Ficção científica esperançosa traz Amy Adams no papel de linguista convocada para se comunicar com alienígenas estacionados na Terra
por Virgílio Souza
25/11/2016
Desde que foi lançado nos festivais de Veneza e Toronto, no início de setembro, “A Chegada” tem sido recebido por toda parte com grande entusiasmo. A empolgação diante do filme é compreensível. Esse é o trabalho mais maduro do diretor Denis Villeneuve, que havia conquistado o respaldo da indústria e a admiração do público nos últimos anos realizando longas como “Incêndios”, “Os Suspeitos” e “Sicario: Terra de Ninguém” — também será ele o responsável por comandar o aguardado “Blade Runner 2049”.
Diversas características desse novo projeto sinalizam uma evolução na trajetória do cineasta. Revelam, acima de tudo, que ele parece ter encontrado um material que se beneficia em maior grau de suas principais virtudes e ainda ajuda a disfarçar alguns de seus defeitos mais corriqueiros. A relação entre seu “O Homem Duplicado” e o livro original de José Saramago, por exemplo, não era tão harmoniosa. Agora, saem de cena a exploração da tensão e da violência, que permeavam sua obra nos últimos anos, dando lugar a uma ficção científica com pretensões pacifistas e uma bússola moral bem mais ajustada.
Quando doze naves estacionam em pontos aparentemente aleatórios da Terra, a professora e linguista Louise Banks (Amy Adams) é convocada pelo coronel Weber (Forest Whitaker) para traduzir as mensagens dos alienígenas na tentativa de estabelecer contato. Inserida em um ambiente predominantemente masculino, a personagem desenvolve ideias que Villeneuve já ensaiava em “Polytechnique”, ainda na fase canadense de sua carreira.
Desta vez, no entanto, a misoginia que ela enfrenta surge menos escancarada, ganhando forma em frases passageiras e pequenas interrogações deixadas pela trama. Por que o cientista Ian (Jeremy Renner), que tão pouco tem a fazer, como ele próprio reconhece, é tratado como chefe estando ao lado da verdadeira especialista no assunto? Por que, sobretudo no início da missão, os superiores insistem em não escutá-la? “A Chegada” não oferece diretamente essas respostas, mas as mantém facilmente alcançáveis, suspensas no ar.
Mais do que simbolizar uma força feminina, Louise é quem conduz a comunicação entre terrestres e extraterrestres e abre espaço para as discussões em que o filme efetivamente se concentra. A forma como Adams se posiciona no papel principal é fundamental para o processo. Sua voz soa serena e confiante no diálogo, o caminho escolhido para essa interação entre povos. No entanto, como se estivesse presa a algo que ainda não compreende por completo, ela consegue transparecer angústia e melancolia nas várias ocasiões em que o longa exige, frequentemente a enquadrando em primeiro plano.
MAIS DO QUE SIMBOLIZAR UMA FORÇA FEMININA, LOUISE É QUEM CONDUZ AS DISCUSSÕES EM QUE O FILME EFETIVAMENTE SE CONCENTRA
Acompanhar o desenrolar paciente de sua investigação é o exercício central do filme, e muito disso tem relação com o roteiro de Eric Heisserer (de “A Coisa”, de 2011). “Story of Your Life”, o conto original de Ted Chiang, se divide em dois núcleos: família e trabalho. Louise narra, de um lado, as lembranças do marido e da filha Hannah e, de outro, o exercício diário de dialogar com os alienígenas. Não há grande mistério sobre a cronologia dos fatos — os próprios tempos verbais usados a denunciam. É na transposição literatura-cinema que se faz necessário um impulso mais forte, quase místico, para relacionar esse segmento familiar ao temor da invasão do planeta.
A adaptação até consegue criar algum senso de urgência ao aproximar a ameaça das populações locais, apresentando noticiários de televisão e oferecendo maior participação aos militares que pressionam a especialista. De todo modo, o peso dramático se concentra em suas memórias. O filme mantém as tramas intercaladas, mas omite personagens e reduz interações dessas lembranças, apresentando-as como reflexos de um trauma ou sequências de um sonho.
ACOMPANHAR O DESENROLAR PACIENTE DA INVESTIGAÇÃO É O EXERCÍCIO CENTRAL DE “A CHEGADA”
Nesse sentido, é incômodo que Villeneuve seja tão pouco imaginativo para tratar de aspectos que custam tanto à narrativa (a infância, o casamento, a doença). Seu olhar para relações afetivas nunca foi exatamente sutil ou especialmente brilhante, e as montagens retratando o crescimento de Hannah não colaboram para mudar essa impressão. Ainda, é estranho que a trama rejeite as noções de “início” e “fim” logo nos primeiros segundos de projeção, mas insista em fazer conexões tão esquemáticas entre passado, presente e futuro, operando seus retornos no tempo como flashbacks convencionais para manter certo suspense.
Quando se volta para outros interesses, sem procurar justificativas para pesar a mão e amarrar a trama, o diretor encontra melhores resultados. Mesmo quando busca referências nos exemplares mais grandiloquentes do gênero, a relação com os extraterrestres é encarada com discrição e sobriedade. Dinâmicas complexas operam aqui: ao mesmo tempo em que sentimos que é preciso ver para crer que eles existem, parece inegável que conhecer e temer caminham juntos.
Como a protagonista, nós ouvimos os objetos e recebemos sinais de sua presença antes de vê-los, o que agrava a ansiedade pelo contato visual e, finalmente, pelo contato físico. “A Chegada” elenca uma série de imagens emblemáticas para construir esse fascínio pelo desconhecido — a primeira aparição da concha que paira sobre Montana, nos Estados Unidos, é a mais impressionante tanto em termos de escala quanto pelo impacto que causa, um misto genuíno de curiosidade e temor.
“A CHEGADA” ELENCA UMA SÉRIE DE IMAGENS EMBLEMÁTICAS PARA CONSTRUIR NOSSO FASCÍNIO PELO DESCONHECIDO
A partir do momento em que humanos são levados a tomar decisões, surgem obstáculos inevitáveis na comunicação. Embora certas metáforas sejam menos inspiradas, como quando a política de interesses próprios leva os humanos à desconexão literal de seus computadores, a maior parte das soluções tomadas é inteligente e revela uma direção bastante sofisticada.
Vale notar, por exemplo, que a primeira conversa entre Louise e Ian ocorre dentro de um helicóptero em pleno voo, via rádio, com o som abafado; ou que um dos efeitos colaterais da imunização é um pequeno zumbido nos ouvidos. Detalhes como esses, que indicam um comentário de fundo sobre a individualidade, tornam o desenvolvimento do longa mais dinâmico, evitando transformar em descrição o que é apenas sensação. Ainda que pareça menos manipulador do que seus colegas (e do que ele mesmo, em outras ocasiões), contudo, Villeneuve derrapa algumas vezes quando retorna ao seu cinema de controle e tenta explicar até o que não precisa ou tem explicação, especialmente no ato final.
ALGUNS DOS MELHORES MOMENTOS DO FILME DEPENDEM DA PROGRESSÃO DE TEMPO CUIDADOSA, ÀS VEZES LENTA
Não significa que os segmentos em que o longa explora seus conceitos sejam ruins. Ao contrário, o filme encontra seu ponto mais confortável quando se prende a esse universo particular, aos termos científicos e ao aprendizado de Louise, Abbott e Costello. Os ensinamentos sobre linguagem, pensamento e comportamento parecem merecidos e são entregues na dose certa. Acima de tudo, não servem apenas para justificar ações ou mastigar a trama, mas para desenvolver ideias que terão consequências mais adiante.
Ao fim e ao cabo, alguns dos melhores momentos do filme dependem dessa progressão de tempo cuidadosa, às vezes lenta. Sem que a trama caminhasse dessa maneira, passo a passo, não teriam o mesmo impacto sequências como aquela em que a protagonista escreve pela primeira vez na barreira, avançando um pouco mais em direção ao desconhecido. Esse contato, feito sempre através de uma janela retangular, transforma Louise em uma espectadora como qualquer um de nós. Se o que buscamos é uma experiência imersiva, uma oportunidade de descoberta além dessa janela, “A Chegada” parece a escolha adequada — ainda que, como a própria protagonista afirma, seja preciso ter disposição para abraçar a jornada já conhecendo seus caminhos.
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