Na aprazível cidade de Maceió, ao lado do amigo de longas e profícuas jornadas, Zeno Veloso, e sua mulher, Lilian, estávamos nos preparando para conhecer o Museu de Arte Sacra Pierre Chalita, quando Zeno lança questão inquietante:
“Simão, tu que és sabido em matéria de sucessões, responde esta: sujeito faz um testamento, casado, com filhos, e deixa a parte disponível para sua esposa. O testamento tinha apenas esse objetivo e mais nada. Depois de alguns anos, o casamento naufraga e eles se divorciam. O testador morre sem ter revogado o testamento. Pergunto: o ex-cônjuge recebe a herança testada?”.
A questão é espinhosa e merece alguma reflexão. Efetivamente, o argumento pela manutenção da eficácia do testamento é forte. O testador não revogou o testamento, não lhe retirou a eficácia, o que poderia ter feito após o divórcio. Assim, o testador quereria ver a deixa produzir todos os efeitos após a sua morte. Não é essa, em regra, a orientação adequada. Para explicar a questão, precisamos partir de duas premissas.
1. Quebra da base objetiva e os Coronation Cases
A primeira premissa é que o testamento, assim como contrato, é negócio jurídico, e nesse ponto não há qualquer controvérsia. Não só Pontes de Miranda como Antonio Junqueira de Azevedo, cada um por meio de uma visão do instituto, concluem que o testamento é realmente negócio jurídico. Na linguagem ponteana, é a autorregulamentação da vontade da pessoa, que pretende certos efeitos e, por isso, se vale do testamento.
O testamento revela a vontade declarada do testador que não pretender ver, em sua sucessão, a vontade presumida pela lei (vocação hereditária, por exemplo) ser aplicada. O negócio jurídico causa mortis tem o condão de afastar a incidência das regras da sucessão legítima que são sucedâneas, supletivas à vontade do de cujus.
É por isso que o testamento, assim como o contrato, nasce da vontade, e seus efeitos decorrem da vontade. É fruto da autonomia privada[1].
A segunda premissa diz respeito à velha e repisada (muitas vezes malpisada) cláusula rebus sic stantibus[2]. A premissa dos contratos é que esses devem ser cumpridos, porque obrigam (pacta sunt servanda). Contudo, se alteradas as circunstâncias fáticas entre o momento da formação e da execução, o contrato pode se extinguir, resolver, pois o contrato só obriga estando assim as coisas, rebus sic stantibus.
A cláusula, fruto da contribuição dos canonistas ao Direito Civil, nasce na Idade Média e é retomada nos fins do século XIX, quando dos trabalhos de codificação do BGB. A partir dessa cláusula medieval, surgem modernas teorias: pressuposição, base do negócio (objetiva e subjetiva), bem como a teoria da imprevisão.
Essa última, de grande aplicação na França, tem seu ápice com a Lei Faillot,que permitia a revisão e extinção de todos os contratos após a 1ª Guerra Mundial. Tem por inspiração a decisão do Conselho de Estado a respeito do preço do gás fornecido em Bordeaux. A mais alta instância decisória administrativa permitiu que o preço fosse reajustado por força da guerra, evento imprevisível e que altera substancialmente o preço do gás.
A quebra da base objetiva do negócio teve sua aplicação nos famosos Coronation Cases quando da coroação do Rei Eduardo VII, na Inglaterra[3]. A coroação de um monarca é espetáculo de grande apreço entre os britânicos. Eduardo VII sucedera sua mãe, a Rainha Vitória[4], monarca mais longeva da História daquele povo, após 64 anos de reinado. Para assistir ao desfile de coroação (26 de junho de 1902), contratos de locação da varanda (balcony) foram celebrados entre os proprietários de imóveis (locadores) e pessoas que queriam uma visão privilegiada do cortejo (locatários).
Contudo, por motivos de saúde do Monarca[5], a coroação foi adiada para agosto daquele ano. O problema jurídico que surgiu foi saber se o pagamento do preço deveria ser pago pelos locatários. Para os locadores, não houve perda do objeto do contrato, nem sua impossibilidade, já que o uso das varandas prosseguia possível. Para os locatários, apesar de possível o uso era inútil, já que a coroação não ocorreria e desfile não haveria.
A solução jurídica adotada foi a adoção da teoria da quebra objetiva do negócio, como desdobramento histórico da velha cláusula rebus. Ninguém havia locado varandas para utilizar a varanda como espaço de lazer. A locação tinha um único objetivo: a visão privilegiada do cortejo real. Isso porque, normalmente, para se ver um cortejo real, o volume de pessoas e a aglomeração é tão grande que praticamente nada se vê.
Mudou a base objetiva porque mudaram as circunstâncias. A locação tinha por base a passagem do cortejo real. Sem a passagem do cortejo, frustrou-se o fim contratual, e o contrato é considerado extinto, resolvido, sem o dever de se pagar o aluguel.
2. Quebra da base objetiva e o divórcio
No caso em questão, temos um testamento em que o testador nomeia como herdeira “sua esposa”, “sua mulher”, Maria. Contudo, após o testamento ocorreu o divórcio, e o testamento não foi alterado, manteve-se inalterado. A pergunta que se faz é se há ineficácia do testamento em razão do divórcio. Haveria caducidade em decorrência do divórcio superveniente?
Cabe a interpretação da vontade do morto para a solução da questão. Deixar bens “para minha esposa, minha mulher” significa que a vontade do testador não era de beneficiar Maria, mas sua mulher, com quem dividia a comunhão de vida, com quem tinha convivência more uxorio, baseada no vínculo de afeto. A vontade perde seu substrato fático, há uma mudança das condições objetivas do testamento. Entre a formação e a eficácia do testamento mudaram as bases objetivas, as circunstâncias. Logo, o testamento perdeu seus efeitos. É clara situação de caducidade.
Situação distinta se verifica se o testamento já é feito após o divórcio ou separação de fato do casal. Nessas hipóteses, a vontade do testador é clara: ele quer beneficiar Maria, e não sua mulher. Assim, o testamento permanece eficaz.
Todavia, podemos avançar no raciocínio com algumas ponderações: se o casal se divorcia, mas prossegue convivendo em união estável, o que ocorre com o testamento? A situação é mais comum do que parece. O casal pode se divorciar inclusive por força de eventuais credores, mas prosseguir com a convivência familiar, sob a forma de união estável. Pode, ainda, o casal se divorciar e, por razões do coração, se reconciliar não por meio de novo casamento, mas de união estável.
Nessas hipóteses em que, no momento da morte a comunhão de vidas prosseguia, mesmo após o divórcio, a qualidade de herdeiro se mantém.
Assim, como fica a resposta a Zeno Veloso? Cada caso é um caso? Não, casuística não é ciência, é casuística.
Há uma presunção relativa de caducidade (ineficácia) do testamento quando o divórcio ocorre, porque a base do negócio jurídico se alterou. Mudaram as condições fáticas entre a existência do testamento e sua posterior eficácia mortis causa. Entretanto, se a comunhão de vida prossegue, se após o divórcio mantém-se, a convivência more uxório, cabe ao sobrevivente provar tal fato afastando a presunção relativa de caducidade do testamento.
Por fim, se o próprio testador informar que após o divórcio o cônjuge deixa de ser herdeiro ou que mesmo após o divórcio o ex-cônjuge mantém a qualidade de herdeiro, dúvida não há que prevalecerá a vontade declarada do morto.
De qualquer forma, terminamos a manhã no Museu de Arte Sacra de Maceió. Museu fantástico, que vale a visita.
[1] Auto + nomos = própria lei.
[2] In contractus qui habent tractum sucessivum et dependentia de futuro, rebus sic stantibus inteliguntur.
[3] É Antonio Junqueira de Azevedo quem narra o caso.
[4] A Rainha Vitória só foi ultrapassada recentemente por Elizabeth II, cujo reinado se iniciou em 1952 e ainda prossegue.
[5] O Rei Eduardo, obeso e fumante contumaz, passou por uma operação em razão de problemas estomacais.
José Fernando Simão é advogado, diretor do conselho consultivo do IBDFAM e professor da Universidade de São Paulo e da Escola Paulista de Direito.
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