Quando o amor é doença – parte 4
MARTHA MENDONÇA
Ao longo desta semana, estamos apresentando uma série sobre amor patológico, um transtorno do comportamento que afeta a vida de milhares de homens e mulheres. Serão cinco posts, um por dia, com depoimentos de quem vive ou já viveu esse drama e explicações de especialistas. Os nomes apresentados na matéria foram trocados.
“Quando me sinto rejeitada, é como se eu sofresse um apagão. Não sei quem eu sou, nem o que é realidade. Bato, destruo, machuco. Sinto um vazio no peito, uma dor, que parece que eu vou morrer de um ataque do coração. Depois, muitas vezes, percebo que foi um sentimento por algo que não era de verdade, mas inventado pela minha cabeça. O problema é que depois eu faço tudo de novo.”
A cruzada de pernas de Kátia não passaria despercebida por nenhum homem. Professora de Educação Física, moradora do Niterói, Estado do Rio, ela gosta de usar roupas curtas, justas, decotadas, que mostram sua ótima forma aos 35 anos. Casou-se aos 25 com um colega de faculdade. O casamento ficou morno e, depois de sete anos, decidiram, de comum acordo, pela separação. Seis meses depois, ela começou a sair com um homem trinta anos mais velho e de uma classe social inferior.
“Ele era chefe da oficina mecânica onde eu costumava levar meu carro. Durante anos, sempre foi amável e brincalhão. Eu estava sozinha e ele me chamou pra sair. Fui. E me apaixonei. Eu sei que as pessoas nos olhavam na rua e pensavam como é que eu estava com um cara como aquele: mais velho, magro, feio e mais baixo do que eu. Mas ele me agradava, tinha um jeito quietinho, doce, que me conquistou. Vivi meses de lua-de-mel. Até que um dia ele começou a me rejeitar. Eu ligava e ele estava sempre ocupado. Eu marcava de sair e, na última hora, ele dava uma desculpa.”
Kátia deixou o bronzeado de lado. De manhã, antes do trabalho, em vez de pegar a praia de costume, ficava em seu carro, na rua da oficina, observando o namorado. Ele raramente saía de lá. Dali mesmo ela telefonava para ele. Se, na terceira tentativa, ele não atendesse, ela já invadia o local aos berros. Virou a atração da oficina mecânica. No começo, era alvo de risadas: um mulherão armando o barraco dia sim, dia não, era uma bela quebra na rotina. Mas, depois que destruiu dois cones da entrada, atropelados por seu carro, passou a ser temida no trabalho do namorado.
“Todos os dias, eu pensava: como é que esse cara não está nem aí pra mim? Ele devia dar graças a Deus por ter uma mulher como eu! Mas era uma falsa autoestima. Se eu me achasse realmente maravilhosa, não daria tanto vexame, não desceria tão baixo. Só que eu não conseguia mais ficar sem ele. Era uma adrenalina quando ele não me atendia. Eu queria quebrar tudo, sofria e chorava. Faltava ao trabalho toda hora.”
Kátia descobriu que o namorado não a atendia quando estava no trabalho porque era lá que ele a traía – com a moça do cafezinho. A informação foi passada por um outro mecânico, com quem ela fez amizade. Foi à oficina e espancou o namorado com sua bolsa, que tinha pedaços de metal. O homem, ferido, deu queixa na polícia. Dias depois, Kátia foi intimada a comparecer a uma delegacia.
“Ainda me lembro da cara da escrivã, me olhando. A dúvida estava no rosto dela: como é que essa mulher jovem e bonita fez isso? Eu me senti humilhada. Chorei dias seguidos. Decidi que nunca mais ia procurá-lo, mas não conseguia me desprender dele. Continuei sabendo tudo sobre ele através do mecânico que tinha ficado meu amigo – e a quem de vez em quando eu dava uns trocados. Cheguei a ligar várias vezes pro meu ex, de orelhão, só pra ouvir a voz dele. No meu sonho, ele adivinhava que era eu e dizia que me amava e que queria voltar. Eu queria a minha vida de volta, mas não conseguia.”
Há dois anos, aconselhada por uma amiga, Kátia procurou o Mada. Depois que começou, nunca largou o grupo. Estimulada pelas conversas, começou a ler sobre Psicologia e Amor Patológico. Descobriu que, com o namorado, repetia os mesmos padrões de namoros anteriores – necessidade de controle e atenção, pavor de ser rejeitada, impulsividade.
“Talvez meu ex-marido tenha sido a exceção justamente porque sempre foi dedicado e atencioso. Com ele, eu não sentia ciúmes, não tinha medo da perda. Ele me dava mais atenção do que eu a ele. Talvez nós, mulheres que amam demais, sejamos assim: as pessoas que nos amam de verdade não têm muita graça. Será que somos atraídas pela rejeição que tanto tememos?”
Coordenadora dos grupos de Amor Patológico da Santa Casa, a psicóloga Daniela Faertes fez a triagem dos inscritos e se impressionou com o número de interessados: mais de cem em apenas dois meses. Uma em cada quatro pessoas, no entanto, estava bem longe de sofrer do transtorno. “Sofrer por causa de um término de relacionamento não é doença. Ao contrário, é mais do que normal. O transtorno começa a partir do que se faz com esta dor, as ações, as reações, o padrão repetitivo”, afirma.
Recentemente, a Associação Americana de Psiquiatria, que tem sido a referência mundial na área, tem recebido críticas de que, ao incluir novas doenças em seu Manual, estaria forçando a medicalização de atitudes que não são doenças mentais, reduzindo a “normalidade”. Há um consenso, porém, de que a linha divisória entre o saudável e o normal está no dia-a-dia. Quando um transtorno ou uma mania começam a prejudicar a vida, começa aí a patologia. Ser ansioso é normal; ter crise de ansiedade a ponto de não conseguir sair de casa é doença. Gostar de limpeza é normal; lavar as mãos a cada cinco minutos é doença e se desesperar quando não há água por perto é outra. Apaixonar-se é saudável; acreditar que sem aquela pessoa o mundo acabou é Amor Patológico.
Um dos perigos dos transtornos de comportamento é o acúmulo ou a rotatividade de tipos de dependência. Para se afastar da bebida, vai-se ao jogo. Para afastar-se do jogo, vai-se à ao exagero alimentar. Para curar da comida, toma-se anfetamina. Tudo para preencher o vazio.
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