Resumo
Este artigo representa uma revisão crítica sobre intervenções com homens autores de violência (HAV) doméstica e familiar contra a mulher, tendo como base a revisão de literatura nacional e estrangeira sobre o tema. Somado a esta revisão, o artigo traz resultados de um estudo de caso com abordagem qualitativa sobre um programa governamental de prevenção e atenção à violência doméstica e familiar do Sul do Brasil. Além do trabalho desenvolvido com mulheres em situação de violência, esse programa passou a atuar, em 2004, com HAV, atividade pioneira nesse estado e, à época, uma das poucas realizadas no Brasil por uma organização governamental.
Os resultados obtidos a partir deste estudo mostraram que, apesar de os serviços de atendimento a HAV representarem um desafio adicional para o complexo campo de ação voltado à prevenção, atenção e enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, eles podem, ao mesmo tempo, constituir novas possibilidades para esse campo, à medida que, aliados às ações já dirigidas às mulheres, podem contribuir para diminuir essa violência e promover a equidade de gênero.
Palavras-chave: homens; masculinidades; violência contra a mulher.
Daniel Costa Lima - Mestre. Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: costalima77@gmail.
Fátima Büchele - Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, Departamento de Saúde Pública da UFSC. Email: buchele@mbox1.ufsc.br
Originalmente publicado em: Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 21 [ 2 ]: 721-743, 2011
Introdução
As diversas formas de violência representam um grande e crescente problema de saúde pública ao redor do mundo e demandam a formulação de políticas públicas específicas e a criação de serviços voltados a sua prevenção e atenção (HEISE, 2002; MINAYO, 2005).
Ao trabalhar com o tema da violência, adotamos a compreensão de que suas representações devem ser encaradas como fenômenos biopsicossociais complexos que se apresentam de maneira distinta de acordo com o momento histórico (MINAYO, 2005). Com esse olhar, o presente artigo aborda a violência doméstica e familiar contra a mulher, tendo como foco as intervenções desenvolvidas junto aos homens autores dessa violência.
De acordo com a Convenção de Belém do Pará (1994), não há fronteiras intransponíveis à violência contra a mulher, estando todas, independentemente de raça, etnia, nível socioeconômico e idade, expostas à mesma (OEA, 1994).
Estudos e pesquisas nacionais e internacionais realizados sobre o tema comprovam sua alta prevalência e relevância para a saúde pública e que o mesmo representa uma violação dos direitos humanos e um obstáculo para a conquista da igualdade de gênero (HEISE; GARCIA-MORENO , 2002; HEISE et al., 1994; ONU, 2006).
Cabe neste ponto ressaltar que, se hoje órgãos internacionais e governos da maioria dos países reconhecem a importância desse fenômeno, isto se deve em grande parte ao trabalho realizado desde a década de 1970 por diversos grupos, sendo os movimentos de mulheres e movimentos feministas seus principais articuladores.
Nas últimas quatro décadas, diversas nomenclaturas foram utilizadas para demarcar essa violência – violência contra a mulher; doméstica e familiar; de gênero; conjugal etc. No presente artigo, adotamos o conceito de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher tendo em vista a importância da Lei n. 11.340 – Lei Maria da Penha – para o cenário de debates e ações sobre o tema no Brasil. Promulgada no dia 7 de agosto de 2006, esta Lei criou mecanismos para coibir esta forma de violência e dispôs, dentre outras coisas, sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e sobre medidas de assistência e proteção às mulheres afetadas por esta violência, compreendida na Lei como:
Art. 5º… qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. I – No âmbito da unidade doméstica, compreendida como espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vinculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II – no âmbito 723 da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação (BRASIL, 2006, p. 1).
Como afirma Blanch (2001, p. 7), essa violência ocorre em “um contexto de relações de poder, em uma determinada ordem social e cultural, sustentada por uma ideologia (pseudo-legitimadora dessa ação)”. Diante disso, acreditamos que, apesar de essa violência geralmente acontecer no ambiente doméstico, sua compreensão não pode ser restrita a esse espaço físico, nem àqueles que compõem a instituição familiar.
Muitos países têm respondido à complexa demanda por recursos legais, médicos e sociais para atender às mulheres em situação de violência doméstica e familiar (o que não garante a eficácia ou efetiva implementação dos mesmos); contudo, como referido por Rothman et al. (2003), o mesmo não pode ser dito sobre as intervenções com os homens autores de violência (doravante referidos como HAV). Dentre os argumentos favoráveis a essa modalidade de intervenção, um dos mais empregados pode ser identificado nos seguintes questionamentos elaborados por Ramos (2006, p. 9): Como compreender a violência de gênero se não investigando também os homens, suas histórias de reconstrução de gênero, suas experiências e narrativas? Como intervir nesse tema, além do indispensável trabalho com as vítimas, se não atuando também com os que geralmente a perpetram?
Na segunda metade da década de 1990, algumas organizações nãogovernamentais brasileiras, como o Instituto Papai, o Instituto Promundo e a ECOS : Comunicação em Sexualidade, passaram a fazer perguntas semelhantes relacionadas a gravidez e paternidade na adolescência, à prevenção de DST /Aids e posteriormente, também à questão das violências. Atuando principalmente com a população jovem e adolescente a partir de uma abordagem de gênero e masculinidades, essas ONGs começaram a desenvolver estudos, intervenções sociais e mobilizações políticas, tendo um olhar especial para o público masculino. Tiveram assim, juntamente aos movimentos feministas, papel relevante para descortinar a importância de ações em saúde voltadas à população jovem e masculina, tendo em vista o bem-estar de homens, mulheres e crianças e a conquista da equidade de gênero.
Entretanto, até pouco tempo, tal reconhecimento não havia sido conquistado no Brasil para o debate e o desenvolvimento de serviços voltados aos HAVs. O grande responsável pela modificação desse cenário foi a promulgação da Lei Maria da Penha, em 2006 e, em especial, os seus Artigos 35 e 45, que apontam a possibilidade de criação de “centros de educação e reabilitação para os autores de violência” e a participação dos agressores” em programas de “recuperação e reeducação” (BRASIL, 2006). Assim, este artigo apresenta resultados de uma revisão crítica sobre intervenções com homens autores de violência doméstica e familiar contra a mulher, tendo como base a revisão de literatura nacional e estrangeira sobre o tema e resultados de um estudo de caso com abordagem qualitativa sobre um programa governamental de prevenção e atenção à violência doméstica e familiar do sul do Brasil.
A seguir, traçamos um panorama sobre serviços de atendimento a HAV, discorrendo brevemente sobre a trajetória desses e expondo algumas críticas e obstáculos que têm sido apontadas pela literatura. Em seguida, compartilhamos algumas considerações a respeito da inserção dos homens nas políticas públicas brasileiras sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher. Por fim, apresentamos um olhar aprofundado sobre o programa governamental acima mencionado e elaboramos algumas considerações finais sobre o tema.
Acesse na íntegra em pdf (825 KB): Revisão crítica sobre o atendimento a homens autores de violência doméstica e familiar contra as mulheres, por Daniel Costa Lima e Fátima Büchele (2011)
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