Revolução feminina na aldeia do Morro dos Cavalos: Eunice Antunes é a primeira mulher cacique
Eleita em fevereiro deste ano, índia guarani se junta às outras 11 mulheres caciques de todo o país
Carol Macário @carolmacario_nd FLORIANÓPOLIS |
Rosane Lima / ND
Vaidosa, Eunice Antunes se encheu de adereços para sair bonita na foto
Kunhangue Rembiapo é uma expressão guarani. Significa “trabalho das mulheres” e faz sentido no atual contexto da aldeia M’Bya Guarani do Morro dos Cavalos, há 20 Km de Florianópolis. Desde os 5.000 anos de ocupação tupi-guarani na região, pela primeira vez uma mulher assumiu o posto de cacique da aldeia. Eunice Antunes, 33 anos, foi eleita em fevereiro deste ano, com as bênçãos de seu povo e de Nhanderú – o deus sol e guardião dos guaranis. Como uma mãe cautelosa, vem transformando a vida dos seus filhos por meio de uma silenciosa revolução cultural de revalorização das tradições ancestrais.
De estatura baixa, pele morena e cabelos pretos, Nice sempre sorri com desconfiança. Ela é crítica quanto a tudo que possa de alguma maneira interferir no bom andamento da sua comunidade. Esse senso de não-aceitação com o que lhe é imposto a levou a ser a primeira guarani da região a concluir um curso universitário. Ela foi também a primeira mulher a se tornar professora, e agora a primeira a ser cacique.
“Imaginei sim ser cacique, mas não aos 33 anos. Pensava que seria só quando fosse velhinha”, diz. Na cultura guarani, a mulher foi desde sempre educada para servir, cuidar dos filhos, sem participar das tomadas de decisão. “Mas aprendi com meu pai que a educação deveria ser algo democrático.”
Única mulher com ensino médio completo na época em que começou a dar aulas na escola da aldeia, Nice deparou-se com uma coordenação pedagógica que não primava pela valorização dos saberes guaranis na educação dos jovens. “Foi então que comecei a confrontar e a questionar”. Até que finalmente ganhou a razão. Foi desses confrontos em defesa dos direitos do seu povo que a jovem índia descobriu a vocação de líder.
Mãe de todos
Adão Antunes, ou Karai Tataendy (Karai = líder; Tataendy = chama de fogo) é o escritor da aldeia. Já publicou um livro sobre o folclore do seu povo. Na opinião dele a jovem cacique está fazendo um bom trabalho. “A gente vê que agora está tudo tranquilo. A mulher trabalha a lei como se todos fossem filhos, é como uma mãe.”
Eunice Antunes foi eleita cacique porque a comunidade estava insatisfeita com o antigo líder, Teófilo Gonçalves. “Hoje eu tenho o apoio de todos e não sofro nenhum tipo de preconceito”, diz. Natural de uma aldeia próxima à cidade de Chapecó, no Oeste de Santa Catarina, ela veio para a Grande Florianópolis com a família – o marido, filhos, pai, mãe e irmãos – no ano 2000. Primeiro morou na aldeia Massiambu, em Palhoça, depois foi para o Morro dos Cavalos, morou ainda na aldeia de Biguaçu e finalmente voltou ao Morro dos Cavalos.
Sua casa foi recém reformada, assim como quase todas as casas da aldeia. Agora é de madeira, sem frestas por onde antes entrava vento e o ruído dos caminhões que transitam na BR-101. Tem dois quartos, uma sala conjugada com a cozinha, onde um fogão a lenha e outro de seis bocas ocupam a parede lateral. Na sala, a parede é decorada com quadros, fotografias dos irmãos e dos filhos e um desenho a lápis do rosto do seu pai, tudo com rendas de tecido sintético no fundo. Uma TV de 29 polegadas e dois sofás antigos complementam a decoração.
Nice tem três filhos, um de 16 anos, outro de 11 e o caçula de seis. É vaidosa. Na hora de posar para a foto, correu para o quarto buscar seus adereços e parecer bonita. “Eu tenho várias coisas aqui para me arrumar.” Voltou com brincos de penas e um cocar feminino. “Os homens usam o cocar com as penas para cima. As mulheres usam as penas na horizontal”, ensina.
Sua rotina mudou de fevereiro para cá. “Antes eu passava as minhas ideias para os homens, já hoje eu é que tenho que tomar as decisões”, declara.
Melhorias para a população guarani
A população da aldeia do Morro dos Cavalos tem aproximadamente 200 moradores, divididos em 37 famílias. Até o ano passado, a média era de 120 pessoas. A terra indígena é demarcada desde a ponte do rio Massiambu até a ponte do rio Brito, no município de Palhoça, e ocupa os dois lados da rodovia BR-101. O tamanho total é de 1.983 hectares (embora Nice defenda que o número correto é 1.988 hectares, “o mesmo número do ano da atual constituição brasileira” avisa ela). A Funai (Fundação Nacional do Índio) iniciou o processo de demarcação da área somente em 2001.
O território já está demarcado, mas não totalmente ocupado. E essa é uma das bandeiras da cacique. “Meu objetivo principal é a questão da terra, porque quando tivermos o registro poderemos ocupar e fortalecer nossa cultura”, garante ela, alegando que com mais espaço será possível, por exemplo, desenvolver a agricultura.
O que faz o cacique?
O cacique tem a função de atender as necessidades da comunidade. “Tem que levar as demandas da aldeia para fora e, da mesma forma, trazer o que é bom para dentro”, diz Eunice Antunes.
Ela explica que, antigamente, a organização indígena tinha o pajé, ou karaí, que era a principal liderança. Era ele quem dava ordens e quem recebia os ensinamentos de Nhanderú (deus sol) e repassava para o povo. “Depois do contato com os brancos é que se criou a figura do cacique”, conta. No começo, os caciques eram parte de uma estratégia dos guaranis para não serem mortos pelos brancos. Eles se entregavam para não morrer, e serviam como porta vozes, diziam a seu povo o que os brancos mandavam. Eram como executores.
Revolução feminista
Na chamada terceira era da revolução feminista – a primeira foi no século 19, depois nas décadas de 60 e 70 e atualmente a partir dos anos 1990 –, as mulheres índias também buscam se libertar dos padrões baseados na opressão masculina. “São 500 anos de contato com a cultura ocidental. E agora as indígenas também estão cobrando seus direitos”, afirma o cientista social João Mauricio Farias, 50, coordenador substituto da regional do litoral Sul da Funai.
Segundo ele, nos últimos dez anos começou a crescer a valorização das mulheres nas aldeias indígenas. “Elas estão se colocando num lugar diferente. Estão entrando para a universidade e os homens estão meio perplexos com essas mudanças”, comenta Farias.
De acordo com dados da Funai, os índios hoje representam 0,4 % da população brasileira, ou 800 mil pessoas, divididas em 220 diferentes povos que falam 180 línguas distintas. Desse total, existem atualmente 11 mulheres caciques em todo o Brasil. “Até mesmo a palavra cacica vem sendo construída para substituir cacique, aos moldes de presidenta”, diz o filósofo e estudioso Nuno Nunes, chefe de serviço de monitoramento ambiental e territorial da Funai.
A Índia Maria das Graças Soares de Araújo, 52, foi uma das primeiras caciques do Brasil. Há 12 anos está a frente de uma aldeia formada por 347 famílias da etnia Katokinn, na cidade de Pariconha, sertão de Alagoas. É a única cacique mulher dentre as 11 etnias que compõem a população indígena alagoana.
“Depois da revolução feminista mudou muito, principalmente entre os indígenas que vivem em aldeias próximas às cidades”, diz ela, por telefone, admirando-se com a distância entre Alagoas e Santa Catarina. Ela assumiu a chefia depois que o pai deixou o cargo. E optou por não ter filhos. “Acho que quando você nasce com uma vocação, nada te tira o foco. Além do mais, tenho muitos filhos postiços”, ri.
Saiba mais
A indígena Creuza Assoripa Umutina, da etnia Amutina, no Matro Grosso, foi a primeira mulher indígena a ocupar o posto de cacique numa aldeia no Brasil, segundo a Funai. Em sete anos de liderança, levou benefícios para a aldeia como energia elétrica, escola de ensino médio com professores indígenas e com 20 computadores ligados à internet. Creusa também conseguiu melhorar a área de saúde. Uma parceria com a Funasa garantiu atendimento médico in loco.
Nenhum comentário:
Postar um comentário