por Joanna Burigo — publicado 23/11/2016
A série, que reestreia no Netflix, é um bastião de protagonismo feminino em meio à pressão para a manutenção do status de coadjuvante social
Nesta sexta-feira 25 estreia Gilmore Girls: Um ano para recordar, o tão esperado renascimento, em quatro episódios inéditos, de uma das séries mais feministas da TV pré-Netflix – a propósito, quem exibe o lançamento.
Assisti a alguns episódios logo que o seriado estreou no Brasil, e na época – início dos anos 2000 – não dei muita atenção para a narrativa hegemonicamente branca e de estética entediante sobre a vida provinciana que o duo mãe & filha viciadas em cafeína parecia levar. Além disso, os stingers – breves instantes de melodia reconhecível durante transições de cena nos seriados americanos – me faziam perder por completo o interesse nas histórias das garotas Gilmore.
Era tudo muito “la la la” para meu incipiente gosto feminista, e foi apenas quando vi a série novamente em 2010 que percebi seu potencial – que reside não somente nas personagens e seus dramas, mas na crítica embutida nas intricadas relações de poder que sustentam seus relacionamentos, quase todas reveladas e articuladas através dos ácidos e acelerados diálogos característicos do show.
Para não deixar dúvidas sobre a influência do discurso feminista na construção da série, já no piloto Rory explica porque tem o mesmo nome da mãe, Lorelai: “Ela conta que ainda estava deitada no hospital, pensando em como os homens dão seus nomes a seus filhos, e por que as mulheres não poderiam fazer o mesmo. Então ela diz que seu feminismo simplesmente assumiu o controle."
Mas o feminismo também aparece nas abundantes referências culturais de Gilmore Girls, e muitos (dos muitos) livros, filmes e personalidades citados são decididamente feministas.
Nesta sexta-feira 25 estreia Gilmore Girls: Um ano para recordar, o tão esperado renascimento, em quatro episódios inéditos, de uma das séries mais feministas da TV pré-Netflix – a propósito, quem exibe o lançamento.
Assisti a alguns episódios logo que o seriado estreou no Brasil, e na época – início dos anos 2000 – não dei muita atenção para a narrativa hegemonicamente branca e de estética entediante sobre a vida provinciana que o duo mãe & filha viciadas em cafeína parecia levar. Além disso, os stingers – breves instantes de melodia reconhecível durante transições de cena nos seriados americanos – me faziam perder por completo o interesse nas histórias das garotas Gilmore.
Era tudo muito “la la la” para meu incipiente gosto feminista, e foi apenas quando vi a série novamente em 2010 que percebi seu potencial – que reside não somente nas personagens e seus dramas, mas na crítica embutida nas intricadas relações de poder que sustentam seus relacionamentos, quase todas reveladas e articuladas através dos ácidos e acelerados diálogos característicos do show.
Para não deixar dúvidas sobre a influência do discurso feminista na construção da série, já no piloto Rory explica porque tem o mesmo nome da mãe, Lorelai: “Ela conta que ainda estava deitada no hospital, pensando em como os homens dão seus nomes a seus filhos, e por que as mulheres não poderiam fazer o mesmo. Então ela diz que seu feminismo simplesmente assumiu o controle."
Mas o feminismo também aparece nas abundantes referências culturais de Gilmore Girls, e muitos (dos muitos) livros, filmes e personalidades citados são decididamente feministas.
Foi assistindo Gilmore Girls que conheci Melissa McCarthy e Krysten Ritter, intérpretes de personagens recentemente aclamadas pela crítica feminista, como Abby Yates de Caça-Fantasmas, e Jéssica Jones, a protagonista da sensacional série homônima da Marvel. Mas foi a Lorelai Gilmore de Lauren Graham quem melhor demonstrou os elementos que garantem a execução de uma personagem feminina bem escrita.
A irreverente Lorelai criou sua filha de forma independente apesar da fortuna dos pais. Grávida aos 16 anos fugiu de casa para escapar também das obrigações relativas ao sustento deluxe fornecido pela família, o que incluía adesão mandatória a normas tradicionais de gênero, como um casamento indesejado com o pai da criança.
Os afetos e animosidades que compõem os relacionamentos entre as três gerações de mulheres Gilmore norteiam o desenvolvimento dos arcos de cada uma destas personagens, e isso fica evidente assim que as conhecemos.
Rory, uma adolescente que sonha com a Universidade Harvard, é aceita em um colégio preparatório de elite, e a série começa com sua mãe pedindo aos pais milionários um empréstimo para financiar a educação da garota. Lorelai abandonara a existência VIP condensada por sua mãe, Emily, para construir uma vida pautada no ideário feminista de independência não apenas financeira, mas emocional e social.
O dinheiro da família Gilmore é um elemento essencial da narrativa, pois é a partir de sua negação, ou acesso a ele, que o roteiro se organiza. O show indica que o amadurecimento de Lorelai, distante do domínio material e simbólico do poder financeiro de seus pais, aguçou sua já vigorosa personalidade e moldou o senso de liberdade com que educa sua filha.
Ainda assim a série se desenrola durante os anos em que Rory é favorecida pelo financiamento dos avós – e mais tarde do pai – e é notório que na medida em que se aproxima das benesses do universo privilegiado dos muito ricos ela reforça um dos atributos mais intrigantes do seriado: suas escolhas nem sempre refletem o legado de sua mãe.
Rory é bem educada e versada no conhecimento feminista, mas seu comportamento ao longo das sete temporadas indica uma série de dissonâncias entre o que aprendeu e o que pode sentir. Isso é mais visível nos seus romances: ela aparenta ter uma queda por bad boys, e os garotos com quem se relaciona são alegorias perfeitas para relacionamentos tóxicos e desiguais.
Os interesses românticos de Lorelai também aludem a scripts tradicionais de masculinidade, mas o que qualifica o feminismo de uma e coloca o da outra em questão é a conivência com o desequilíbrio que estes scripts de gênero causam em suas relações. Enquanto Lorelai começa e termina affairs pautada puramente no quão bem ou mal eles fazem a ela, Rory parece permitir que sua vida afetiva seja guiada pelas necessidades de seus parceiros.
A assertividade de Lorelai, um dos trunfos feministas da série, é perceptível para além de seus relacionamentos românticos. Aliás, apesar de a história ser pontuada por paixões, não são elas que compõem o foco da narrativa. O que amarra e expande a série mesmo é o desenvolvimento pessoal, profissional e acadêmico das garotas e seus convivas. Por isso vale prestar atenção no simbolismo das personagens para além delas mesmas – ou dos estereótipos que inevitavelmente reforçam.
Lorelai é livre e impetuosa, sua sócia Sookie é uma workaholic perfeccionista, Rory é nerd assumida e sua melhor amiga virou baterista de uma banda independente apesar da mão forte da mãe conservadora. Miss Patty, a dona da escola de dança de Stars Hollow, comunidade onde a história acontece, é uma senhora sensual e influente que não perde a chance de flertar com jovens bonitões que aparecem no vilarejo.
Cada uma das figuras principais e/ou recorrentes da série sintetiza significados abarcantes, e poucos shows – até hoje – são compostos por um time de personagens femininas tão complexas moral, intelectual, emocional e psicologicamente.
Paris Geller, magistralmente interpretada por Liza Weil, talvez seja o papel mais indicativo da habilidade que o seriado tem de produzir mulheres interessantes: ela é ambiciosa, determinada, agressiva, e não apresenta nenhum traço de insegurança quando dela é exigido liderar. O protagonismo das mulheres na série providenciou alívio para quem cresceu acostumada a assistir personagens femininas impossivelmente adequadas, e absolutamente secundárias.
Emily – a garota Gilmore que menos aparece nas imagens promocionais a ponto de sequer a considerarmos uma delas – é mais importante para a história do que sua presença arrogante e desagradável indica a primeira vista. Ela não existe apenas como antagonista de Lorelai, mas para simbolizar a alienação oriunda dos privilégios da riqueza branca, mesmo que estes sejam mantenedores fiéis do status quo que a oprime.
Emily e seu sem-fim de eventos de caridade representam o primeiro-damismo de mulheres cuja subjugação resulta no benefício de não ter que batalhar pela própria vida, e apresenta assim uma oposição concreta aos valores com que Lorelai tanto se empenha em envolver Rory.
Essa oposição é lindamente complicada, na série, pelos laços consanguíneos que unem as três. É frustrante assistir a menina sucumbir às tentações do falso conforto ao qual sua mãe resistiu por sabê-lo moeda de troca cujo déficit é independência, e é inspirador assistir Lorelai tentar resgatá-la, incansavelmente e sem jamais desrespeitar suas escolhas ou abrir mão da humanidade com que sempre tratou a filha.
As personagens masculinas também compendiam significados complexos, mas existem para representar as instituições invisíveis e os estereótipos de masculinidade tóxica que compõem a ordem social de gênero.
Mitchum Huntzberger, o poderoso chefão de um conglomerado midiático, com o autoritarismo cruel conferido a quem está abaixo dele, é o patriarcado encarnado. Seu filho Logan é o playboy que se safa das mais variadas escapadas por conta das regalias comumente conferidas a garotos brancos e muito ricos.
Luke e Christopher, cada um a seu modo, sinalizam as características mais úteis e mais patéticas do macho-alfa, e as desventuras do imperativo Taylor Doose representam os transtornos que o poderzinho avarento legitimado por cargos políticos inferiores acarretam.
Já Richard, o patriarca Gilmore, numa complicação semelhante à conferida pelos nós familiares engendrados entre Emily e as garotas, sintetiza o machismo benevolente que caracteriza muitas das relações – de amor e poder – entre os homens e mulheres de uma mesma família.
Uma mulher que marcou presença constante na série, ainda que apenas através de referências, foi Hillary Clinton. Em um episódio da quinta temporada Lorelai se despede de Luke após uma conversa de telefone com a frase “Te vejo quando a Hillary for presidente”. Eu também achava que este seria o contexto do meu reencontro com as garotas Gilmore, mas infelizmente não é o caso.
Que isso nos dê ainda mais motivos para buscar inspiração e autocrítica nesta e em outras séries que se mantêm corajosamente feministas, apesar do esforço orquestrado para remover nosso protagonismo do cenário político e nos manter no papel de coadjuvantes sociais.
A irreverente Lorelai criou sua filha de forma independente apesar da fortuna dos pais. Grávida aos 16 anos fugiu de casa para escapar também das obrigações relativas ao sustento deluxe fornecido pela família, o que incluía adesão mandatória a normas tradicionais de gênero, como um casamento indesejado com o pai da criança.
Os afetos e animosidades que compõem os relacionamentos entre as três gerações de mulheres Gilmore norteiam o desenvolvimento dos arcos de cada uma destas personagens, e isso fica evidente assim que as conhecemos.
Rory, uma adolescente que sonha com a Universidade Harvard, é aceita em um colégio preparatório de elite, e a série começa com sua mãe pedindo aos pais milionários um empréstimo para financiar a educação da garota. Lorelai abandonara a existência VIP condensada por sua mãe, Emily, para construir uma vida pautada no ideário feminista de independência não apenas financeira, mas emocional e social.
O dinheiro da família Gilmore é um elemento essencial da narrativa, pois é a partir de sua negação, ou acesso a ele, que o roteiro se organiza. O show indica que o amadurecimento de Lorelai, distante do domínio material e simbólico do poder financeiro de seus pais, aguçou sua já vigorosa personalidade e moldou o senso de liberdade com que educa sua filha.
Ainda assim a série se desenrola durante os anos em que Rory é favorecida pelo financiamento dos avós – e mais tarde do pai – e é notório que na medida em que se aproxima das benesses do universo privilegiado dos muito ricos ela reforça um dos atributos mais intrigantes do seriado: suas escolhas nem sempre refletem o legado de sua mãe.
Rory é bem educada e versada no conhecimento feminista, mas seu comportamento ao longo das sete temporadas indica uma série de dissonâncias entre o que aprendeu e o que pode sentir. Isso é mais visível nos seus romances: ela aparenta ter uma queda por bad boys, e os garotos com quem se relaciona são alegorias perfeitas para relacionamentos tóxicos e desiguais.
Os interesses românticos de Lorelai também aludem a scripts tradicionais de masculinidade, mas o que qualifica o feminismo de uma e coloca o da outra em questão é a conivência com o desequilíbrio que estes scripts de gênero causam em suas relações. Enquanto Lorelai começa e termina affairs pautada puramente no quão bem ou mal eles fazem a ela, Rory parece permitir que sua vida afetiva seja guiada pelas necessidades de seus parceiros.
A assertividade de Lorelai, um dos trunfos feministas da série, é perceptível para além de seus relacionamentos românticos. Aliás, apesar de a história ser pontuada por paixões, não são elas que compõem o foco da narrativa. O que amarra e expande a série mesmo é o desenvolvimento pessoal, profissional e acadêmico das garotas e seus convivas. Por isso vale prestar atenção no simbolismo das personagens para além delas mesmas – ou dos estereótipos que inevitavelmente reforçam.
Lorelai é livre e impetuosa, sua sócia Sookie é uma workaholic perfeccionista, Rory é nerd assumida e sua melhor amiga virou baterista de uma banda independente apesar da mão forte da mãe conservadora. Miss Patty, a dona da escola de dança de Stars Hollow, comunidade onde a história acontece, é uma senhora sensual e influente que não perde a chance de flertar com jovens bonitões que aparecem no vilarejo.
Cada uma das figuras principais e/ou recorrentes da série sintetiza significados abarcantes, e poucos shows – até hoje – são compostos por um time de personagens femininas tão complexas moral, intelectual, emocional e psicologicamente.
Paris Geller, magistralmente interpretada por Liza Weil, talvez seja o papel mais indicativo da habilidade que o seriado tem de produzir mulheres interessantes: ela é ambiciosa, determinada, agressiva, e não apresenta nenhum traço de insegurança quando dela é exigido liderar. O protagonismo das mulheres na série providenciou alívio para quem cresceu acostumada a assistir personagens femininas impossivelmente adequadas, e absolutamente secundárias.
Emily – a garota Gilmore que menos aparece nas imagens promocionais a ponto de sequer a considerarmos uma delas – é mais importante para a história do que sua presença arrogante e desagradável indica a primeira vista. Ela não existe apenas como antagonista de Lorelai, mas para simbolizar a alienação oriunda dos privilégios da riqueza branca, mesmo que estes sejam mantenedores fiéis do status quo que a oprime.
Emily e seu sem-fim de eventos de caridade representam o primeiro-damismo de mulheres cuja subjugação resulta no benefício de não ter que batalhar pela própria vida, e apresenta assim uma oposição concreta aos valores com que Lorelai tanto se empenha em envolver Rory.
Essa oposição é lindamente complicada, na série, pelos laços consanguíneos que unem as três. É frustrante assistir a menina sucumbir às tentações do falso conforto ao qual sua mãe resistiu por sabê-lo moeda de troca cujo déficit é independência, e é inspirador assistir Lorelai tentar resgatá-la, incansavelmente e sem jamais desrespeitar suas escolhas ou abrir mão da humanidade com que sempre tratou a filha.
As personagens masculinas também compendiam significados complexos, mas existem para representar as instituições invisíveis e os estereótipos de masculinidade tóxica que compõem a ordem social de gênero.
Mitchum Huntzberger, o poderoso chefão de um conglomerado midiático, com o autoritarismo cruel conferido a quem está abaixo dele, é o patriarcado encarnado. Seu filho Logan é o playboy que se safa das mais variadas escapadas por conta das regalias comumente conferidas a garotos brancos e muito ricos.
Luke e Christopher, cada um a seu modo, sinalizam as características mais úteis e mais patéticas do macho-alfa, e as desventuras do imperativo Taylor Doose representam os transtornos que o poderzinho avarento legitimado por cargos políticos inferiores acarretam.
Já Richard, o patriarca Gilmore, numa complicação semelhante à conferida pelos nós familiares engendrados entre Emily e as garotas, sintetiza o machismo benevolente que caracteriza muitas das relações – de amor e poder – entre os homens e mulheres de uma mesma família.
Uma mulher que marcou presença constante na série, ainda que apenas através de referências, foi Hillary Clinton. Em um episódio da quinta temporada Lorelai se despede de Luke após uma conversa de telefone com a frase “Te vejo quando a Hillary for presidente”. Eu também achava que este seria o contexto do meu reencontro com as garotas Gilmore, mas infelizmente não é o caso.
Que isso nos dê ainda mais motivos para buscar inspiração e autocrítica nesta e em outras séries que se mantêm corajosamente feministas, apesar do esforço orquestrado para remover nosso protagonismo do cenário político e nos manter no papel de coadjuvantes sociais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário