Um grito de denuncia contra a violência machista.
Passei os últimos dias ouvindo uma música e refletindo sobre o entorno dela, a música é “Camila, Camila”,lançada em 1985, da banda Nenhum de nós, composta por Thedy Corrêa. Uma das minhas conclusões foi que o discurso feminista de que os homens não podem ser aliados da luta pelos direitos das mulheres, lançando uma enorme polêmica se homens podem ou não ser chamado de pró-feminista, perde completamente o sentido quando encontramos homens sendo aliados da luta.
Esta música é uma denúncia a respeito da violência machista contra as mulheres e os compositores mostram – se sensíveis a toda situação, a voz de Thedy, possui uma dor sentida, revolta com a sensação de impotência. Quem ouve a música e já esteve ou está em situação semelhante sente se convidada a sair, ao cantar o refrão, Thedy chama Camila a despertar e a reagir.
Confuso? Um homem transmitir este tipo de sensação de força a uma mulher sendo ele parte do grupo de humanos que replica e dissemina atitudes machistas? Ele não sente na pele, não é o “lugar de fala” dele, mas ele consegue transmitir toda tragédia que é a violência que o machismo nos submete, como isso pode ser?
Resposta: Exercendo a empatia que sente pela mulher oprimida, sendo consciente do machismo, renegando e repudiando a violência contra a mulher.
Outras reflexões sobre a música, fortalece a idéia de que ela merece ser lembrada, numa época que nada era dito sobre violência física e sexual contra mulheres, “Camila Camila” vem à tona e emplaca como um HIT de sucesso, ficando em primeiro lugar nas paradas das rádios por vários meses. Quem era adolescente naquela época lembra-se, com certeza.
Em entrevista para MTV o vocalista da banda Nenhum de nós explicou a música. Após ler a explicação notei que passei grande parte da infância e adolescência cantando esta música sem entender sobre o que ela falava, a compreensão só chegou a mim a poucos anos, 3 anos talvez, por que após ser vitima de violência física e psicológica, ouvi-la começou fazer sentido.
É sobre uma adolescente de 17 anos que esta em um relacionamento abusivo e sofre violência emocional e física. Segundo o vocalista da banda, foi inspirada em fatos reais do ano de 1985, quando os rapazes da banda teriam tido contato com uma colega de escola que vivia um relacionamento com um namorado violento, eles questionavam – se por que ela se submetia aos maus tratos e tantas situações constrangedoras, e assim quiseram fazer esta canção para Camila e para as mulheres que sofriam violência.
Trecho da entrevista a MTV do vocalista Thedy:
“A música Camila, Camila veio de uma história real de uma menina que a gente conhecia na época (1985). Ela estava passando por uma situação de abuso e violência com o namorado. Acho importante num país como o Brasil fazer músicas desse tipo. Aqui é mais confortável fazer letras que estimulem o sexismo ou utilizem violência como ingrediente. Na real, acho que ninguém fala de abuso porque não vende. A questão está no que cada um acredita e quer.”
Na contramão de “Camila Camila” que era muito progressiva, músicas que exaltavam ou naturalizavam a violência contra mulher eram a temática mais presente, encontradas em todos os estilos, tais como:
1985 – Ultraje a Rigor. Música: “Ciúme” que fala de um homem tentando levar uma vida “moderninha”, de “não ser machista e não bancar o possessivo”, porém existe um fracasso na tentativa, ironizando a opressão contra a mulher e fazendo parecer que é “natural” do homem tratar as mulheres com machismo.
1986 – Camisa de Vênus. Música: “Silvia Piranha”, a música toda é uma degradação a mulher, mas uma parte dela diz “Todo homem que sabe o que quer, Pega o pau pra bater na mulher”.
1987 – Chitãozinho e Xororó, Fogão de Lenha , tem um refrão imperativo: “Pegue a viola/ e a sanfona que eu tocava/ Deixe um bule de café em cima do fogão/ Fogão de lenha, e uma rede na varanda/ Arrume tudo mãe querida, que seu filho vai voltar”. A música romantiza o papel da mãe/ mulher como cuidadora, uma empregada não remunerada que cumpre ordens do filho e isso a faz feliz.
1982- Roberto e Erasmo Carlos. “Mesmo Que Seja Eu”. A música diz “Você precisa é de um homem pra chamar de seu / Mesmo que esse homem seja eu…” A mulher é inferior, fraca, incompleta, ela precisa de um homem para sua vida ter sentido. Este tipo de romantização da inferioridade da mulher frente ao homem, é um dos motivos do por que as mulheres demoram tanto para sair de relação abusivas, elas acreditam que precisam de um homem para serem felizes e precisavam fazer de tudo para dar certo a relação, mesmo quando estão sendo destruídas pelo companheiro. “Mesmo que seja eu” a música diz. Mesmo que não seja como ela queria que fosse, ela tem que aceitar o que tiver.
Músicas como “Camila Camila” são muito importantes para a identificação do quadro de violência, para fomentar o debate sobe machismo. Na época do lançamento da musica, com o seu sucesso, a MTV fez uma pesquisa e somente esta canção abordava esta temática, talvez o ultimo defensor da mulher,contra a violência machista tenha sido Cartola, em 1950, com a música “Vou contar tintim por tintim. A música relata a mulher agredida que se revolta e procura justiça:
“Eu fui tão maltratada / Foi tanta pancada que ele me deu / Que estou toda doída / Estou toda ferida / Ninguém me socorreu / Ninguém lá em casa apareceu / Mas eu vou ao distrito / Está mais do que visto/ Isto não fica assim / Vou contar tintim por tintim / Tudo nele eu aturo / Menos tapas e murros / Isto não é para mim”.
Vamos á música?
“Camila, Camila”
Depois da última noite de festa
Chorando e esperando amanhecer, amanhecer
Nesta parte da música, pelas testemunhas oculares, Camila foi a uma festa onde foi maltratada publicamente pelo namorado, ela esperava, chorando, amanhecer para ir embora,
As coisas aconteciam com alguma explicação
Com alguma explicação
Todos os maltratos e violências são sempre por algum motivo. Normalmente a mulher se culpa, acreditando que fez algo para que o homem tenha se descontrolado e praticado os abusos. Eles mesmos apontam motivos em nossa postura para justiçarem se. Sempre há uma explicação, hoje em dia a mais comum é a de que eles estão passando por processos de depressão, algum transtorno psiquiátrico.
Depois da última noite de chuva
Chorando e esperando amanhecer, amanhecer
Outra noite e madrugada de violência, Camila passa a noite chorando e esperando. Neste trecho eu me vejo. Na ultima vez que meu ex-marido me tratou com violência, ele simplesmente trancou a casa toda e com as chaves em seu poder ele queria me obrigar a conversar com ele sobre nosso relacionamento, depois de eu ter dito a ele que queria o divórcio, eu estava exausta e ele mantinha as luzes acesas e me impedia dormir, sentado no meio da cama ele dizia que “eu teria de conversar com ele”, até que ele montou sobre mim e com minha mão ele desferiu vários golpes no seu rosto, meu pulso abriu com a força empregada… Ele só parou quando me ouviu chorar. Chorei a noite e madrugada toda, com medo dele, esperando amanhecer para pedir socorro.
Às vezes peço a ele que vá embora
Que vá embora
Nesta parte Camila esta desesperada, ela quer dar fim a esta situação, ela pede para ele ir embora, pois não suporta mais tanto sofrimento.
Camila
Camila, Camila
O Clamor pelo nome da Vitima, é como se quisessem chamá-la para fora do ciclo de violência. Uma forma de pedir a ela que liberte – se, que peça ajuda…
Eu que tenho medo até de suas mãos
Mas o ódio cega e você não percebe
Mas o ódio cega
E eu que tenho medo até do seu olhar
Mas o ódio cega e você não percebe
Mas o ódio cega
Camila tinha medo de quando ele a tocava tinha medo do seu olhar, ela sabia qualquer coisa que ela fizesse e desagradasse a ele, o ódio o cegaria de tal forma que não exitaria em agredi-la, ele movido por um ódio que o cega, nem percebe que esta destruindo a vida da mulher. Camila já entende que ele não ama, que o que ele sente é ódio e posse.
A lembrança do silêncio
Daquelas tardes, daquelas tardes
Camila se cala a respeito das agressões, ela não consegue pedir ajuda esta completamente fragilizada e enfraquecida… Um sofrimento calado, escondido e contido, muito comum em vitimas de violência.
Da vergonha do espelho
Naquelas marcas, naquelas marcas
Camila tentava esconder as marcas da violência em seu corpo, ela sofria já com danos emocionais e psicológicos que a impediam de olhar se no espelho.
Esta parte da música me traz a lembrança de mim, quando ele me agrediu, mordendo meu braço e deixando uma marca no antebraço que cobria o quase todo. Eu entrei no banheiro e passei base para tentar cobrir, não adiantava, não cobria, sentei na sala, de tão desequilibrada com a situação, me passou pela cabeça ir à cozinha, pegar uma faca e cortar a parte do braço com aquele hematoma. Eu entendo a Camila…
Havia algo de insano
Naqueles olhos, olhos insanos
Os olhos que passavam o dia
A me vigiar, a me vigiar
Os olhos dele que a vigiavam, fiscalizando a vida de Camila, olhos em que ela reconhecia uma insanidade, olhos que veriam motivo para agredi-la por qualquer motivo que fosse e os olhos que lhe impunham submissão.
É comum a vitima de violência confundir a misoginia e o machismo com insanidade, eu Tb acreditava que eram problemas psicológicos, ate que um dia um amigo meu me disse “Você acha que ele é louco? A loucura dele o faz bater em homens também?”
Camila
Camila, Camila
Camila
Camila, Camila
E eu que tinha apenas 17 anos
Baixava a minha cabeça pra tudo
Esta parte da música eu acredito que seja digna de uma nota de destaque. Camila era só uma adolescente, ela não teria nem experiência e nem vivência para identificar o que estava lhe acontecendo, os adolescentes lidam com seus dilemas com o que podem e não será com a mesma plenitude que um adulto, afinal de contas, desenvolver estratégias e soluções para sair de um problema quando se tem o cérebro completamente formado e quando ainda o tem em formação, é bem diferente. A música não fala, mas se o namorado de Camila fosse um homem mais velho, a facilidade em manipular a vitima seria muito maior.
Desta forma, Camila seguia submissa, baixava sua cabeça para tudo, sem condições de enfrentá-lo e denunciá-lo.
Era assim que as coisas aconteciam
Era assim que eu via tudo acontecer
E era assim que as coisas aconteciam para Camila, era assim que a testemunha ocular via tudo acontecer. Infelizmente, na época de Camila não existia a lei Maria da Penha para que Thedy e os outros integrantes da banda pudessem ir à delegacia da mulher e fazerem a denuncia por ela, naquela época o que eles puderam fazer, foi denunciar através da música.
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