por Raisa Pina — publicado 11/11/2016
Não há graça nenhuma nos programas exibidos nos ônibus, apenas violência contra a mulher mesmo, promovida pelo governo do Distrito Federal
Entrei em um ônibus do transporte público de Brasília por volta de meio-dia de uma quinta-feira. Como o horário coincidia com a saída de alunos das escolas de Educação Básica, o veículo estava cheio de crianças e adolescentes, mas também havia idosas, trabalhadoras e transeuntes em geral, como era o meu caso.
Como forma de entretenimento, o ônibus possuía uma televisão que transmitia pequenas notícias e um programa de pegadinhas chamado “Just for Laughs”, o que em uma tradução literal seria “Só para rir”.
A história “de humor” era simples: uma atriz bonita e sarada, vestindo uma micro-saia e um top, malhava em uma academia qualquer, cercada por homens tão sarados quanto ela.
Depois de muito correr na esteira, a mulher se pesava e se mostrava insatisfeita com o número que via na balança. De maneira bem infantil, com uma mímica de teatro de má qualidade, ela mostrava que havia tido uma grande ideia. E aí que está o “momento de humor” do quadro.
Ela tirava o top e a micro-saia, ficando só de calcinha e sutiã, como se 30 centímetros de tecido fossem dar diferença efetiva na balança. Ela se pesava novamente e ainda continuava insatisfeita.
Os homens ao redor paravam seus exercícios para olharem a cena como se a mulher fosse um frango assado de padaria e eles, cachorros famintos. Em um último gesto desesperado para perder ainda mais peso, a mulher tirava o sutiã, pesava-se de novo e saltitava de alegria por atingir a marca que queria, enquanto os homens da academia babavam e riam olhando seus mamilos.
No fim, a mulher seminua abraçava os caras e apontava para a câmera escondida, mostrando que eles haviam caído em uma pegadinha. A marca do programa aparecia na tela: “Só para rir”.
Embaixo da televisão, no ônibus, um cartaz contra abuso sexual no transporte coletivo. Dezenas de crianças, adolescentes, homens e mulheres assistindo àquilo.
Um Estado que faz campanha contra assédio sexual nos ônibus e autoriza a transmissão de programas que incitam a violência machista no transporte coletivo mais utilizado da capital federal é um Estado completamente patriarcal e inoperante na segurança de suas mulheres, que ironicamente representam a maioria da classe trabalhadora do país e, portanto, as maiores usuárias do transporte coletivo.
O nosso direito de ir e vir, que já é cercado do medo causado pela cultura do estupro, nos é ainda mais difícil de ser assegurado quando somos obrigadas a assistir programas de humor ofensivos e violentos dentro de um veículo palco de histórias diárias de assédio sexual.
Mulheres se sentem revoltadas, amedrontadas, machucadas, diminuídas a mero objeto sexual, enquanto crianças e adolescentes aceitam o discurso da maneira como ele é posto: como humor.
Não há nada de engraçado no clichê da gostosa-burra-boneca-sexual e dos caras-babões-assediadores daquele programa que de humor não tem nada, mas de violência, transborda.
Para além da aula de violência machista que o transporte coletivo de Brasília dá gratuitamente aos seus usuários, há outras questões de desigualdade sexual e patriarcado presentes no enredo “tão elaborado” do vídeo que devem ser destacadas também.
Primeiro: o clichê da gostosa-burra-boneca-sexual é muito raro de ser encontrado na realidade, para não dizer quase inexistente. Conheço muitas gostosas, mulheres de corpo escultural que gostam de ir para a academia e malhar a tarde inteira: elas podem, elas querem, elas que façam o que têm vontade com a liberdade que lhes é de direito.
Agora, burrice ali passou longe. Todas as malhadas que conheço são incríveis de espertas e inteligentes; o fato de exercitarem os glúteos não quer dizer que a massa encefálica diminua proporcionalmente ao ganho de massa muscular.
Não é assim que as coisas funcionam. E mesmo que exista uma ou outra mulher que realmente poderia ser enquadrada em uma classificação de “burrice”, tenho 100% de certeza que elas são sensatas o suficiente para saber que não é tirando um sutiã na academia que irão atingir o peso ideal.
O clichê de mulher-burra não nos pertence: somos maioria nas universidades, temos o melhor rendimento escolar e ocupamos a maioria das vagas de pós-graduação no país. De burras, não temos nada.
Esse é um discurso machista que é imposto sobre as mulheres com o intuito de nos diminuir, assim como a ideia de que as mulheres são invejosas e por isso não se gostam, ou de que as mulheres são melhores cuidadoras do que os homens.
São todas falas que enfraquecem não só a mulher individualmente, mas enquanto coletivo. Ouvir que “sua amiga na verdade não quer o seu bem porque mulher é sempre invejosa” cria um sentimento de desconfiança que nos nega o acesso à sororidade. Mas não aceitamos esses discursos.
Mulheres são companheiras, sim, confiáveis, sim, e nossa luta é pelo empoderamento de todas, porque uma vez que empoderamos uma amiga, conquistamos o nosso próprio empoderamento.
Se uma coisa nos é intrínseca é a liberdade de sermos como quisermos, plurais como quisermos. Rótulos machistas não nos pertencem.
Outra questão absurda do vídeo é a sexualização dos mamilos da mulher. Alguns dos homens que malhavam ao lado da mulher do programa “de humor” estavam sem camisa, expondo seus mamilos para quem quisesse ver, mas tudo bem porque os deles podem. Anormal é o mamilo feminino exposto.
Caros homens, vocês todos mamaram em suas mães, assim como nós mulheres mamamos em nossas mães. Peito é fonte de alimentação de seres humanos, precisam ser expostos e devem ser respeitados.
O momento do sexo é um momento particular de cada um: o peito pode ser uma zona erógena tanto quanto o pé ou as axilas ou o pescoço ou qualquer outra parte do corpo. Não é porque vocês acham seios femininos bonitos que não podemos expô-los igualmente e com a segurança devida.
Recentemente, saí para correr nesta Brasília de 36ºC e, quando terminei o percurso, fui tomada por uma onda de calor insuportável. A seca ainda castigava e não estava conseguindo respirar. Joguei água em mim inteira, mas não foi suficiente: tirei a blusa.
Eu estava com um top como sutiã e não pensei duas vezes e arrancar a camisa. Mas o calor ainda era demais. Quis tirar o top, o tecido parecia queimar minha pele, queria deixar os peitos respirarem; não havia ninguém ao redor, mas mesmo assim, me contive.
Me auto cerceei porque, ao tirar o top e deixar meus seios à mostra, eu poderia ir para a cadeia por atentado ao pudor; poderia correr o risco de ser atacada por algum homem que passasse por ali e visse meu corpo como um convite; poderia ser ofendida verbalmente ou sofrer outras consequências graves. Enquanto isso, homens correm mostrando seus peitos por aí diariamente.
O vídeo transmitido pelos ônibus coletivos da capital do país são muitas violências machistas reunidas simultaneamente: mostra a mulher como uma gostosa-burra, mostra que peitos femininos não podem ser expostos, mostra que a mulher é um pedaço de carne para ser vigiado e desejado, mostra que os homens podem assediar e que podem mostrar seus mamilos sem serem observados de maneira ofensiva, ou seja: mostra que homens têm suas regalias e que mulheres tem muitas regras a cumprir.
Tudo isso à luz do dia, em horário de saída escolar, no transporte público de Brasília, acima de um cartaz educativo sobre assédio sexual contra mulheres. Não há graça nenhuma, apenas violência mesmo, promovida pelo governo do Distrito Federal.
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