por Ana Ferraz — publicado 01/11/2016
Na banda As Bahias e a Cozinha Mineira, Raquel Virgínia e Assucena Assucena cantam a dor de ser mulher
Em fase de transição, antes de adotar o nome atual, Raquel Virgínia viajou para o sertão de Alagoas. Na cabeça em turbilhão e nos sentimentos à flor da pele, o medo da não aceitação pulsava forte. Foi às margens do São Francisco de cintilações verde-esmeralda e azul-profundo que uma onda de paz apaziguou-a.
Com naturalidade, os pescadores com quem conversava entenderam que Rafael seria mais feliz se mudasse o nome para Raquel. “Minha essência é feminina, na infância tudo era feminino”, recorda a cantora e compositora, que ao lado da amiga Assucena Assucena e do músico Rafael Acerbi formam a banda As Bahias e a Cozinha Mineira.
A paulistana Raquel e a baiana Assucena Assucena, ambas apelidadas de Bahia no curso de História na Universidade de São Paulo, compartilham uma jornada de descobertas, fragilidades, dor e união de forças para enfrentar humilhações.
“Uma mulher trans sofre abusos diferentes de uma cisgênero”, diz Assucena Assucena, nome inspirado na flor que tinge de vermelho, rosa e branco a Caatinga. “Evito sair de saia e vestido para não ser ridicularizada”, afirma a conterrânea de Elomar e Glauber Rocha, ambos nascidos em Vitória da Conquista. “Nos dizem coisas horríveis o tempo todo. Os olhares não mais me incomodam”, conta Raquel Virgínia.
Ela aprendeu a se defender por meio de uma atitude capaz de intimidar o agressor. Uma espécie de campo de força a repelir os incomodados com sua imagem de mulher negra e forte, cabelos loiros puxados em tranças, maquiagem a realçar o rosto bonito, acessórios a passar a mensagem de que o feminino mora ali, e sempre morou.
Cabeleira crespa a escalar o ar, compleição delicada e voz marcante treinada desde os 9 anos em corais, Assucena Assucena nasceu em família judaica de prática religiosa. Pelo toca-discos dominado por ela e pela irmã passearam cantigas sacras, Roberto Carlos, Xangai, Elomar e doses maciças de axé. “Ouvíamos Caetano, Gil e Gal, mas na época não prestávamos atenção.”
Muitas lágrimas de criança apaixonada em silêncio pelo colega da escola rolaram ao som de Laura Pausini e Sandy e Júnior. E as indefectíveis imitações de Whitney Houston ecoaram muitas vezes pela casa, onde a mãe fingia não saber que a cada ausência o filho fazia seus vestidos e sapatos de salto. “Meu pai não aceita até hoje.”
No caso de Raquel Virgínia, tudo ainda é transição. “Com minha família não existe barraco, existe silêncio e afastamento. Com barraco talvez a gente resolvesse.” Ela deixou a casa paterna há dez anos, decidida a fazer carreira em Salvador como cantora de axé (a identidade ainda em fase oscilante).
“Aos 15 anos escrevia músicas no estilo Ivete Sangalo. E então comecei a cantar.” Ainda não se sabia uma intérprete de recursos vocais e dramáticos, com forte presença de palco e veia rasgada a gotejar poesia.
As vivências de Assucena Assucena e Raquel Virgínia convergiram para um ponto em comum no curso de História. O disco de estreia, Mulher, lançado em 2015, começou a ser gestado em 2012. “Nossas temáticas eram muito parecidas, embora tenhamos chegado a elas por caminhos diferentes.
A interseção estava ali, no nome do disco”, explica Raquel Virgínia. Durante o período em que ambas se viram deprimidas em razão de descobertas e enfrentamentos foi Gal Costa o farol a iluminar o rumo de volta à música. “Ouvimos intensamente. Ela foi uma espécie de portal para ganharmos entendimento de estética, de conceito de construção de um álbum, de saber tecer uma obra.”
As 13 canções de Mulher nutrem-se mais das experiências pessoais que dos ensinamentos acadêmicos. O céu do sertão de Alagoas, as águas do São Francisco, as mulheres migrantes, a solidão alinhavada à alma, as muitas batalhas a serem travadas. “Infelizmente, muitas vezes a academia nos nega o céu, nega as estrelas.”
Na épica Apologia às Virgens Mães, cujo clipe dirigido por Jaloo acaba de ser lançado, as vozes poderosas de Assucena Assucena e de Raquel Virgínia clamam em nome das mulheres cujos prantos correm pela história, mulheres de sonhos trajados de tragédia, mulheres de corpos ultrajados, mulheres condenadas ao silêncio.
Em Melancolia, canção que conversa com todas as outras, segundo Assucena Assucena, o fio condutor é o processo migratório pela ótica feminina. “O disco caminha do rural para o urbano o tempo todo.”
Gestar e dar à luz Josefa Maria foi um processo de transcendência. “Mesmo que estivesse ocorrendo alguma outra coisa no meu apartamento eu nada perceberia. Foi como se eu estivesse em suspensão”, conta Raquel Virgínia.
A canção materializa ideias acumuladas ao longo do tempo, amarradas numa letra a homenagear todas as Josefas Marias, migrantes nordestinas a sentir “as dores do mundo em seus joelhos de tanto rezar”.
Com shows lotados e inspiração afiada pelos desafios diários, As Bahias e a Cozinha Mineira acumulam repertório para o próximo CD, Bicha, com lançamento previsto para o início de 2017. “Teremos de fazer uma seleção, estão sobrando músicas”, conta Assucena Assucena.
Ambas começam a saborear o reconhecimento pelo trabalho, mas não perdem de vista as muitas conquistas necessárias a uma vida plena. “Há deputados querendo tirar nosso direito ao uso de nome social. É um horror. Não afeta em nada a vida deles, mas afeta a nossa completamente.”
Raquel Virgínia protesta contra a sociedade que nega emprego a mulheres trans e a cidade que invisibiliza os negros. “Nos espaços formais de São Paulo, a mulher negra tem de alisar o cabelo e o homem negro tem de raspar a cabeça.”
Por enquanto, nenhuma das duas pretende se submeter a procedimentos cirúrgicos. “Seria transferir a natureza da minha identidade para o cirurgião. A necessidade é outra, é minha identidade como ser social”, frisa Assucena Assucena.
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