Conversamos sobre luta, sonhos e questões sociais com um dos nomes mais importantes do cenário independente do hip hop
13/11/2015 / POR NATHAN FERNANDES
Rashid vem há quase dez anos percorrendo os difíceis caminhos do cenário independente do hip hop. Tempo suficiente para se tornar um dos nomes mais proeminentes do rap nacional. Seu primeiro EP, Hora de Acordar, viu a luz em 2010. Desde então já lançou as mixtapes Dádiva E Dívida (2011), Que Assim Seja (2012) e Confundindo Sábios (2013). Mais recentemente, foi uma das atrações do festival americano South by Southwest (SXSW) e lançou o EP R&K – Seis Sons, com o amigo Kamau, outro destaque do rap nacional.
O clipe de um de seus mais recentes singles, A Cena, dirigido por Levi Vatavuk, relembra o enquadro policial que o artista levou quando jovem e mostra de forma metafórica os enquadros sociais, psicológicos e morais, trazendo a discução do preconceito à tona. Com a GALILEU, o rapper conversou sobre preconceitos e o fim do racismo e, a nosso pedido, preparou uma playlist exclusiva de rap para o Spotfy, o Deezer e o Rdio.
O verso "O que fizemos aos senhores/ Além de nascer com essa cor" é bem reflexivo. O que pensa quando alguém diz que não existe racismo no Brasil?
Penso que essa pessoa vive num mundo maravilhoso onde tudo é coincidência e só ousa reclamar de algo quando pisam no seu próprio calo, quando o problema está diretamente ligado a ela (como se o próprio racismo também não estivesse, não importando "de que lado" da história ela está).
O fato de a porcentagem de jovens, mulheres e homens negros que são assassinados todo ano ser absurdamente maior que a porcentagem de brancos é coincidência? Ou meritocracia? Essas pessoas fizeram por merecer? Talvez na visão de alguém que acredite que não há racismo no Brasil, seja.
O fato de ser muito mais difícil pra um negro, e nesse caso pra mulher negra ser mais difícil ainda, arrumar um emprego é coincidência e/ou meritocracia? O fato de o Brasil ser um país com mais de 50% de sua população sendo negra ou parda, ter estampado em 95% (no mínimo) de seus outdoors, revistas e jornais, famílias inteiras brancas, loiras e cheias de traços europeus também é coincidência e/ou meritocracia no mundo dessa pessoa?
Se você gosta de futebol, provavelmente já viu os casos de racismo quase semanais por lá. Na escola, você já ouviu, fez ou sofreu com as piadas diárias também. No trabalho, olhe ao seu redor, do faxineiro ao patrão e pare pra pensar.
E o fato de andar na rua e ter certeza que nenhum táxi que passa vai parar pra você, e ao mesmo tempo ter a certeza de que, mesmo sem dever nada, toda viatura que passa vai parar. A real é que o país foi estruturado em volta dessa mentalidade da miscigenação onde muitos nem se vêem como negros e sim "moreninhos", "queimadinhos", "cor de jambo", "cafuzo", "mulato" e sei lá mais o quê. Isso faz os próprios irmão se olharem de forma diferente enquanto os seguranças da loja que você entrou olham todos do mesmo jeito. Suspeito.
Achei legal colocar o enquadro no clip como uma alegoria de situações cotidianas. Até porque existem situações de preconceito que são invisíveis para quem não é negro. E acho que dá para extrapolar para outros grupos também. Tipo, sou gay e não ando de mãos dadas com meu namorado porque tenho medo de levar uma lampada. Esse medo é invisível. Conheço mulheres que se auto censuram para não chamar a atenção de homens na rua, com medo de serem abordadas. Isso também é invisível. No seu caso, o que é invisível?
Essa foi a idéia. Trazer a tona essas situações. Eu morei em Minas Gerais durante uma época da minha vida, numa região bem no interior chamada Serra de Ijaci. Ali eu VI muita coisa invisível ao resto do mundo.
O Brasil está acostumado a "exportar" a periferia, a favela, a quebrada pro mundo, mas ali existe um tipo diferente de pobreza. Uma pobreza tão intensa, que não existia nem o crime, pois não havia nada pra se roubar. Os moradores do meu bairro eram conhecidos como "pé vermelho", nas cidades ao redor — referência a cor dos pés e calçados já que não havia asfalto nas ruas, na época. Ali, eu trabalhei até de bóia-fria algumas vezes com minha mãe, e se você não quisesse se afastar da sua família, esse era o tipo de emprego que você tinha que arrumar.
Hoje as coisas mudaram um pouco, mas a visão das pessoas sobre o pessoal "da roça", ainda é sem dúvida mais um dos preconceitos invisíveis que o país guarda. Sem falar do abuso do trabalho adulto e infantil, que acontece nessas regiões. Meus amigos com 15, 16 anos, já trabalhavam como cortadores de cana e não demorou muito pra eu entrar nessa onda, já que não havia dinheiro nem escolha. Essa é uma luta invisível também.
A capa da nossa edição de setembro é sobre racismo. E percebemos que, na redação, não tínhamos ninguém negro que pudesse escrever com uma perspectiva pessoal. No final, convidamos o sociólogo Túlio Custódio, que nos trouxe essa perspectiva. Mas isso da representatividade é uma questão aqui para a gente também, e estamos cada vez mais preocupados com isso. Como você vê a representatividade dos negros hoje?
A representatividade na minha visão é umas das questões mais vitais, por que se comunica direto com a autoestima das pessoas. Ela pode virar a chave do "nunca será" pro "é possível!". Uma garotinha quando olha pra TV, e se enxerga na Taís Araújo por exemplo, aceitando seu cabelo, sua beleza, sua cor... Boom! Levantou a cabeça. Isso pode mudar (e provavelmente mudará) a vida dela pra sempre.
É isso que fez eu me identificar com o Rap, a representatividade. Eu me enxerguei nos caras, e ainda me enxergo. É isso que faz 90% dos garotos de periferia em algum momento da vida sonharem em ser jogadores de futebol (inclusive eu, até ver que não nasci pra isso), é olhar pro campo e se ver nas maiores estrelas do esporte.
Quando o garoto olha pro bandido e se vê na figura do cara ou até mesmo do moleque, isso também representa algo pra ele. É o "poder". A partir do momento em que nossos garotos e garotas começarem a se enxergar nas mais variadas e relevantes posições na sociedade, teremos mais jovens sabendo que é possível e sonhando com aquilo.
No rap, nós usamos muito o termo "representar". Quando alguém diz: "Vai lá e representa!", essa pessoa quer dizer: "Represente aqueles que estão ao seu lado e acreditam em você, para aqueles que te verem lá saberem que estamos aqui, firmes, fortes e orgulhosos de sermos o que somos". Isso é representatividade.
Nesta mesma edição, mostramos como o racismo às vezes é inconsciente. Automaticamente (por causa de um conceito da psicologia que se chama viés inconsciente), associamos as palavras "branco" e "armado" a um delegado; e "negro" e "armado" a um bandido, por exemplo. Você acha que a música pode ser uma ferramenta de mudança nesse sentido?
Com certeza! Ao longo da história a música tem associado a figura do negro ao cara bem sucedido, ao talentoso, ao gênio, ao guerreiro, ao cara que quebrou barreiras. Isso não significa que os problemas acabam ali, mas mostra que é possível passar por cima disso com a cabeça erguida.
Não à toa, vários ídolos da música negra em alguma parte da carreira (alguns em toda ela) se devotam ao movimento. Bob Marley, Nina Simone, Fella Kuti, Wilson Simonal, James Brown, Milton Nascimento... A luta pelo sonho várias vezes se cruza com a luta pelo direitos iguais.
Não só na música, em diversas áreas artísticas, no esporte, no empreendedorismo, etc... Em todos os lugares, o progresso de um negro representa o progresso de todos aqueles que lutam. E quando a vitória do negro se tornar algo comum, ao invés de apenas a luta, aí sim, talvez tenhamos um Brasil sem racismo.
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