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quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Seis anos da Lei Maria da Penha: um balanço
Fernanda Bestetti de Vasconcellos*

A elaboração da Lei 11.340/06 partiu, em grande medida, de uma perspectiva crítica aos resultados obtidos pela criação dos Juizados Especiais Criminais para o equacionamento da violência de gênero. Os problemas normativos e as dificuldades de implantação de um novo modelo para lidar com esses conflitos, orientado pela simplicidade e economia processuais, mas incapaz de garantir a participação efetiva da vítima na dinâmica de solução do conflito, levaram diversos setores do campo jurídico e do movimento de mulheres a adotar um discurso de crítica aos Juizados, direcionado à banalização da violência, observada na prática corriqueira da aplicação de medidas alternativas correspondentes ao pagamento cestas básicas pelos acusados.
A falta de uma rede de atendimento que ligue as instituições policiais com a área da saúde ainda dificulta a solução dos problemas.  Foto: Libertinus
Optou-se ainda por prever que aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher não possa ser aplicada a Lei no9.099/95. Assim, caso o juiz entenda necessário o comparecimento do agressor em programa de recuperação e reeducação, a medida é tomada de forma impositiva (pena restritiva de direitos), e não mais como parte de uma dinâmica de mediação, ou mesmo de transação penal. A exclusão do rito da Lei 9.099/95 para o processamento de casos de violência doméstica deixa uma reduzida margem para a mediação do conflito. Além disso, cria a necessidade de produção de inquéritos policiais e, embora a Lei tenha sido bastante minuciosa ao orientar a atividade policial, são conhecidas as dificuldades, tanto estruturais quanto culturais, para que estes delitos venham a receber por parte da polícia o tratamento adequado.
Ainda que a Lei Maria da Penha tenha trazido consigo importantes mecanismos que buscam evitar que novas violências sejam perpetradas (como a utilização de medidas protetivas, por exemplo), o conflito de gênero que está por trás da violência doméstica e familiar contra a mulher não pode ser tratado simplesmente como matéria criminal. O retorno do rito ordinário do processo criminal para apuração dos casos de violência doméstica não leva em consideração a relação íntima existente entre vítima e acusado, não sopesa a pretensão da vítima nem mesmo seus sentimentos e necessidades. A leitura criminalizante apresenta uma série de obstáculos para a compreensão e intervenção nos conflitos interpessoais, que muito provavelmente não corresponde às expectativas das pessoas envolvidas no conflito.
Talvez o mais adequado fosse lidar com boa parte dos conflitos que chegam aos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher fora do sistema penal, radicalizando a aplicação dos mecanismos de mediação. A falta de uma rede de atendimento que ligue as instituições com a área da saúde e que proporcione serviços e atendimento tanto às vitimas quanto aos agressores dificulta a solução de grande parte da demanda. Tanto os profissionais que atuam no Juizado, quanto aqueles que atuam na delegacia, reconhecem a necessidade de tratamento médico e psicossocial para a clientela que costumam atender diariamente.
É importante acompanhar o processo de implementação do novo paradigma jurídico vinculado à Lei 11.340/2006 no Brasil, levando em conta as especificidades da cultura jurídica brasileira, como tem chamado a atenção os trabalhos de Roberto Kant de Lima. Apesar de existirem previsões constitucionais que enfatizam representações igualitárias e individualistas, implicitamente a cultura jurídica produz e é reproduzida por práticas, discursos e instituições que realizam uma representação hierárquica da sociedade (KANT DE LIMA, 1990). O espaço público, nesse modelo, é o local controlado pela autoridade, por vezes identificada com o Estado, que possui o conhecimento necessário e a quem compete ordenar essas desigualdades que ali se encontram, explicitando a hierarquia, através da aplicação de regras que são sempre gerais (KANT DE LIMA, 2000). Se essas regras são gerais, e os sujeitos a quem elas se aplicam possuem direitos e obrigações desiguais, faz-se necessário que sejam interpretadas conforme a pessoa a quem estão sendo aplicadas e, em razão disso, são vistas sempre como exteriores aos sujeitos e oriundas da “autoridade” que as interpreta (KANT DE LIMA, 2001).
Se as partes em conflito são concebidas como desiguais, não é justo colocá-las em oposição para que resolvam por si o conflito – o Estado deve atuar para compensar essa desigualdade, tomando para si a função de dar uma resposta ao conflito, incorporando a desigualdade na fórmula jurídica de administração dos conflitos em público (KANT DE LIMA, 2004). O modelo para a resolução de conflitos enfatiza a inquisitorialidade, a descoberta da verdade, devendo os conflitos serem administrados através da compensação das desigualdades e reafirmação da ordem vigente para administrá-las, havendo uma presunção de culpa (KANT DE LIMA, 2000). Talvez isto explique o grande número de casos que se “perdem” no caminho, via desistência, renúncia ou não comparecimento da vítima ou do agressor, até um julgamento final, que ocorre em pouquíssimos casos nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
* Associada ao FBSP, doutoranda em Ciências Sociais/PUCRS, Pesquisadora Visitante do Departamento de Criminologia da Universidade de Ottawa, Pesquisadora INCT-INEAC.
E-mail: fevasconcellos@hotmail.com     http://lattes.cnpq.br/7816244903166292

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