonecas. Sua mãe conta que, aos dois anos, ela era fascinada pelo mundo mágico das princesas e, aos três anos, quando teve que escolher um esporte na escola, pediu para ser matriculada nas aulas de balé. Um pouco mais grandinha, aos quatro, não duvidou em se vestir de princesa quando a professora disse que comemorariam o carnaval na escola, apesar das advertências da mãe.
Saida Garcia no quarto dos dois filhos: a parte roxa foi decorada para Fran e a verde, para o filho mais velho
Rafael Duque/Opera Mundi
Assim como Fran, Ariel*, de 10 anos, sempre teve muito claro desde pequena que saias eram sua preferência. Com dois anos, não se cansava de assistir aos filmes da Barbie que passavam na televisão e, aos três, tentava imitar os trejeitos femininos das mães das amiguinhas do colégio. Era fascinada por todo tipo de bijuteria. Colares e pulseiras representavam uma atração maior que qualquer outro brinquedo, o que, na época, gerava uma certa preocupação para os pais.
Entretanto, a vida relativamente comum de Fran e Ariel não é assim tão fácil como possa parecer. O nome de batismo de Fran é Carlos* e de Ariel, José*. As duas crianças trazem em seus corpos e em suas certidões de nascimento que nasceram com o sexo masculino, apesar de se sentirem meninas. Justamente para que a vida delas e de outras crianças possa ser comum, um grupo de pais e familiares de menores transexuais criou a associação Chrysallis, para “conseguir que os nossos filhos tenham os mesmos direitos que qualquer outra criança já tem”, explica Violeta Herrero, mãe de Ariel.
A associação é relativamente nova, foi oficialmente criada em julho de 2013, mas os pais que a fundaram já se conhecem há muito mais tempo. “Em princípio criamos um grupo no Facebook – secreto. Era lá onde desabafávamos. Mas não era só para isso. Compartilhávamos sentenças favoráveis às nossas causas – mudanças de nomes, direitos reconhecidos – para formar um arquivo de precedentes”, afirma Saida García, mãe de Fran.
Com o tempo, e o aumento do número de integrantes, os membros do grupo secreto resolveram sair do armário digital e levar a discussão a público. “A visibilidade serve para nos normalizar. A única maneira de considerarem nossos filhos normais é os tornando visíveis”, diz Violeta. “As pessoas acreditam que aparecem do nada, ou seja, os transexuais aparecem com 18 anos e pronto. Mas não é assim, vem desde pequeno”, conta mãe de Ariel, que revela ter entendido a realidade da filha após ver um caso em um programa de televisão.
Ajuda profissional
Saida exerce atualmente a função de presidente da associação na comunidade de Madri e conta que eles atuam fundamentalmente com os pais das crianças. “Para que o menor se desenvolva como tem que se desenvolver, as famílias precisam estar fortes e quem precisa ter as coisas bem claras são os pais. Então o que fazemos é escutar, acompanhar e indicar profissionais especializados”, sublinha.
Todas as famílias que participam da Chryssalis vão regularmente a consultas com psicólogos ou sexólogos que trabalham com o assunto. Especializada em diversidade sexual e de gênero, a psicóloga Ana Gomes explica que empiricamente a abordagem que dá maiores resultados positivos, com crianças e com adultos, é a terapia afirmativa.
“O principal objetivo [da terapia afirmativa] é assumir a identidade ou papel de gênero que apresenta a pessoa e desenvolver um enfrentamento eficaz para combater o estigma social”, esclarece a profissional.
A primeira experiência de Violeta e Ariel com psicólogos não foi das melhores. Ela conta que marcou uma consulta com uma profissional indicada pela previdência social, mas que não era especializada em diversidade sexual ou de gênero.
“Foi horrível. Ela me disse que menino tinha que brincar com coisa de menino e menina, com coisa de menina. Minha filha fez um desenho lindo de uma borboleta e ela riscou com uma caneta vermelha dizendo que não podia fazer assim”, lamenta a mãe.
Devido ao trauma da primeira consulta, ela pesquisou outras opções dentro da rede pública espanhola e descobriu que a comunidade de Madri mantém uma unidade de tratamento de transtornos de gênero. É nessa unidade, localizada no Hospital Ramón y Cajal, na capital da Espanha, que a maioria das famílias com crianças transexuais são acolhidas. Mas, apesar do serviço especializado, a legislação dentro da comunidade é um empecilho para o tratamento. Os médicos e psicólogos ali não podem tratar pessoas com menos de 18 anos, por isso, todas as consultas são realizadas com os pais das crianças.
“Depois de começar a terapia nesse centro, nos recomendaram que começássemos com a mudança no colégio. Nessa época, quando perguntavam o nome da minha filha, ela dizia que não sabia. Então decidimos mudar o nome. Primeiro mudamos para Leila, depois para Flora, porque eram nomes de fadas. Mas logo escolhemos Ariel porque era um nome unissex e fomos ao colégio para informar sobre a mudança, falamos com professores e com as mães”, relata Violeta. Na Espanha, os menores de idade não podem ter nomes que não correspondam ao seu gênero, por isso Violeta e Saida escolheram nomes que podem ser utilizados para os dois sexos.
Mudanças no colégio
Além de mudar o nome e a vestimenta das crianças, os pais da associação enviam uma petição ao colégio para que tratem seus filhos pelo nome que escolheram e que utilizem sua nova opção de gênero quando se dirijam a eles. “Criamos uma série de protocolos e de escritos. Temos um guia de pais que também enviamos aos colégios, uma petição formal e tal, para que tudo seja cumprido”, explica Saida.
As duas mães afirmam que não encontraram grandes resistências por parte dos colégios ou dos pais de outros alunos, apesar de perceberem uma ou outra reação contrária à mudança. A situação é parecida em outras partes do país, onde os pais conseguiram garantir que seus filhos sejam chamados pelo nome que optaram e que possam entrar nos banheiros correspondentes à sua nova escolha de gênero. Apenas um colégio religioso em Málaga ainda resiste à mudança e o caso será resolvido por via judicial.
Futuro
Tanto Saida como Violeta ainda pensam nos próximos passos que tomaram em relação às suas filhas. Ambas pensam em administrar bloqueadores hormonais para que os efeitos do desenvolvimento dos corpos das crianças não cause um impacto psicológico.
“Eu só quero que ela tenha tempo para pensar no que quer fazer da vida. Os bloqueadores já são administrados em outras comunidades autônomas e espero que ela possa ter acesso também. Se no futuro ela quiser fazer uma cirurgia, tomar hormônios cruzados ou simplesmente seguir como é, será uma decisão sua. Eu só quero que ela seja feliz sendo ela mesma”, conclui Saida.
* Nome fictício
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