Arun Gandhi: “A pobreza é o pior tipo de violência”
O herdeiro do legado de Gandhi continua a pregar a não-violência e diz que hoje as crianças são criadas para se tornarem egoístas
Margarida Telles
Arun Gandhi, de 78 anos, é o quinto neto de Mohandas “Mahatma” Gandhi, líder do movimento pela não-violência. Arun nasceu na África do Sul e durante a infância sofreu agressões de brancos e de negros por ter traços indianos. Em 1946, foi morar com Mahatma Gandhi, com quem aprendeu sobre pacifismo. Hoje, ele é o maior divulgador da filosofia de seu avô e comanda um instituto de educação pela não-violência na Índia. Arun conversou com ÉPOCA durante a sua estadia em São Paulo, onde participou de um encontro de jovens e professores, realizado pelo Instituto Democracia e Sustentabilidade, a Fundação Tide Setubal e o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária.
ÉPOCA – O senhor dirige um instituto de educação. O que é mais importante na formação de uma criança? Arun Gandhi – Atualmente as crianças só aprendem a ganhar dinheiro e ter uma carreira. Isso não é o bastante. Precisamos ensiná-las sobre a vida, sobre elas mesmas e como elas podem se tornar pessoas melhores. O modo como disciplinamos as crianças também está errado. Plantamos as sementes da violência nelas quando as punimos por algo que fizeram de errado. Isso vai lhes dar a ideia de que qualquer pessoa que faz algo errado precisa ser punida.
ÉPOCA – Como educar as crianças para que elas sejam disciplinadas sem o castigo? Arun Gandhi – Na não-violência, substituímos os castigos pelas penitências. Eu não era punido quando fazíamos algo errado. Meus pais jejuavam por um ou dois dias e me explicavam que não estavam comendo porque falharam em minha educação. Desse modo eles me mostravam o amor, não a violência.
ÉPOCA – Esse método não gerava muita culpa? Arun Gandhi – Sim, gerava culpa para todos. Mas se você faz algo errado, precisa sentir-se culpado, ou nunca mudará.
ÉPOCA – Como foi a sua infância? Arun Gandhi – Foi muito diferente, porque nunca frequentei a escola. Fui educado pelos meus pais e por tutores. Mesmo não tendo ido para a escola, eu tenho sete especializações.
ÉPOCA – Deveríamos educar as crianças em casa? Arun Gandhi – Enquanto o nosso sistema educacional for tão inadequado, enviar as crianças para a escola não faz muito sentido. Acho que se os pais forem qualificados, seriam os melhores professores. Infelizmente hoje a única interação entre pais e filhos costuma ser quando eles voltam para casa do trabalho e estão tão cansados que mal conseguem dar atenção para as crianças. Nessa atmosfera, como podemos criar boas crianças, que tenham amor e respeito?
ÉPOCA – O senhor diz que a pobreza é o pior tipo de violência. Como pode ser pior que a violência sexual ou a discriminação? Arun Gandhi – Outros tipos de violência tendem a ser imediatos e de curta duração. Já a pobreza é algo com o que as pessoas têm que conviver dia e noite, por isso a considero o pior tipo. Infelizmente, como seres humanos civilizados nós ignoramos a pobreza, achamos que não é da nossa conta. Ainda existe a ideia de que as pessoas são pobres por serem estúpidas, incapazes, e que não há nada a se fazer. Somos egoístas.
ÉPOCA – Em um mundo no qual a violência domina tantos aspectos da nossa vida, como convencer as pessoas a não revidar o que recebem dos outros? Arun Gandhi – Isso acontece naturalmente quando as pessoas começam a viver em paz. Existe uma história de um homem que vivia sozinho e nunca limpava sua casa. Um dia ele conheceu uma moça, que lhe deu uma rosa. Ele levou a rosa para casa, mas não achou um vaso limpo. Precisou lavar a louça para encontrá-lo. Depois, ele não tinha um lugar para expor a rosa, e limpou uma mesa para colocá-la. Ele então notou que só a mesa limpa no quarto sujo destoava, e limpou o quarto. Eventualmente, toda a casa estava limpa. Isso tudo por causa de uma rosa. Do mesmo modo, se uma pessoa se torna pacífica em uma comunidade, ela afeta todos à sua volta.
ÉPOCA – O senhor diz que precisamos primeiro mudar nós mesmos para depois mudar o mundo. Isso não levaria muito tempo? Arun Gandhi – A não ser que a gente mude, não podemos fazer outras pessoas mudarem. Ninguém está isento. Uma vez meu avô foi procurado por um casal com um filho pequeno que não podia comer doces. Ele não obedecia a proibição, pois via seus pais comerem doces. O casal levou o menino ao meu avô, pedindo sua ajuda, e ouviram para retornar em duas semanas. Na data combinada, o meu avô falou em particular com o menino por menos de um minuto, e ele parou de comer doces. Os pais ficaram chocados, e quiseram saber que tipo de milagre aconteceu. Meu avô explicou que o motivo do prazo de duas semanas era para que ele próprio parasse de comer doces, pois só assim poderia pedir o mesmo ao menino. Se a gente não praticar o que queremos que os outros aprendam, eles não vão aprender. Se a gente viver em paz, então os outros poderão viver em paz.
ÉPOCA – O senhor mudou algo na teoria da não-violência elaborada pelo seu avô? Arun Gandhi – Para qualquer filosofia manter-se viva ela tem que passar por mudanças. Não dá pra se apegar a tudo o que ele disse, porque coisas que lhe pareciam verdadeiras há 50 anos já não fazem sentido hoje. Quando ele escreveu a sua biografia, se colocava contra qualquer tecnologia. Na época, a tecnologia desenvolvida estava substituindo o homem por máquinas, para maximizar o lucro. Algumas tecnologias mudaram desde então. Provavelmente se ele tivesse vivo hoje aprovaria certas novidades. Aposto que ele teria usado a internet para ajudar a espalhar a sua mensagem.
ÉPOCA – O senhor viu alguma vez o seu avô bravo? Arun Gandhi –Nunca. Uma época ele precisava angariar fundos para o seu trabalho social e resolveu cobrar pelos seus autógrafos. As pessoas lhe entregavam os livros com o dinheiro dentro, e ele assinava. Um dia, decidi que também queria um autógrafo. Como eu não tinha nenhum dinheiro, apenas coloquei meu livro na pilha com os outros. Quando ele chegou no livro, perguntou por que não tinha dinheiro dentro, e eu disse “porque é meu”. Ele falou que não abria exceções nem para os netos. Protestei, disse que para mim seria de graça. Ele riu e falou “está bom, vamos ver quem ganha”.
A partir de então, sempre que ele se reunia com autoridades políticas eu entrava na sala e esfregava o meu livro na sua cara, exigindo o autógrafo. Achei que só para se livrar de mim ele cederia. Mas tudo o que ele fazia era tapar minha boca com uma mão, colocar sua outra mão no meu peito e continuar a conversa com as outras pessoas. Ele nunca me deu o seu autógrafo e nunca perdeu a paciência comigo.
ÉPOCA – O senhor sempre consegue manter a calma? Arun Gandhi – Eu não chego nem perto dele. Mas tento seguir seu exemplo. Ainda tenho um longo caminho.
ÉPOCA – As comparações com o seu avô incomodam? Arun Gandhi – Eu tinha dificuldade quando era adolescente, e uma vez disse pro meu pai que não sabia como ia conseguir viver com isso. Ele me respondeu que eu tinha duas opções. Poderia encarar esse legado como um fardo, que ficaria cada vez mais pesado. Ou poderia encará-lo como uma luz que orientaria o meu futuro. Foi o que fiz.
ÉPOCA – Quando o seu avô foi assassinado, o senhor sentiu raiva? Quis vingar-se? Arun Gandhi – Eu tinha 14 anos quando ele foi assassinado. No momento em que recebi a notícia, fiquei furioso e disse para os meus pais que queria estar lá para estrangular a pessoa que fez aquilo. Meus eles me lembraram das lições que meu avô me ensinou, e disseram que ele não aprovaria tal pensamento vingativo. No lugar, ele iria querer que eu dedicasse a minha vida para impedir que esse tipo de violência desmedida não proliferasse. Eles me ajudaram a entender minhas emoções e a perdoar a pessoa que matou meu avô. Acabei dedicando minha vida a combater a violência.
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