por Joanna Burigo — publicado 09/11/2016
Novo livro da filósofa versa sobre ocupações e o populismo reacionário que quer restaurar um estágio anterior da sociedade
Um dos afetos mais satisfatórios da relação que tenho com o conhecimento produzido por feministas é a sensação de alívio epistêmico ao deparar-me com argumentos que dão sentido para fenômenos complexos (ou os que explicitam análises óbvias, ou os que expressam bem os sentimentos resultantes de experiências comuns).
Foi lendo feministas que percebi que o senso comum me incomodava não por eu ser irritável, mas por que ele é socialmente injusto. Foi estudando estas mulheres que entendi que o feminismo se ocupa de expor estruturas que são fundamentadas na nossa opressão.
Foi assimilando a teoria feminista que percebi que alguns de meus incômodos não eram apenas sobre mim, mas sobre todas nós. O feminismo me ensinou o que é opressão sistêmica, pois me mostrou como ela aflige mulheres diferentes de formas diferentes, mas aflige ainda assim a todas as mulheres.
O jargão feminista “o pessoal é político” me informou que alguns padrões sociais injustos aparecem disfarçados de questões pessoais.
Normas de feminilidade, sexualidade, direitos reprodutivos e violência, dentre tantas outras questões centrais das mais diversas pautas feministas e de gênero, são ações cerceadas por tabus morais, e politizá-las é frequentemente entendido como “mimimi”.
Isso é porque elas parecem pertencer à esfera pessoal, que no senso comum deveria ser estritamente privada. E o feminismo demonstra que as ações de subjugação das mulheres tendem a se dar sob a forma de controle do que nos é mais pessoal: nossos corpos.
Judith Butler é a filósofa, filóloga e professora de teoria crítica e literatura comparada amplamente conhecida pelo livro "Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade".
Na sua teoria Butler implica que atos discursivos relacionados aos nossos corpos – como a denominação “é menino/menina” – são a origem dos efeitos disso que chamamos de “gênero” nas nossas vidas.
Em seu mais recente livro, "Notes Towards a Performative Theory of Assembly" (algo como “Notas na direção de uma teoria performativa de assembleias”, sem tradução), Butler parece sugerir que a popularidade da teoria da performatividade pode ser devida ao fato de que essa é uma maneira de denominar o poder que uma linguagem tem de fazer surgir novas situações e pôr em ação uma série de efeitos de mudança.
Assim, ainda que gênero como linguagem inscrita nos nossos corpos seja produto das expectativas e fantasias de outrem, estas mesmas normas que nos produzem podem servir de instrumentos de contestação.
Um exemplo prático disso que vem à mente é o já clássico vídeo “Não tira o batom vermelho”, em que a YouTubber JoutJout ressignifica o batom, uma tradicional ferramenta de manutenção de feminilidades, como símbolo da luta contra relacionamentos abusivos.
Mesmo tendo lido apenas poucas páginas de sua mais nova obra, senti o alívio feminista a que me referi no começo do texto quando li uma entrevista recente que Butler concedeu ao jornal Die Zeist por conta do lançamento da edição alemã deste seu livro de 2015.
Nela, a popular teórica de gênero responde questões sobre política, linguagem e corpos, e destaco aqui algumas de suas reflexões salpicadas com exemplos de acontecimentos políticos recentes.
Butler não acredita ser possível separar o que os corpos estão fazendo da linguagem, porque corpos são expressivos – eles significam. Para ela a ocupação de espaços por corpos fala: é uma maneira de fazer uma demanda, de dizer “este espaço nos pertence”.
Esta ação é politicamente significativa porque o corpo ocupa o espaço a que o discurso se refere, encarnando assim sua alegação. O livro, ela conta, surgiu de suas observações sobre assembleias onde corpos se unem politicamente, como a Primavera Árabe e o movimento #Occupy.
As greves recentes de mulheres, na Polônia para protestar contra um projeto de lei que vetaria a possibilidade do aborto, e na Argentina pelo estupro e morte de Lucía Perez, nos dias 3 e 19 de outubro respectivamente, ilustram este argumento (bem como o fazem as ocupações das escolas pelo Brasil).
Em virtude destas greves, a jornalista Eliane Brum viu este outubro como um importante marco para os feminismos da nossa era, pois ao relacionar corpos violados e roubados de autonomia com corpos que se recusam a produzir as argentinas e polonesas provocaram um incêndio.
“O controle sobre o corpo das mulheres”, ela diz, “não é apenas debate filosófico nem move somente protestos ativistas”; e completa: “é o dia a dia da política.”
Nossos corpos estão no epicentro de nossas demandas sociais, por isso encarnar-se como sujeito mulher é um ato político admirável.
Sobre as formas de populismo que estamos vendo agora – na retórica de Trump, no Brexit e na implementação maciça de projetos econômicos neoliberais – Butler afirma que elas se fundamentam na oposição a leis que asseguram igualdade entre corpos, seja de homens e mulheres, no combate ao racismo, pela aceitação de migrações ou por outras políticas que garantam a dignidade de populações heterogêneas.
Este populismo conservador, ela diz, não apenas revela uma raiva enorme – contra mulheres, minorias raciais ou imigrantes – mas também a emoção de quem sentia essa raiva e pode mais uma vez vê-la no discurso público sem censura. A animosidade das redes sociais é efeito dessa emoção explicitada.
A pesquisadora, colunista de CartaCapital e secretária-adjunta da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo Djamila Ribeiro é da opinião de que não vivemos uma onda conservadora, ao contrário: o que tivemos nos últimos anos foram marolas progressistas.
Também para Butler este é um movimento reacionário que quer restaurar um estágio anterior da sociedade. Impulsionados por nostalgia ou perda de privilégios, ela diz, alguns grupos podem até sentir que estão sendo excluídos – mas o que realmente querem dizer é que suas presunções (masculinas, heteronormativas e brancas) estão sendo abaladas.
Homens como Trump, ela articula, estão emancipando o ódio desenfreado. Ricas ou pobres, pessoas que se sentem reprimidas ou censuradas – pela esquerda, por feministas, pelo movimento por direitos civis – sentem-se liberadas por discursos intolerantes como os dele. É um pesadelo, diz Butler, pois deveria ser dos corpos que não estão batalhando por espaço e justiça o trabalho de ajustar-se, de aceitar perdas e de abraçar um mundo maior e mais democrático.
Gênero pode ser lido em todos os corpos, mas alguns corpos são mais sofridos e mais marcados por violência e exclusão do que outros. Demandas feministas por equidade sempre partiram dessa premissa. Que os corpos marcados por violência e exclusão sejam aqueles a ocupar espaços exigindo justiça não é nada novo.
Mas lembremo-nos de pensar em agentes políticos – os de inclusão bem como os de exclusão – como os corpos que são. Prestar atenção nos corpos por trás das imposições que eles fazem ou demandas que carregam transforma nossa leitura sobre elas.
Carta Capital
Novo livro da filósofa versa sobre ocupações e o populismo reacionário que quer restaurar um estágio anterior da sociedade
Um dos afetos mais satisfatórios da relação que tenho com o conhecimento produzido por feministas é a sensação de alívio epistêmico ao deparar-me com argumentos que dão sentido para fenômenos complexos (ou os que explicitam análises óbvias, ou os que expressam bem os sentimentos resultantes de experiências comuns).
Foi lendo feministas que percebi que o senso comum me incomodava não por eu ser irritável, mas por que ele é socialmente injusto. Foi estudando estas mulheres que entendi que o feminismo se ocupa de expor estruturas que são fundamentadas na nossa opressão.
Foi assimilando a teoria feminista que percebi que alguns de meus incômodos não eram apenas sobre mim, mas sobre todas nós. O feminismo me ensinou o que é opressão sistêmica, pois me mostrou como ela aflige mulheres diferentes de formas diferentes, mas aflige ainda assim a todas as mulheres.
O jargão feminista “o pessoal é político” me informou que alguns padrões sociais injustos aparecem disfarçados de questões pessoais.
Normas de feminilidade, sexualidade, direitos reprodutivos e violência, dentre tantas outras questões centrais das mais diversas pautas feministas e de gênero, são ações cerceadas por tabus morais, e politizá-las é frequentemente entendido como “mimimi”.
Isso é porque elas parecem pertencer à esfera pessoal, que no senso comum deveria ser estritamente privada. E o feminismo demonstra que as ações de subjugação das mulheres tendem a se dar sob a forma de controle do que nos é mais pessoal: nossos corpos.
Judith Butler é a filósofa, filóloga e professora de teoria crítica e literatura comparada amplamente conhecida pelo livro "Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade".
Na sua teoria Butler implica que atos discursivos relacionados aos nossos corpos – como a denominação “é menino/menina” – são a origem dos efeitos disso que chamamos de “gênero” nas nossas vidas.
Em seu mais recente livro, "Notes Towards a Performative Theory of Assembly" (algo como “Notas na direção de uma teoria performativa de assembleias”, sem tradução), Butler parece sugerir que a popularidade da teoria da performatividade pode ser devida ao fato de que essa é uma maneira de denominar o poder que uma linguagem tem de fazer surgir novas situações e pôr em ação uma série de efeitos de mudança.
Assim, ainda que gênero como linguagem inscrita nos nossos corpos seja produto das expectativas e fantasias de outrem, estas mesmas normas que nos produzem podem servir de instrumentos de contestação.
Um exemplo prático disso que vem à mente é o já clássico vídeo “Não tira o batom vermelho”, em que a YouTubber JoutJout ressignifica o batom, uma tradicional ferramenta de manutenção de feminilidades, como símbolo da luta contra relacionamentos abusivos.
Mesmo tendo lido apenas poucas páginas de sua mais nova obra, senti o alívio feminista a que me referi no começo do texto quando li uma entrevista recente que Butler concedeu ao jornal Die Zeist por conta do lançamento da edição alemã deste seu livro de 2015.
Nela, a popular teórica de gênero responde questões sobre política, linguagem e corpos, e destaco aqui algumas de suas reflexões salpicadas com exemplos de acontecimentos políticos recentes.
Butler não acredita ser possível separar o que os corpos estão fazendo da linguagem, porque corpos são expressivos – eles significam. Para ela a ocupação de espaços por corpos fala: é uma maneira de fazer uma demanda, de dizer “este espaço nos pertence”.
Esta ação é politicamente significativa porque o corpo ocupa o espaço a que o discurso se refere, encarnando assim sua alegação. O livro, ela conta, surgiu de suas observações sobre assembleias onde corpos se unem politicamente, como a Primavera Árabe e o movimento #Occupy.
As greves recentes de mulheres, na Polônia para protestar contra um projeto de lei que vetaria a possibilidade do aborto, e na Argentina pelo estupro e morte de Lucía Perez, nos dias 3 e 19 de outubro respectivamente, ilustram este argumento (bem como o fazem as ocupações das escolas pelo Brasil).
Em virtude destas greves, a jornalista Eliane Brum viu este outubro como um importante marco para os feminismos da nossa era, pois ao relacionar corpos violados e roubados de autonomia com corpos que se recusam a produzir as argentinas e polonesas provocaram um incêndio.
“O controle sobre o corpo das mulheres”, ela diz, “não é apenas debate filosófico nem move somente protestos ativistas”; e completa: “é o dia a dia da política.”
Nossos corpos estão no epicentro de nossas demandas sociais, por isso encarnar-se como sujeito mulher é um ato político admirável.
Sobre as formas de populismo que estamos vendo agora – na retórica de Trump, no Brexit e na implementação maciça de projetos econômicos neoliberais – Butler afirma que elas se fundamentam na oposição a leis que asseguram igualdade entre corpos, seja de homens e mulheres, no combate ao racismo, pela aceitação de migrações ou por outras políticas que garantam a dignidade de populações heterogêneas.
Este populismo conservador, ela diz, não apenas revela uma raiva enorme – contra mulheres, minorias raciais ou imigrantes – mas também a emoção de quem sentia essa raiva e pode mais uma vez vê-la no discurso público sem censura. A animosidade das redes sociais é efeito dessa emoção explicitada.
A pesquisadora, colunista de CartaCapital e secretária-adjunta da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo Djamila Ribeiro é da opinião de que não vivemos uma onda conservadora, ao contrário: o que tivemos nos últimos anos foram marolas progressistas.
Também para Butler este é um movimento reacionário que quer restaurar um estágio anterior da sociedade. Impulsionados por nostalgia ou perda de privilégios, ela diz, alguns grupos podem até sentir que estão sendo excluídos – mas o que realmente querem dizer é que suas presunções (masculinas, heteronormativas e brancas) estão sendo abaladas.
Homens como Trump, ela articula, estão emancipando o ódio desenfreado. Ricas ou pobres, pessoas que se sentem reprimidas ou censuradas – pela esquerda, por feministas, pelo movimento por direitos civis – sentem-se liberadas por discursos intolerantes como os dele. É um pesadelo, diz Butler, pois deveria ser dos corpos que não estão batalhando por espaço e justiça o trabalho de ajustar-se, de aceitar perdas e de abraçar um mundo maior e mais democrático.
Gênero pode ser lido em todos os corpos, mas alguns corpos são mais sofridos e mais marcados por violência e exclusão do que outros. Demandas feministas por equidade sempre partiram dessa premissa. Que os corpos marcados por violência e exclusão sejam aqueles a ocupar espaços exigindo justiça não é nada novo.
Mas lembremo-nos de pensar em agentes políticos – os de inclusão bem como os de exclusão – como os corpos que são. Prestar atenção nos corpos por trás das imposições que eles fazem ou demandas que carregam transforma nossa leitura sobre elas.
Carta Capital
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