Quando o Ministério da Justiça abre consulta pública — prorrogada até 4 de dezembro — para que a sociedade brasileira se manifeste, com sugestões, sobre uma nova lei de adoção, diante de projeto de lei a ser encaminhado ao Congresso, resulta certo e inequívoco que estamos todos à procura de uma lei melhor para salvar as crianças do país desprovidas de proteção integral e pressupostas sobreviventes de um trágico destino. Perto de 50 mil delas estão acolhidas em abrigos.
Certo, antes de mais nada, que a adoção é um instituto jurídico humanitário, destinado ao melhor interesse da criança, cuide-se entender por definitivo que, em razão de sua natureza jurídica, não deve ser ela pautada em modelos fechados.
Mais ainda: não pode ser submissa a adoção, restritivamente, ao comando de listas. Aliás, a autoridade de listas deve ceder, diante de circunstâncias relevantes, a esse superior interesse (ECA, artigo 6º).
De efeito, “a observância do cadastro de adotantes, vale dizer, a preferência das pessoas cronologicamente cadastradas para adotar determinada criança não é absoluta. Excepciona-se tal regramento, em observância ao princípio do melhor interesse do menor, basilar e norteador de todo o sistema protecionista do menor, na hipótese de existir vínculo afetivo entre a criança e o pretendente à adoção, ainda que este não se encontre sequer cadastrado no referido registro” (STJ – 3ª Turma, REsp. 1.172.067, rel. min. Massami Uyeda, julgado em 18/3/2010).
Lado outro, tem sido bastante discutido, acerca da gestação burocrática do filho adotivo, quando a criança para ser adotada há de tornar-se, antes, necessariamente uma criança institucionalizada, ao extremo contraditório (e perverso) da ocorrência da perda de muitas chances de vir ser adotada.
No ponto, Maria Berenice Dias, em sua recente obra Filhos do Afeto –Questões Jurídicas (Editora Revista dos Tribunais, 2016), assinala que a busca da adoção é feita de maneira extremamente restritiva, não se permite a busca ativa dos pais para as crianças disponíveis à adoção (candidatos são proibidos de visitar as instituições de acolhimento e perdem a chance de conhecer as crianças), quando, a par de tudo isso, o pedido de adoção consentida tem sua previsão expressa no artigo 166 do Estatuto da Criança e do Adolescente, onde nem sequer é necessária a prévia inscrição no cadastro de adotantes (p. 130). A sua obra traz uma notável contribuição para a urgente revisão da lei.
Efetivamente, inúmeros eventos concorrem para a adoção demorar mais que o tempo de uma gestação humana, ou mais que o dobro desse tempo gestacional, precisamente quando a lei impõe, em primeiro, as medidas de recuperação da família biológica, sem período preordenado. O tema da demora das adoções tem sido objeto de estudos, um dos mais interessantes deles pela psicóloga Lídia Weber (UFPR).
Na medida em que a lei (ECA) determina que toda criança (ou adolescente) tem o direito de ser criada e educada no seio da sua família natural e excepcionalmente em família substituta (artigo 19), a prioridade implica que os filhos devam ser reinseridos na família biológica (artigo 88, VI), para além de pais e avós.
Assim, dois fenômenos se entrelaçam, com consequências expressivas:
a) a busca de efetivar a recuperação familiar demora na análise das possibilidades máximas junto a um elenco maior dos familiares ou fracassa nesse desiderato, e o abrigamento da criança se prolonga, postergando o cabimento da adoção possível;
b) lado outro, o procedimento de destituição do poder familiar não logra o tempo adequado de desfecho meritório para “startar” a adoção. É o que se pode denominar de situação de adoção protraída.
Esse é o prefácio da demora, exigindo-se mecanismos mais eficientes para objetivar uma definição imediata, seja a da reinserção familiar ou a da colocação da criança ou do adolescente ao instituto de adoção.
A propósito, a Lei 12.010, de 3/8/2009, ao buscar maior efetividade da tutela do melhor interesse da criança, trabalhou em dois níveis contrapostos: a) o da recuperação familiar, ampliando o próprio espaço familiar; e b) o da colocação da criança em disponibilidade à adoção. No segundo, prevê prazo máximo para a destituição do poder familiar, o de 120 dias (artigo 163, ECA). Aliás, a destituição (extinção) do poder familiar (artigo 1.635, V, Código Civil) não recebeu tratamento processual específico no novo Código de Processo Civil. Como procedimento multidisciplinar, mereceria regramento especial, com subprazos definidos aos estudos biopsicossociais, sob a ótica do artigo 1.638 do Código Civil.
Pois bem. Extrai-se do site do Ministério da Justiça o seguinte cenário:
“Segundo dados do Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas (CNCA) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), há mais de 46 mil crianças e adolescentes atualmente no Brasil em acolhimento. Desse número, de acordo com o Cadastro Nacional de Adoção (CNA), apenas cerca de 7 mil estão aptas para adoção. Em contrapartida, o mesmo cadastro mostra que há mais de 37 mil pessoas interessadas em adotar”.
Segue-se iniludível reconhecer então: “Esse descompasso demonstra que há no país uma diferença nos perfis de pretendentes e crianças e adolescentes cadastrados, além de dificuldades no processamento dos pedidos de adoção, havendo a necessidade de revisão na legislação vigente”.
Então, em tempos de consulta, retenha-se, de logo, reconhecer que o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao preconizar a doutrina da proteção integral (artigo 1º da Lei 8.069/1990), torna imperativa a observância do melhor interesse da criança. No caso, a adoção como instituto humanitário haverá de ser nada ortodoxa, nada clássica, nada burocratizante. Muito ao revés, sob o primado do artigo matriz do ECA, ser implementada por detido exame de cada caso, a cada criança que deva ser tutelada integralmente, sem as amarras de visões tecnocratas.
Aqui se cuida avocar o julgado paradigma antes referido, onde a relatividade do cadastro é admitida diante do princípio da prevalência do interesse do menor. No mesmo sentido: STJ – 3ª Turma, REsp 1.347.228-SC, rel. min. Sidnei Benetti, j. em 6/11/2012.
Realmente. Verificam-se novas espécies de adoção, atípicas, porém inevitáveis, cada uma delas situando a realidade fenomênica da vida que convoca o Direito a visualizá-las em seus aspectos mais densos de concretude. Vejamos:
a) uma, induvidosamente, é a “adoção avoenga”. Na atualidade, onde as avós estão gerando os filhos de suas filhas estéreis, e muitas outras assumem os netos sob a égide de uma filiação socioafetiva, informal por natureza, à falta da presença materna, caso é de indagar possível ou não a adoção avoenga, ou seja, a adoção dos netos. Por certo, essa adoção seria figura subsidiária da aplicação do princípio da permanência da criança em sua família de origem e tal tem sido clamado, diante da circunstância das chamadas “mães do crak”, as mães que perdem, por destino e desatino, os filhos, substituindo-os pela dependência química e de efeito, tornando as avós as verdadeiras mães socioafetivas daqueles filhos.
Embora estranhável, do ponto de vista sucessório, onde as figuras de avó e de “genitora” se confundem, na espécie, tenha-se presente a filiação socioafetiva consagrada, em caso que tais, em conjunto com a filiação biológica, anotando-se, a tanto, que o Pleno do Supremo Tribunal Federal fixou (22/9/2016) a tese de repercussão geral, admitida no Recurso Extraordinário 898.060-SC, qual seja a de que “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos”.
b) nessa mesma linha, cogite-se, da possibilidade de “adoção de família”. Recentemente, em Pernambuco, na Grande Recife, criança de 11 anos, vítima de estupro pelo padrasto, veio dar à luz a sua filha, estando ambas em abrigo enquanto não dirimida a questão referente à perda do poder familiar dos seus pais. Na hipótese positiva de extinção, destituídos os pais, estarão disponíveis à adoção a mãe-adolescente e sua filha recém-nascida, acertado que 1) a primeira, sem possuir capacidade civil, não dispõe de poder familiar sobre esta, e 2) eventuais interessados à adoção não poderão recepcioná-las, em conjunto, como filhas adotivas, uma vez que por ficção legal tornar-se-iam irmãs. Em outra vertente, adoções isoladas estariam a romper laços familiares que não devem ser desfeitos, máxime que a criança tornada mãe não poderá ser penalizada com a separação da filha. Em situação da espécie, a adoção da primeira implicará, por corolário lógico, e em simultâneo, a guarda avoenga (ou “adoção avoenga”) pelos pais adotantes da filha de sua filha adotada.
Mas não é só. A regulamentação adotante não é exauriente para os fatos da vida que ensaiam preferências pessoais dos pais substitutos. A todo rigor, existem crianças que perdem o destino da adoção, porque à margem do perfil compatível de interesse. Pior, assumem as síndromes de abrigamento prolongado, incompatibilizadas ao surgimento de um abrigo verdadeiramente diferenciado, aquele lar substituto. Inadaptadas, rejeitam os períodos de convivência e, por perversão de destino, retornam ao abrigo de origem. Bem por isso impõem-se tratamentos diferenciados para situações diferentes, com as adoções de tipo.
Esse é um capitulo novo que deve ser encarado sem os dogmas de roupagens prontas da lei ou de normativos administrativos. Crianças e adolescentes em situações de maior vulnerabilidade, que fogem ao catálogo de perfil dos adotantes, por situações mais diversas (questões de saúde, dados físicos, grupos de irmãos etc.), não devem ser condenadas a um abrigamento indefinido, pouco funcionalizando a sua inclusão em cadastros, com rígidos procedimentos.
Nesse cenário, despontam, para efeito de uma melhor regulação da lei de adoção, as adoções de tipo:
a) a adoção intuitu personae, a reclamar regulamentação própria, como instrumento de eficiência para adoções mais rápidas, em compreensão do artigo 166 do ECA;
b) a “adoção solidária”, na qual a adoção de irmãos seja por famílias que se comprometam com a permanência dos vínculos fraternos entre eles;
c) a “adoção especial” (Lei 12.955, de 5/2/2014), quando o adotando for criança ou adolescente com deficiência ou com doença crônica, estabelecida a prioridade de tramitação a tais processos de adoção (parágrafo 9º, ao artigo 47 do Estatuto da Criança e do Adolescente);
d) a “adoção multiparental”, quando os vínculos biológicos perduram, a despeito de uma ruptura instante de qualquer vínculo com os pais e os parentes consanguíneos (artigo 1.626, 2ª parte, CC).
É certo que o instituto da adoção que atribuiu a situação de filho ao adotado (artigo 1.626, CC), constituindo um vínculo parental civil, na forma do que dispõe o artigo 1.593 do Código Civil, por se tratar de parentalidade decorrente de outra origem que não a natural resultante da consanguinidade, impõe a ruptura do vínculo anterior. Mais precisamente, vínculos anteriores são desfeitos, por força da lei, rompendo as relações da parentalidade natural, vindo estas ser substituídas pelas do afeto, afinal configuradas no novo vínculo oferecido pela adoção.
No caso, serão aqueles vínculos findos, quando preexistentes, na filiação biológica e registral. Diferentemente, aliás, dos casos de reprodução assistida heteróloga, quando nem sequer se faz estabelecido vínculo parental entre a criança concepta e o doador do material fecundante (artigo 1.597, V, CC).
E quando inexiste filiação registral, porquanto desconhecido o pai, por certo tempo, ou no ponto, desconhecendo o pai a existência do filho, a tanto por isso mesmo não expressando sua concordância com a adoção (artigo 1.621 e parágafo 1º, CC)?
Nessa hipótese, o vínculo biológico preexistente, sem dispor de registro, cede inexoravelmente frente à adoção, quando os fatos da vida aproximem o pai biológico do filho que veio, com sua insciência, ser adotado?
Hipótese tal reclama, às expressas, configurar-se como uma adoção multiparental, onde, diante das circunstancias dos fatos, a afetividade construída pela adoção poderá ser somada, ao depois, à afetividade resultante de iniludível vínculo biológico que se faça mais presente na convivência entre aquele pai biológico e o filho então inserido em família substitutiva (pela adoção).
Pela primeira vez no país uma decisão judicial admitiu acrescentar ao registro de nascimento de menor adotado o nome de seu genitor e de seus avós paternos, mantendo-se a paternidade adotiva e registral, com o acréscimo do patronímico do pai biológico. Tal decisão foi proferida pelo juiz de Direito Clicério Bezerra e Silva, da 1ª Vara de Família do Recife, em Ação de Investigação de Paternidade na qual a filha adotada, em expressão de sua identidade genética, com anuência expressa dos pais adotivos e do próprio investigado, requereu o reconhecimento do vínculo biológico para os fins de admissão da multiparentalidade existente, quando, predominantemente, as relações de afetividade reuniam todos (Processo 0034634-20.2013.8.17.0001).
A decisão judicial confortou-se, inegavelmente, em consolidar no plano jurídico a dupla paternidade fática, como admitiu o magistrado, quando incontroversos os fatos de a criança jamais ter rompido os laços de convivência com aquele que indicou depois ser seu pai, a tanto a reconhecendo como filha, em mesmo liame de afeto, para além de um mero vínculo biológico.
Adoções do tipo deverão ser bem elencadas na lei e urgenciadas sempre, consabido que o abrigamento institucional não servirá de formação adequada aos carentes de família.
A melhor proteção que pode ser outorgada a uma criança é tê-la sob o abrigo de uma família constituída. Logo, uma nova dinâmica da Lei de Adoção, contida no Estatuto da Criança e do Adolescente, como se pretende, servirá para resultados mais eficazes que prestigiem, afinal, com prioridade, o melhor interesse da criança.
Agora, criança e adoção pedem a urgência devida.
Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, mestre em Ciências Jurídicas e especialista em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa.
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