A constatação de que muitos feminicídios são evitáveis revela a conivência social e institucional com as violências contra as mulheres e suas raízes culturais, como o sentimento de posse sobre o corpo feminino ou a sua objetificação.
Por que mortes ‘evitáveis’?
Essas mortes são evitáveis porque há uma série de violências que são constituintes e antecedentes a ela. O feminicídio é a ponta do iceberg, é a consequência. Então, temos que ter um olhar muito mais cuidadoso para o que veio antes.”
Carmen Hein de Campos, advogada doutora em Ciências Criminais e consultora da CPMI-VCM.
Nomear o feminicídio é uma forma de evidenciar que as desigualdades de gênero aumentam a vulnerabilidade das mulheres a certos tipos de violências que podem culminar em morte. Para além de tirar essas raízes discriminatórias da invisibilidade, uma dimensão importante para pensar o feminicídio é compreender que uma parcela considerável desses crimes poderia ser evitada – e assim apontar a responsabilidade da sociedade e, sobretudo, do Estado quando não são acionados os mecanismos de proteção às mulheres.
O feminicídio é o ato máximo da violência estrutural e sistemática contra as mulheres. É importante deixar claro que ele é gerado por um processo anterior e que pode muito bem ser evitado. Há mulheres submetidas a violações sistemáticas e a violências estruturais e, na medida em que esse ciclo não é interrompido, a violência só vai aumentando.”
Renata Tavares da Costa, Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro.
Alguns mecanismos que atuam para a perpetuação da violência até o desfecho fatal repetem-se em muitos casos, configurando assim o status de mortes ‘anunciadas’: a tolerância social às diversas formas de violência contra as mulheres, a insuficiência dos serviços públicos de atendimento, segurança e justiça, a negligência de profissionais que atuam nesses serviços, a impunidade e até proteção de autores de violências por meio da culpabilização da mulher pela violência sofrida.
Constatar que muitas dessas mortes são evitáveis revela, assim, a conivência social e institucional com aspectos culturais marcantes nos feminicídios, como o sentimento de posse associado aos crimes cometidos em relações íntimas de afeto.
Há homens que acham que podem matar a mulher que foi infiel a eles, por exemplo. Mas mesmo que ela o tenha traído de fato nada justifica o crime contra a vida, e é errado pensar que ela foi culpada de alguma maneira pela própria morte por ter sido infiel. E essa forma errada de pensar é responsabilidade de todo mundo, não só do autor, mas do Estado e de toda a sociedade.”
Ana Rita Souza Prata, Defensora Pública do Estado de São Paulo e coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção dos Direitos da Mulher (NUDEM).
O sentimento de posse também está presente nos casos de familiares e conviventes que praticam violências sexuais contra meninas e mulheres e depois cometem também o feminicídio, para que os abusos não sejam denunciados, por exemplo.
É muito comum o homem tentar abusar sexualmente da mulher e, se encontra qualquer resistência, termina ceifando a vida dela.”
Marinalva Santana, coordenadora do grupo Matizes, organização da sociedade civil que atua na defesa dos direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros no Piauí.
Nos crimes sexuais que culminam em feminicídio praticados por desconhecidos, a desumanização do corpo feminino, encarado muitas vezes como objeto, é marcante, evidenciando o ódio e misoginia que levam a desfigurar as vítimas ou a mutilar suas partes íntimas.
Responsabilidade do Estado
A partir da compreensão que os feminicídios são, em boa parte, ‘mortes anunciadas’, o Estado pode ser responsabilizado pelas vidas interrompidas. Fatores como a não efetivação dos direitos previstos nos marcos legais, não implementação de serviços de atendimento especializados, a aceitação e naturalização de hierarquias de gênero e raça e a banalização de uma série de violências anteriores pelas próprias instituições do Estado concorrem para a continuidade de violências que estão nas raízes do feminicídio, como a doméstica e sexual, até o desfecho fatal.
No Brasil, o cenário de convivência com ‘mortes anunciadas’ é denunciado, sobretudo, nos assassinatos decorrentes da violência doméstica e familiar – o chamado feminicídio íntimo, uma vez que o país já assumiu como deveres coibir e prevenir a violência nesse contexto, com a ratificação de tratados internacionais e a promulgação da Lei Maria da Penha em 2006.
Ou seja, se os sistemas de segurança e justiça tivessem agido em algum momento do histórico de violência anterior ao desfecho fatal ou se a mulher tivesse encontrado o apoio necessário dos serviços públicos para romper o ciclo de violência, conforme preconiza a Lei, muitas mortes seriam de fato evitadas.
O que a experiência no nosso cotidiano demonstra bem é que o feminicídio muito raramente é um ato isolado. Geralmente, é o resultado de todo um contexto de violência, de vários episódios que podem ter sido denunciados, levados ao conhecimento das instituições, ou não. Existem situações em que as mulheres nunca noticiaram a violência, mas quando vamos buscar o histórico, elas já sofriam há algum tempo. E existem casos em que as mulheres acionaram o sistema de segurança, de justiça ou de saúde – e aí é preciso entender que alguma coisa falhou para essas mulheres acabarem morrendo.”
Silvia Chakian de Toledo Santo, Promotora de Justiça do Ministério Público Estadual de São Paulo.
Assim como acontece no feminicídio íntimo, em outros tipos como o feminicídio associado à violência sexual, a banalização dos casos de violência ou a culpabilização da mulher gera uma sensação de impunidade e até de aceitação do crime – seja por existir uma compreensão social de que essa violência foi de alguma forma ‘provocada’ pela mulher, que não cumpriu um papel esperado socialmente e, assim, ‘se expôs’ a uma situação de risco; seja porque as próprias instituições do Estado encaram esse crime como um problema menor, individualizado e que não diz respeito à segurança pública e, portanto, não colocam as ações de enfrentamento e prevenção como prioridade política.
O Estado tem sido muito omisso. São pouquíssimos os recursos destinados à prevenção da violência contra as mulheres, e sempre bastante inferiores a outras políticas. Não há um entendimento por parte dos estados, das secretarias de segurança pública, por exemplo, de como a violência contra as mulheres se relaciona e se interconecta com as demais violências na sociedade brasileira. Como essa violência ajuda a estruturar uma sociedade violenta, a estruturar a permissividade à violência. Ainda falta uma perspectiva mais integral do ponto de vista orçamentário sobre a questão da violência de gênero.”
Carmen Hein de Campos, advogada doutora em Ciências Criminais e consultora da CPMI-VCM.
Entre as falhas e violações detectadas no atendimento do Estado, especialistas comentam quatro problemas frequentes que precisam ser superados com urgência para evitar os feminicídios:
1) Inexistência e insuficiência dos serviços
Quanto mais o Estado se ausenta, é omisso, maior é a quantidade de violações de direitos.”
Marinalva Santana, coordenadora do grupo Matizes.
Para efetivar direitos é preciso que existam os serviços responsáveis por implementá-los. Uma das principais barreiras enfrentadas ainda hoje é a insuficiência dos serviços perante a demanda – seja pela alocação de recursos aquém do necessário nos serviços existentes, seja pela necessidade de criação de mais serviços especializados no atendimento a mulheres em situação de violência no extenso território nacional, sobretudo nas pequenas e médias cidades [Saiba mais: Avanços legislativos X insuficiência dos serviços para efetivar direitos].
No feminicídio praticado por ex ou parceiro, um dos responsáveis, além do homem, é o Estado. É o serviço público, que infelizmente condena a uma morte já anunciada milhares de mulheres ao não estruturar uma equipe especializada capaz de dar segurança para a mulher e responsabilizar aquele homem.”
Sérgio Barbosa, filósofo e professor que atua com programas de responsabilização de homens autores de violência contra a mulher.
2) Banalização dos episódios anteriores de violência
Muitas vezes nas relações íntimas as agressões físicas e violências psicológicas sequer são reconhecidas por quem a pratica e por quem sofre como um crime previsto na Lei Maria da Penha, o que revela a dimensão e força de construções sociais que, ao naturalizar hierarquias, banalizam e legitimam a violência contra as mulheres.
O que vemos muito no dia a dia é que a agressão começa com a violência psicológica, com a tentativa de controle, com o ‘não faz isso, não faz aquilo’. Quando essa ordem não é obedecida, passa para a violência moral, para os xingamentos e também para as lesões que são consideradas mais ‘leves’ pelas pessoas e que já indicam um agravamento do risco – um empurrão, puxão de cabelo, segurar forte nos braços. São episódios que muita gente considera como parte de um contexto de discussão acalorada dentro de um relacionamento – parece que só se reconhece a agressão física quando ela deixa uma marca muito evidente, como os socos, chutes e pontapés. Ou quando aparecem os crimes de ameaça de morte, que muitas vezes é feita com algum objeto nas mãos – um pedaço de pau, uma faca. São muito frequentes também as tentativas de enforcamento com as próprias mãos. O risco vai aumentando e as vítimas não se percebem em uma situação potencial de tentativa de feminicídio e, às vezes, os serviços também não reconhecem o risco que ela corre. Então, é preciso dizer para toda a sociedade que o feminicídio é um crime muito grave e que as violências contra a mulher, infelizmente, ainda são muito banalizadas e isso coloca vidas em risco.”
Teresa Cristina Cabral Santana Rodrigues dos Santos, Juíza de Direito, titular da 2ª Vara Criminal da Comarca de Santo André/SP.
3) Revitimização e violência institucional
Além de banalizar as violências anteriores ao feminicídio, a falta de qualificação dos profissionais para compreender as características e complexidades da violência contra as mulheres e das desigualdades de gênero gera, muitas vezes, situações de revitimização – ou seja, a mulher sofre outra violência ao denunciar a agressão sofrida. Ao ser obrigada a repetir inúmeras vezes o relato sobre a violência, ao não ser devidamente acolhida por profissionais que reproduzem estereótipos discriminatórios nos próprios serviços, ela se torna vítima também da violência institucional, aquela perpetrada pelos próprios agentes públicos no exercício de suas funções [Saiba mais: Obstáculos culturais: sexismo e racismo institucional].
4) Culpabilização da mulher legitima a violência e favorece impunidade
A inversão da culpa, com a consequente responsabilização da mulher pela violência sofrida, é um grande obstáculo não apenas para a devida punição do autor da agressão, como também para garantir que a mulher irá receber apoio e proteção para romper o ciclo da violência. Ao lado da banalização e da revitimização, a culpabilização compõe o grupo de práticas e mentalidades a serem superadas pelo Estado e pela sociedade.
De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), quando o Estado não responsabiliza os autores de atos de violência e a sociedade tolera tal violência, a impunidade não só estimula novos abusos, como também transmite a mensagem de que a violência contra as mulheres é aceitável ou normal em algum nível. [saiba mais].
Precisamos pensar não só na punição, mas no poder de comunicação de uma sentença. É importante que as imagens da vítima e do autor não sejam cristalizadas com base em estereótipos de gênero, mas sim que haja uma preocupação com o contexto da violência, não só da trajetória individual, mas o contexto social em que essa mulher se insere, marcado pela desigualdade.”
Fernanda Matsuda, advogada e socióloga; consultora Jurídica do Portal Compromisso e Atitude.
O Estado é responsável pela continuidade dos feminicídios quando reforça a naturalização do uso da violência contra o corpo feminino pela sociedade e inclusive pelos próprios autores das agressões que, muitas vezes, se sentem autorizados a violar, violentar e matar contando com a impunidade ou com a ‘legitimidade’ do crime.
O feminicídio tem raízes na cultura, em normas patriarcais que se sustentam pelo controle do corpo feminino e pela hierarquia que outorga uma ‘capacidade de punir’ as mulheres. Esse é um aspecto muito importante e é fundamental refletirmos que para o feminicídio também concorrem o silêncio, a omissão e a negligência por parte das autoridades que devem agir.”
Silvia Chakian de Toledo Santo, Promotora de Justiça do Ministério Público Estadual de São Paulo.
Para além das violações individuais, a falta de contextualização e o não reconhecimento da violência contra as mulheres como um problema social invisibilizam as características específicas e a dimensão do problema. Em outras palavras, entender as raízes culturais e o modo como as violências se perpetuam até o assassinato é importante para que os serviços do Estado identifiquem os pontos em que a política pública precisa ser reforçada para garantir a proteção da mulher e a responsabilização de quem pratica violências.
As autoridades estatais têm obrigação de coletar os elementos básicos de prova e realizar uma investigação imparcial, séria e efetiva por todos os meios disponíveis. Nesse sentido, a perspectiva de desigualdades de gênero pode garantir uma resposta adequada do Estado, com duas finalidades: dar respostas a um caso particular e, ao mesmo tempo, prevenir a perpetuação do feminicídio.”
Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres no Brasil
O Estado pode ser responsabilizado por vidas interrompidas
Nos casos em que a mulher buscou os meios legais previstos em lei para sua proteção e ainda assim veio a ser assassinada é possível analisar o cabimento de ação indenizatória contra o Estado e demonstrar que objetivamente houve falha, por ação ou omissão, em proteger a vida da mulher – como em casos que há a demora injustificada na concessão de medidas de proteção, falhas na intimação do agressor sobre a medida, inexistência de formas de fiscalizar o cumprimento da ordem de proteção, quando a mulher não é devidamente notificada que o agressor saiu da prisão, entre outros casos.
Além de casos individuais, tanto o Ministério Público como a Defensoria Pública podem mover ações coletivas em face do poder público, judiciais ou extrajudiciais, a partir da reunião das informações de vários casos semelhantes e que apontam falhas sistêmicas do Estado na garantia dos direitos das mulheres em situação de violência, obrigando-os a implementar serviços ou melhorar a qualidade dos já existentes.
Tolerância social: invisibilidade mata
Violências sistêmicas contra as mulheres, que resultam inclusive em muitas mortes, são a manifestação extrema de diversas desigualdades historicamente construídas, que vigoram, com pequenas variações, nos campos social, político, cultural e econômico em sociedades marcadas por sistemas discriminatórios, como é o caso brasileiro.
Quem atua em casos de feminicídio narra diariamente essa naturalização: muitas vezes não existe um constrangimento ou até uma compreensão de que matar ou tentar matar uma mulher, ou praticar uma violência contra ela, não é correto. No contexto da relação intima de afeto, muitas vezes, pais, irmãos, namorados ou maridos entendem a violência quase como um ‘direito’seu. Ou seja, a construção social dos papéis de gênero é tão forte que os próprios autores assumem a autoria de um crime, mas ainda com aquele discurso de amor por trás e com uma total falta de compreensão de que aquilo não é aceitável. E isso reflete o machismo de forma extrema: que é chegar a um fim dessa cadeia de violência que as mulheres passam até a morte, sem que quem pratica isso sequer compreenda que não era um direito.”
Aline Yamamoto, ex-secretária adjunta de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres.
A construção de comportamentos legitimados socialmente para homens e mulheres cria e perpetua espaços para que as violências aconteçam sempre que uma pessoa não se encaixa nos padrões esperados. É importante frisar também que as desigualdades socialmente estabelecidas para os comportamentos “femininos” e “masculinos” são criadas na articulação com outras diferenças de raça, classe social, nacionalidade, idade.
Não por acaso, no Brasil, a taxa de assassinato de mulheres negras é superior a de brancas [Saiba mais: mulheres negras morrem mais]. As diversas discriminações constroem o caminho do desvalor da vida, forjando grupos cujas violências e assassinatos são vistos pela sociedade e pelo Estado como um problema menos importante – e até mesmo ‘tolerável’.
No caso da prostituição também pode aparecer o menosprezo de um modo muito forte. Mesmo que a mulher exerça a prostituição por opção, ela é estigmatizada, e por isso fica muito vulnerável ao feminicídio.”
Ela Wiecko, vice-procuradora-geral da República.
A importância de evidenciar as construções desiguais e discriminatórias que concorrem para as elevadas taxas de feminicídio é mostrar, ao mesmo tempo, que normas sociais mudam historicamente e, portanto, podem e devem ser questionadas.
O processo de superação da desigualdade de poder entre homens e mulheres caminha a passos lentos, fato que reflete diretamente nos altos índices de assassinatos de mulheres no Brasil que hoje tem uma das taxas mais altas do mundo. É necessária uma profunda mudança de educação, de postura, enfim, de cultura no tratamento dispensado à mulher pela nossa sociedade.”
Marixa Fabiane Lopes Rodrigues, juíza de Direito do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
Como evitar: proteção e prevenção
Diante de um cenário de violências cotidianas e extremas contra as mulheres no país [veja alguns dados nacionais], o primeiro passo é efetivar amplamente os direitos já existentes, implementando serviços, replicando experiências exitosas, capacitações e recomendações que apontam caminhos mais eficazes de proteção imediata à vida das mulheres.
Diversas leis e dispositivos constitucionais nacionais, e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, apontam os deveres do Estado em punir, coibir e prevenir as violências que levam ao assassinato de mulheres e, assim, os feminicídios [Saiba mais: Direitos garantidos às mulheres que podem evitar o feminicídio].
Além dos deveres, existem ainda normas, recomendações e manuais que apontam caminhos para o cumprimento desses deveres e para a garantia de direitos de um modo integral. O Brasil foi, por exemplo, o primeiro país a adaptar o protocolo latino-americano para investigação dos assassinatos de mulheres por razões de gênero (ONU, 2014) para a sua realidade social, cultural, política e jurídica.
A adaptação resultou nas Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres – Feminicídios. O documento reúne elementos para aprimorar a resposta do Estado e aponta também os deveres do poder público e os direitos das vítimas, lembrando que o feminicídio é um crime evitável para o qual o Estado tem a responsabilidade de formular medidas de responsabilização, proteção, reparação e prevenção.
O Estado é corresponsável por esse homem praticar esse tipo de violência, porque esse Estado falhou na educação desse homem. E o Estado é responsável por essa mulher se manter em situação de violência, porque ele também falhou com essa mulher, não deu suporte para ela poder se empoderar e conseguir sair de um ciclo, buscar os serviços, questionar e acreditar. Hoje a única política do Estado que funciona é a política criminal. Uma mulher em situação de violência pode perder o emprego, porque, apesar de a Lei Maria da Penha garantir a ela estabilidade, isso não está regulamentado, ela não vai ter acesso a um benefício. Nem, por exemplo, a uma unidade habitacional, apesar de a lei garantir prioridade para ela. A legislação dá todas as ferramentas para que essa mulher consiga viver em paz e sem violência. Acontece que o Estado, entre todas as ferramentas que ele tem pra usar, ele escolhe apenas uma, que é a criminal. E aí, ao invés de abrir vaga em creche, abre vaga em presídios.”
Ana Rita Souza Prata, Defensora Pública do Estado de São Paulo e coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção dos Direitos da Mulher (NUDEM).
Nos casos em que os mecanismos de proteção falham, é importante ainda mapear onde estão os problemas, para que a falha não se repita. Nesse sentido, o reconhecimento do feminicídio é importante também para auxiliar na composição de um diagnóstico acurado da violência fatal contra as mulheres no Brasil para, assim, avançar em ações de prevenção.
Visibilizar e reconhecer as relações de poder desiguais que vulnerabilizam a condição feminina e o contexto discriminatório que permeia as violências é outro ponto essencial para evitar que elas se perpetuem até o extremo do assassinato.
O combate à impunidade é importante, mas é completamente insuficiente. É preciso investir na educação e na comunicação social; porque precisamos construir espaços de discussão da violência de gênero e de socialização para uma sociedade menos violenta – sem isso, não vamos conseguir mudar essa realidade.”
Izabel Solyszko Gomes, doutora em Serviço Social e docente na Universidade Externado de Colombia.
Garantia de direitos pode evitar o feminicídio
A partir de intensos debates e mobilizações nos últimos anos, o movimento de mulheres denunciou a desigualdade de gênero no campo dos direitos [Saiba mais: legado de leis discriminatórias] e obteve importantes conquistas legislativas no Brasil e em vários países no mundo.
No cenário internacional, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – mais conhecida como Convenção de Belém do Pará, de 1994, é considerada um marco no enfrentamento à violência contra as mulheres.
A Convenção define pela primeira vez a violência contra as mulheres como qualquer ação ou conduta baseada no gênero, que é uma categoria essencial para apontar desigualdades entre homens e mulheres e propor políticas que busquem equacionar essas desigualdades. A Convenção também coloca um princípio extremamente importante, que é: toda mulher tem direito a uma vida sem violência. Exige ainda que o Estado garanta essa vida sem violência. Demanda políticas públicas para isso e aponta diretrizes para essas políticas, visando promover mudanças socioculturais.”
Maria Amélia de Almeida Teles, bacharel em Direito e co-fundadora da União de Mulheres de São Paulo e do programa de Promotoras Legais Populares.
Adotada pela Assembleia Geral da OEA (Organização dos Estados Americanos) em 9 de junho de 1994, na cidade brasileira de Belém (PA), a Convenção exige dos Estados um compromisso efetivo na erradicação da violência de gênero a partir da criação de legislações específicas. Com isso, ao longo dos últimos 20 anos diversos países formularam suas próprias leis para coibir a violência contra as mulheres.
O Brasil ratificou a Convenção, que passou a vigorar no País a partir de 1996, e desde então mostrou avanços significativos no campo legislativo, como as alterações sobre crimes sexuais no Código Penal, a promulgação da Lei Maria da Penha para enfrentar a violência doméstica e familiar e a tipificação penal do feminicídio [Saiba mais: Cronologia dos direitos das mulheres].
O principal impacto da Convenção foi produzir mudanças legislativas. No caso do Brasil, foi feita uma lei específica sobre violência doméstica e foram feitas alterações no Código Penal.”
Leila Linhares Barsted, advogada, diretora da ONG CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação e representante do Brasil no MESECVI – Mecanismo de Acompanhamento da Convenção de Belém do Pará da OEA.
Confira abaixo os principais avanços legislativos no enfrentamento às violências que estão nas raízes de muitos feminicídios, comentados por especialistas entrevistadas para este Dossiê:
1) Lei Maria da Penha para coibir violência doméstica
Entre as propostas para evitar ‘mortes anunciadas’, uma recomendação é frequente: o engajamento das instituições públicas para efetivar plenamente a Lei Maria da Penha é fundamental, tanto para garantir proteção à vida das mulheres, no curto prazo, quanto para coibir o problema da violência doméstica e familiar por meio de ações de prevenção no longo prazo.
O processo de construção da Lei Maria da Penha teve início com a condenação do Estado brasileiro pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, em 2001, por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres e pelo não cumprimento da Convenção de Belém do Pará. O texto legal foi construído a partir de anos de debate entre organizações feministas, juristas, gestores de políticas públicas e parlamentares.
A Lei Maria da Penha é focada especialmente na violência doméstica e familiar baseada no gênero, contemplando a criação de mecanismos tanto para coibir os casos de violência quanto para sua prevenção. Ao reconhecer a situação de vulnerabilidade e de risco para as mulheres, a Lei define os mecanismos – e quem é responsável por aplicá-los – para prevenir a violência, proteger as mulheres agredidas e responsabilizar os agressores. Por tudo isso é considerada pela ONU uma das três legislações mais avançadas do mundo no enfrentamento à violência doméstica contra as mulheres.
A partir de sua promulgação, o debate sobre as desigualdades de gênero ganhou espaço nos campos do Direito e da Segurança Pública. A Lei foi determinante ainda para a criação de serviços especializados para o atendimento a mulheres em situação de violência – que hoje existem em maior número no Brasil, embora ainda sejam insuficientes para cobrir todo o território nacional [saiba mais].
Diante deste cenário, os operadores dos sistemas de Justiça e Segurança Pública e os movimentos de mulheres reivindicam a ampla efetivação da Lei Maria da Penha e a atualização da doutrina jurídica para inclusão das inovações introduzidas por esse marco legal.
Segundo a pesquisa Avaliando a Efetividade da Lei Maria da Penha (Ipea, 2015), a Lei conteve o crescimento em cerca de 10% da taxa de assassinatos de mulheres praticados nas residências das vítimas. Assim, o investimento na divulgação da Lei e na criação dos serviços e ações para efetivá-la é considerado urgente para evitar que as vidas de milhares de mulheres tornem-se estatísticas alarmantes.
A violência doméstica e familiar é crônica e o que salta aos nossos olhos é que precisamos trabalhar para efetivar a Lei Maria da Penha, e isso significa muito mais além da repressão. Precisamos urgentemente trabalhar na educação e na cultura, para que possamos dar outro salto, pensar em uma metodologia mais específica para crianças e adolescentes para intervir de forma mais efetiva nas escolas, que são reprodutoras de determinados aspectos de controle e de sexismo. As mulheres estão denunciando e pedindo ajuda, mas o Estado não está dando respostas na mesma medida da necessidade.”
Márcia Teixeira, promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia
Direitos assegurados pela Lei Maria da Penha nos casos de violência doméstica (física, psicológica, moral, patrimonial ou sexual):
– acolhida e escuta qualificada de todos os profissionais da rede de atendimento às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, sem pré-julgamentos, respeitando seu tempo de decisão sobre os próximos passos a seguir e sem culpabilização;
– medidas protetivas de urgência que podem consistir na proibição de aproximação do agressor;
– acesso prioritário a programas sociais, habitacionais e de emprego e renda;
– manutenção do vínculo profissional por até seis meses de afastamento do trabalho;
– escolta policial para retirar bens da residência, se necessário;
– atendimento de saúde e psicossocial especializado e continuado, se necessário;
– registro do boletim de ocorrência;
– registro detalhado do relato que fizer em qualquer órgão público (inclusive para evitar a revitimização com a necessidade de contar a história repetidas vezes);
– notificação formal da violência sofrida ao Ministério da Saúde, para fins de produção de dados estatísticos e políticas públicas;
– atendimento judiciário na região de seu domicílio ou residência, do lugar onde ocorreu a agressão (se este for diferente) ou domicílio do agressor;
– assistência jurídica da Defensoria Pública, independentemente de seu nível de renda;
– acesso a casa abrigo e outros serviços de acolhimento especializado (DEAM, Defensoria Pública, centros de referência etc.);
– informações sobre direitos e todos os serviços disponíveis.
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2) Atendimento emergencial, integral e multidisciplinar a vítimas de violência sexual
Considerada por especialistas como a mais grave violência depois do assassinato, o estupro ainda vitima milhares de mulheres cotidianamente no país e, com frequência, a violência sexual é seguida pelo feminicídio.
Segundo o 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2014, foram registrados 47.643 casos de estupro em todo o país. O dado representa um estupro a cada 11 minutos.
Desde 2009, com a alteração no Código Penal, além da conjunção carnal, os atos libidinosos e atentados violentos ao pudor também passaram a configurar crime de estupro.
Segundo a Lei 12.845/2013, tanto no caso de estupro conjugal como por desconhecido, a mulher tem direito a:
– atendimento psicossocial especializado;
– diagnóstico e tratamento das lesões físicas no aparelho genital e nas demais áreas afetadas;
– registro da ocorrência facilitado e encaminhamento ao exame de corpo de delito;
– profilaxia de gravidez e contra DSTs;
– coleta de material para realização do exame de HIV;
– preservação do material que possa servir de prova judicial contra o agressor (sob responsabilidade do médico e da unidade de saúde ou IML).
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Especialistas lembram que, além de oferecer todo apoio necessário à mulher, é preciso combater a impunidade para evitar a perpetuação dos crimes sexuais.
Para diminuir o número de estupros, a medida de saúde não resolve. O estuprador que não é punido vai estuprar de novo, além de poder encorajar outros a praticar essa violência perante a impunidade.”
Avelar de Holanda Barbosa, supervisor de Emergência Obstétrica do Hospital Materno-Infantil de Brasília (HMIB).
Nesse sentido, é preciso fortalecer os serviços e respostas das instituições para mostrar para a sociedade que o Estado está do lado da vítima, para que realize a denúncia e receba o acompanhamento médico e psicológico necessário e também para que o agressor seja punido e impedido, assim, de repetir a violência sexual com a mesma pessoa ou fazer novas vítimas.
A baixa punibilidade é um padrão, como consta de relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH); há pouca utilização do sistema de justiça pelas mulheres vítimas, que não confiam nas instâncias judiciais, o que acaba por reforçar a insegurança. Perpetua-se, assim, a naturalização da violência sexual contra as mulheres. A subnotificação dos crimes sexuais é uma realidade mundial.”
Kenarik Boujikian, desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo e cofundadora da Associação Juízes para a Democracia.
3) Tráfico de mulheres
A conjugação da discriminação de gênero com outros fatores, como a desigualdade social, o desemprego, o déficit na saúde, a discriminação racial, a invisibilidade do trabalho feminino e a própria violência doméstica, torna muitas mulheres vítimas do tráfico de pessoas – outra forma de violência apontada como motivadora de feminicídios.
De acordo com o 2º Relatório de Tráfico de Pessoas no Brasil, em 2012, em 80% dos 130 casos notificados as vítimas eram mulheres; 59% eram negras. Na distribuição por idade, 65% tinham até 29 anos, das quais metade tinha de 10 a 19 anos.
A forma como o Brasil desenvolveu seu turismo, e que segue até hoje, coloca as mulheres seminuas, apresentadas como ‘atração turística’ – esse é nosso cartão postal. Isso faz com que muitos enxerguem a mulher brasileira como mercadoria. Além disso, sabemos que muitas delas saem de casa para se livrar da violência doméstica, não só praticada pelo marido ou companheiro, mas muitas vezes também praticada por familiares. A promessa de quem faz esse recrutamento é sempre de saída para uma vida melhor.”
Maria Jaqueline de Souza Leite, socióloga, em entrevista ao Portal Compromisso e Atitude.
Nesse cenário e dadas as dificuldades de processar a violência contra as mulheres quando a vítima de tráfico não está no país de origem, a especialista destaca a importância dos referenciais estabelecidos no Protocolo de Palermo – o instrumento legal internacional que trata do tráfico de pessoas, em especial de mulheres e crianças, elaborado em 2000 e ratificado pelo Brasil em 2004.
No protocolo, o conceito para tráfico de pessoas é mais amplo que o previsto atualmente no Código Penal brasileiro, que tipifica o tráfico somente para fins de exploração sexual, não considerando outras formas que estão contempladas no tratado internacional, como o trabalho doméstico forçado. No entanto, um projeto de lei [Projeto de Lei do Senado 479/2012] proposto pela CPI do Tráfico Nacional e Internacional de Pessoas no Brasil, realizada em 2012, já foi aprovado pela Câmara e Senado, podendo, assim, deixar o texto do Código Penal mais próximo ao Protocolo de Palermo em breve.
Tráfico de pessoas segundo o Protocolo de Palermo: a expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.
4) Violências não tipificadas e negação de direitos
Além das violências mais conhecidamente associadas ao feminicídio, como a doméstica e sexual e o tráfico de mulheres, outras violências cotidianas ainda não contam com legislações específicas para garantir direitos, mas têm sido cada vez mais denunciadas por ativistas como associadas a casos de feminicídio.
Entre os tipos de violência que ainda não têm previsão legal, especialistas destacam: a violência obstétrica praticada por profissionais da saúde, antes, durante ou após o parto, ou em caso de aborto, em desrespeito a sua autonomia e capacidade de decidir sobre seu corpo e sexualidade; a violência política praticada para impedir ou cercear sua participação política em igualdade com os homens; a violência institucional que ocorre por ação ou omissão de agentes do Estado que, no exercício de cargo ou função, reproduzem os estereótipos e discriminações de gênero; e a violência promovida por diferentes meios de comunicação, como mídia, imprensa e redes sociais. E temos que ter em vista que neste conjunto de mulheres há sempre especificidades que precisam ser consideradas, não só no momento de aplicar a lei, mas também ao elaborá-las. Diferenças de cor, raça e etnia, idade, origem, orientação sexual, identidade de gênero, dentre outras, podem requerer proteções diferenciadas e específicas.”
Aline Yamamoto, criminologista e ex-secretária adjunta de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da SPM-PR, em artigo.
A acumulação dessas múltiplas discriminações, violações ou negação de direitos é fator que abre caminho para as violências e para o desvalor da vida das mulheres.
Contextos, circunstâncias e formas do feminicídio para efetivar direitos antes do desfecho fatal
De acordo com as Diretrizes Nacionais sobre os feminicídios, essas mortes podem ser definidas por características relacionadas aos contextos e as circunstâncias em que ocorrem, e ainda segundo as formas de violência empregadas. Conhecer essas características é essencial para efetivar direitos e ações de prevenção antes do desfecho fatal.
Os contextos envolvem o ambiente privado e se referem à violência doméstica e familiar, conforme definida na Lei 11.340/2006, mas não se restringem a esses espaços, podendo ocorrer também nos espaços públicos, inclusive em áreas dominadas pelo crime organizado (narcotráfico, quadrilhas ou máfias).
As circunstâncias incluem a violência nas relações familiares, mas também aquelas situações de maior vulnerabilidade, como a exploração sexual, o tráfico de mulheres e a presença do crime organizado.
As formas de violência geralmente envolvem a imposição de um sofrimento adicional para as vítimas, tais como a violência sexual, o cárcere privado, o emprego de tortura, o uso de meio cruel ou degradante, a mutilação ou desfiguração das partes do corpo associadas à feminilidade e ao feminino (rosto, seios, ventre, órgãos sexuais).
Tipificação penal do feminicídio: alcances e limites
O crime de feminicídio está previsto como circunstância qualificadora do delito de homicídio no Código Penal brasileiro desde a entrada em vigor da Lei nº 13.104/2015.
A preocupação em criar uma legislação específica no Brasil para punir e coibir o feminicídio segue uma tendência crescente entre organizações internacionais e que se constatou na América Latina, onde outros 15 países [confira] já criaram leis próprias ou com dispositivos para lidar com o assassinato de mulheres.
A Lei do Feminicídio é uma conquista do movimento de mulheres brasileiras. Um dos aspectos fundamentais dessa tipificação, sobretudo, foi o debate social, público, político e jurídico da lei. Certamente, os debates foram muito ricos e isso já é um passo a favor do enfrentamento, na medida em que se visibiliza que há um problema muito sério no país: estão matando mulheres. A conquista foi justamente o reconhecimento de que esse é um tema muito importante e que o assassinato de mulheres não é aceitável em uma democracia, pois é a violação de um dos direitos mais fundamentais do ser humano, o direito à vida.”
Ana Garita, criminologista da Costa Rica.
Neste contexto, a tipificação representa um reconhecimento de que o assassinato de mulheres tem características próprias e está, na maior parte das vezes, associado a contextos discriminatórios – o que ficou redigido na lei como o homicídio “cometido por razões da condição de sexo feminino”, isto é, envolve “violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.
É a condição de discriminação que leva à necessidade de um tipo penal específico. O homicídio não é suficiente para dar conta da discriminação contra as mulheres, que se manifesta de forma violenta, e inclusive fatal, muito facilmente.”
Janaína Lima Penalva da Silva, pesquisadora e professora de Direito Constitucional na UnB.
No Brasil, apesar de tanto a Convenção de Belém do Pará (art. 1º) quanto a Lei Maria da Penha (art. 5º) incluírem o reconhecimento das desigualdades de gênero como geradoras de violências e discriminações, a palavra ‘gênero’ acabou sendo retirada da redação final da Lei do Feminicídio [saiba mais: Feminicídio no Código Penal brasileiro] no momento de sua aprovação no Congresso Nacional – o que foi bastante criticado por profissionais e ativistas que atuam no enfrentamento à violência contra as mulheres.
Ainda assim, a tipificação é vista por especialistas como uma oportunidade para tirar o problema da invisibilidade e, neste sentido, sua aplicação precisa estar associada à perspectiva de gênero.
O gênero nos ajuda a olhar para as questões da igualdade, da dignidade e do respeito às diferenças e a aprender a conviver com elas para ter um mundo melhor. Se não aprendermos a compreender o que isso significa e a reconhecer que há diversidade, simplesmente não conseguiremos acabar com a violência e com o feminicídio, que é um produto dessa intolerância, dessa falta de capacidade de se relacionar e respeitar o outro.”
Teresa Cristina Cabral Santana Rodrigues dos Santos, juíza de direito, titular da 2ª Vara Criminal da Comarca de Santo André/SP.
Impactos esperados com a tipificação penal:
1) Dar visibilidade para a dimensão e os contextos dos feminicídios e identificar entraves para evitar ‘mortes anunciadas’
O registro dos assassinatos como um novo tipo penal irá produzir dados para dimensionar a violência contra as mulheres quando se chega ao desfecho extremo do assassinato, permitindo assim o aprimoramento das políticas públicas para coibi-la e preveni-la.
A tipificação em si não é uma medida de prevenção. Ela tem por objetivo nominar uma conduta existente e que não é conhecida por este nome, ou seja, tirar da conceituação genérica de homicídio para um tipo específico de crime cometido contra mulheres com forte conteúdo de gênero. A intenção é tirar esse crime da invisibilidade.”
Carmen Hein de Campos, advogada doutora em Ciências Criminais, foi consultora da CPMI-VCM.
2) Proporcionar um instrumento para coibir a impunidade, ao refutar teses que invisibilizam o contexto discriminatório
O uso do tipo penal é visto ainda como uma oportunidade para que o feminicídio não seja minimizado no sistema de justiça e na imprensa por meio de classificações como ‘crime passional’, cometido por ‘amor’ ou ‘ciúmes’, em que a motivação sexista, como o sentimento de posse sobre a mulher, fica invisibilizada. Também a alegação de ‘homicídio privilegiado’ – quando o autor age “sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima”.
Teses jurídicas como estas promovem a inversão da responsabilização pela violência praticada e, assim, alimentam a impunidade e, consequentemente, a tolerância social ao assassinato de mulheres. Afetam ainda a memória da vítima e revitimizam familiares e amigos, já que para deslocar a culpa para a vítima, muitas vezes são mobilizadas pesadas acusações a uma mulher que não está mais presente para se defender e que não poderiam ser usadas para justificar um crime hediondo.
“Precisamos pensar não só na punição, mas no poder de comunicação de uma sentença. É importante que as imagens da vítima e do autor não sejam cristalizadas com base em estereótipos de gênero, mas sim que haja uma preocupação com o contexto da violência, não só da trajetória individual, mas o contexto social em que essa mulher se insere, marcado pela desigualdade.”
Fernanda Emy Matsuda, advogada, socióloga e consultora jurídica do Portal Compromisso e Atitude.
3) Fomentar um processo de mudanças de práticas no processamento e julgamento dos casos de feminicídio
Diante do legado de legislações e práticas discriminatórias contra as mulheres no Sistema de Justiça, a adoção de uma lei específica pode fomentar um processo de atualização por parte dos diversos órgãos.
A criação de uma tipologia no Código Penal tem o potencial de ampliar o debate sobre a nova legislação entre os operadores do Direitos, que, assim, podem procurar se informar e refletir sobre o tema. A tipificação, aliada ao trabalho de adaptação das Diretrizes Nacionais sobre feminicídio e de cursos de formação disponibilizado nos estados, cria um ambiente de oportunidades para a mudança da práxis nestes processos – que, entretanto, só se concretizarão se o texto legal for refletido em ações práticas nas instituições.
As diretrizes são fruto do processo de adaptação do Modelo de Protocolo Latino-Americano de Investigação das Mortes Violentas de Mulheres por Razões de Gênero – Femicídio/Feminicídio à realidade social, cultural, política e jurídica do Brasil e se somam à tipificação penal do feminicídio entre os esforços para visibilizar, dimensionar e conhecer melhor a violência fatal contra as mulheres, evidenciando suas raízes discriminatórias.
Para ter maior efetividade, o documento deve ser adaptado aos diversos contextos em que vivem mulheres no Brasil e, por isso, a ONU Mulheres tem fomentado um processo piloto, iniciado em setembro de 2015, em cinco estados brasileiros: Maranhão, Mato Grosso do Sul, Piauí, Rio de Janeiro e Santa Catarina. O trabalho de implementação está sendo coordenado pelos organismos estaduais de políticas para mulheres, em conjunto com o Grupo de Trabalho Interinstitucional local, composto por instituições das áreas de segurança pública e justiça criminal.
Limites da tipificação do feminicídio
Apesar de ser um marco importante, a tipificação do feminicídio no Código Penal só terá os efeitos esperados se implementada a perspectiva de gênero desde os primeiros momentos da notícia de um crime, conforme apontam as Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres- Feminicídios (ONU Mulheres, 2016).
Uma investigação, processo e julgamento que respeitem a dignidade e a privacidade da mulher vítima de feminicídio – consumado ou tentado –, que não a revitimizem e que ofereçam uma resposta satisfatória pelo Estado sobre o reconhecimento da gravidade do fato, em respeito a seu direito à memória e à verdade, fazem parte do direito à justiça para a vítima, o que reverbera para toda a sociedade.”
Aparecida Gonçalves , ativista do movimento de mulheres especialista em gênero e violência contra as mulheres, foi secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres entre 2003 e 2015.
Além disso, especialistas lembram que o mais importante a partir da visibilização do problema é implementar ações preventivas que impeçam as mortes anunciadas antes que aconteçam.
Nenhuma lei penal, por si só, é capaz de alterar uma cultura milenar de desigualdade e discriminação contra as mulheres, causa estruturante das diversas formas de violência que nos atingem cotidianamente. Muito antes e para além da violência, a luta é pela desconstrução de formas estruturantes de desigualdade na nossa sociedade, aquelas baseadas no gênero e raça. Enfrentar essa realidade exige um esforço diuturno.”
Aline Yamamoto, criminologista e ex-secretária adjunta de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da SPM-PR, em artigo.
Neste sentido, a resposta aos feminicídios não pode ser apenas penal – as ações em prol da efetivação dos direitos das mulheres e da promoção da igualdade de gênero são urgentes e profundamente necessárias para evitar a perpetuação de mortes consideradas evitáveis e que carregam tantos componentes discriminatórios [saiba mais: Como e por que morrem as mulheres?].
Quando acontece um feminicídio a gente tem que se perguntar: ‘Cadê a patrulha para ir à casa da mulher? Cadê a possibilidade de ter assistente psicossocial, um programa de abrigamento eficaz, ter direitos? Há muitas outras frentes além da resposta penal. São frentes que podem efetivamente salvar vidas, mas que têm um custo e que demandam políticas públicas. Enquanto que, para criar lei penal, não é preciso investimento.”
Maíra Cardoso Zapater, coordenadora-adjunta do Núcleo de Pesquisas do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena da FGV – Direito.
Garantir direitos quando o Estado já falhou em proteger a vida
Um outro aspecto criticado por alguns especialistas é a ausência de qualquer política reparatória voltada para as famílias das mulheres assassinadas no Brasil.
O assassinato é divulgado pela mídia, muitas vezes sob um julgamento moral em que essas mulheres já são condenadas. É aquela ideia de que alguma coisa elas fizeram para provocar. ‘Será que ela era prostituta? Será que ela estava traindo o homem? O que ela fez pra chegar a esse ponto?’ Então, as famílias, parentes e pessoas próximas da vítima já são constrangidas com a própria divulgação da notícia. Depois elas vão percorrer um caminho inseguro, difícil, bastante tortuoso para chegar à justiça. Você enfrentar um Tribunal do Júri [saiba mais], onde de novo costuma haver um julgamento moral. E daí em diante não se conta mais a história. O fato morre aí, o assassino é condenado ou não, vai preso ou não. Mas depois, se a mulher morreu, tem a desestruturação de uma família, se tem crianças, essas crianças estão órfãs, para onde foram elas? O que aconteceu depois?”
Maria Amélia de Almeida Teles, bacharel em Direito e co-fundadora da União de Mulheres de São Paulo e do programa de Promotoras Legais Populares.
Neste cenário em que a revitimização é um desafio mesmo nos casos do crime contra a vida, é preciso lembrar que as vítimas diretas de feminicídio, tentado ou consumado, e as vítimas indiretas – os familiares ou dependentes – devem ter garantidos seus direitos à Justiça, à memória e à verdade.
Também é dever do Estado garantir os direitos à informação, assistência, proteção e reparação às vítimas. São direitos que podem ser cobrados pela população e, portanto, devem ser divulgados pela imprensa e efetivados pelo sistema de justiça.
As vítimas sobreviventes e as vítimas indiretas – familiares e dependentes – devem ser chamadas a participar ativamente do processo, com o devido cuidado para que não se reproduzam discriminações e estereótipos de gênero. Cabe reparação justa e eficaz às vítimas sobre os danos materiais, devendo-se ainda pensar nos impactos causados quando há filhos e dependentes. Pelos danos morais, é importante que não apenas a reparação financeira seja considerada, mas também a dimensão relativa à comunicação, por parte das instituições do Estado, de que o feminicídio não pode ser tolerado.”
Aparecida Gonçalves , ativista do movimento de mulheres especialista em gênero e violência contra as mulheres, foi secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres entre 2003 e 2015.
Para preservar estes direitos, a vítima sobrevivente pode contar com um representante no processo criminal, que pode ser um advogado ou um defensor público, caso seja necessário o atendimento gratuito. Além disso, o Ministério Público pode e deve cobrar também a responsabilidade do Estado nos feminicídios e a efetivação destes direitos.
Uma recomendação é buscar a reparação durante o próprio processo criminal. Para muitas vítimas sobreviventes, esse valor mínimo que pode ser garantido na vara criminal é uma questão de sobrevivência – o que não elimina a possibilidade de complementar o valor, se não for satisfatório, na esfera cível.
Estou acompanhando um caso do tribunal do júri de uma moça muito nova, que levou várias facadas do namorado e ficou tetraplégica, em uma situação de dependência, de mobilidade muito comprometida. E ela já vivia em uma situação de vulnerabilidade social, mas que se agravou ainda mais. É uma luta tão grande para conseguir os serviços do Estado de que ela precisa. Ela precisa comprar fraldas de adulto, alimento e absorventes, necessita de assistência psicológica e atendimento no sistema de saúde e de transporte para ir aos serviços. E é impressionante a dificuldade, porque o Estado e o município não estão suficientemente aparelhados para atender esses casos. Então, tanto no Ministério Público quanto em outras instituições, é importante considerar que a punição de quem cometeu esse crime bárbaro é fundamental, mas que é preciso ter esse outro olhar sobre o que vai acontecer depois, trabalhar muito para uma mudança de perspectiva que coloque a vítima no centro.”
Silvia Chakian de Toledo Santos , Promotora de Justiça e Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (GEVID) do Ministério Público Estadual de São Paulo.
É importante lembrar que as vítimas sobreviventes podem ficar com sequelas físicas gravíssimas, como aconteceu com a própria Maria da Penha, que não somente podem impossibilitá-las de retomar suas atividades profissionais e, assim, de garantir seu sustento e de seus dependentes, como também podem gerar despesas de cuidado e saúde permanentes. Assim, é fundamental que profissionais do sistema de justiça estejam atentos para orientar as mulheres sobre seus direitos e entrar com ações cíveis reparatórias, seja contra o agressor, seja contra o próprio Estado, quando for o caso.
As Diretrizes Nacionais reúnem informações e orientações para que sejam garantidos os direitos em casos de feminicídio: conheça aqui.
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