A evolução tecnológica e da engenharia genética tem feito coisas que até Deus duvidava. Esses avanços interferem diretamente na formação das famílias, e consequentemente somos obrigados a repensar constantemente sua organização e proteção, sob pena de o Direito perder o seu sentido. Na década de 1980, o método em DNA desviou o eixo da investigação de paternidade, que era na verdade uma inquisição sobre a moral sexual da mãe, para uma questão científica. A biotecnologia abriu a possibilidade de inseminações artificiais homólogas e heterólogas, constituindo assim as chamadas famílias ectogenéticas.
Todas essas tecnologias e avanços, associados ao discurso psicanalítico, filosófico e jurídico, nos remetem hoje à compreensão de que filiação, paternidade e maternidade são funções exercidas, ou seja, a família é muito mais da ordem da cultura do que da natureza. Em outras palavras, não interessa tanto quem gerou ou forneceu o material genético. Prova isso o milenar instituto da adoção — pai e mãe é quem cria. Daí a expressão criada pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) e já absorvida pelo ordenamento jurídico brasileiro: parentalidade socioafetiva, que pode ser geradora de direitos e obrigações, se declarada judicialmente.
Muitas questões decorrentes da fertilização in vitro ou reprodução assistida (RA), que é a tecnologia de implantação artificial de espermatozoides ou embriões humanos no aparelho reprodutor de mulheres receptoras, continuam sem uma resposta objetiva. Por exemplo, o que fazer com os embriões excedentes? Pode-se descartá-los? Eles podem ser implantados mesmo depois da morte de seus doadores? Tais questões têm interferido negativamente no avanço do Direito e principalmente em pesquisas que poderiam melhorar a vida e a saúde de muitas pessoas.
Uma das situações sobre a qual paira muito preconceito e impede a evolução jurídica é a possibilidade de homens e mulheres tornarem-se pais por meio da gravidez por útero de substituição. Conhecida também como barriga de aluguel, o método consiste em uma mulher gerar em seu útero filho de outra ou para outra. No século XIX, a medicina já havia desvendado os mistérios da concepção e ultrapassou concepções morais e teorias místicas e míticas sobre infertilidade. Foi assim que surgiu a Resolução 1.957/10 do Conselho Federal de Medicina, estabelecendo regras para a gestação de substituição e doação temporária de útero. Embora substituída pela Resolução 2.121/2015, continua acanhada e deixando milhares de mulheres sem a possibilidade de serem mães por essa via. É que só pode “ceder” o útero quem for parente até segundo grau. A questão sobre a qual se deve refletir é: por que não se pode remunerar uma mulher pelo “aluguel” de seu útero? Sabe-se que no Brasil acontece na clandestinidade o que já é lei em vários países, a exemplo de Estados Unidos, Israel, Austrália, Bélgica, Dinamarca, Grã-Bretanha, Grécia, Holanda, Índia, Rússia e Ucrânia. É como o aborto no Brasil: não existe para mulheres pobres.
O corpo é um capital físico, simbólico e econômico. Os valores atribuídos a ele são ligados a questões morais, religiosas, filosóficas e econômicas. Se a gravidez ocorresse no corpo dos homens, certamente o aluguel da barriga já seria um mercado regulamentado. Não seria a mesma lógica que permite remunerar o empregado no fim do mês pela sua força de trabalho, despendida muitas vezes em condições insalubres ou perigosas, e considerado normal? O que se estaria comprando ou alugando não é o bebê, mas o espaço (útero) para que ele seja gerado. Portanto, não há aí uma coisificação da criança ou objetificação do sujeito. E não se trata de compra e venda, como permitido antes nas sociedades escravocratas e endossado pela moral religiosa. Para se avançar, é preciso deixar hipocrisias de lado e aprender com a História para não se repetir injustiças. É preciso distinguir o tormentoso e difícil caminho entre ética e moral.
A regulamentação ou a licitude de um contrato de pagamento pelo “aluguel”, ou melhor, pela cessão temporária de um útero, não elimina o espírito altruísta exigido pelo Conselho Federal de Medicina. Ao contrário, evitaria extorsões e clandestinidade. Afinal, quem não tem útero capaz de gerar um filho não deveria ter a oportunidade de poder buscá-lo em outra mulher? Por que a mulher portadora, que passará por todos os riscos e dificuldades de uma gravidez, não pode receber por essa trabalheira toda? Hoje as religiões já reconhecem que os bebês nascidos de proveta têm alma tanto quanto os nascidos por inseminação artificial. Já foi um avanço. Quem sabe no futuro próximo, nesta mesma esteira da evolução do pensamento, alugar um útero para gerar o próprio filho, para aqueles que não querem adotar, ou porque o processo judicial de adoção é emperrado e caótico, passará da clandestinidade para uma realidade jurídica? Eis aí uma ética que se deve distinguir da moral estigmatizante e excludente de direitos.
Está cada vez mais claro para o Direito de Família que conjugalidade e parentalidade não estão necessariamente atrelados. É assim que começamos a distinguir famílias conjugais e famílias parentais para entender o atual Direito de Família. Há pessoas que só querem ter uma relação conjugal, seja porque já têm filhos de relações anteriores, seja pela livre escolha de não terem filhos. Há pessoas que só querem ter filhos mas não querem estabelecer uma relação amorosa, conjugal ou mesmo sexual com o pai/mãe do pretenso filho, ou seja, querem formar apenas uma família parental, e não querem fazer uma “produção” independente, isto é, não querem uma família monoparental. No mundo globalizado e cibernético, viabilizado pela engenharia genética, ficou mais fácil pessoas se encontrarem para estabelecer parcerias de paternidade/maternidade. Esta nova forma de constituição de famílias parentais é crescente no Brasil e nos remete a pensar sobre as novas relações afetivas, que por sua vez tem nos obrigado a fazer contratos de geração de filhos (Cf. Dicionário de Direito de Famílias e Sucessões. Ed. Saraiva, P. 184). Quer gostemos ou não, queiramos ou não, não podemos fechar os olhos a essa nova realidade jurídica.
Rodrigo da Cunha Pereira é advogado e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), mestre (UFMG) e doutor (UFPR) em Direito Civil e autor de livros sobre Direito de Família e Psicanálise.
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