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sábado, 14 de dezembro de 2013

Médica pede engajamento dos operadores do Direito para efetivar lei de atendimento às vítimas de violência sexual

Com a sanção da Lei nº 12.845/2013, em agosto deste ano, os direitos das mulheres vítimas de violência sexual a um atendimento humanizado e multidisciplinar de qualidade no Sistema de Saúde foram reiterados e transformados em obrigação para toda a rede do SUS (Sistema Único de Saúde).

Com a lei, foi reforçado que a vítima de violência sexual tem direito a atendimento de emergência em toda a rede, que deve realizar os exames, fazer o diagnóstico e dar tratamento às lesões físicas, além de ministrar as medicações para profilaxia de doenças sexualmente transmissíveis e a contracepção de emergência para evitar a gestação.

Contudo, a maior barreira para efetivar o marco legal ainda é a discriminação de gênero nos serviços do Estado, segundo avaliou a médica ginecologista e sanitarista Verônica Gomes Alencar, em entrevista ao Informativo Compromisso e Atitude.

Coordenadora do Programa Iluminar Campinas, de cuidado às vitimas de violência sexual pela Secretaria Municipal de Saúde, e do Projeto Superando Barreiras, voltado para a implantação dos serviços de atendimento às vitimas de violência sexual e realização do aborto previsto em lei do Ministério da Saúde, a especialista ressalta: “se toda lei tem um porteiro, que abre ou fecha sua efetivação, o porteiro dessa lei é o sistema patriarcal e o machismo perpetrado, principalmente, por uma parcela dos médicos”.

A médica enumera ainda  entraves que estão além do marco legal, como a falta de serviços de saúde mental na rede pública para realizar o tratamento da vítima de violência sexual pelo tempo que for necessário.

Confira na íntegra:

No âmbito do atendimento às mulheres vítimas de violência sexual, o que muda com a sanção do PLC nº 003, que transformou a norma técnica do Ministério da Saúde na Lei nº 12.845/2013?

Acho que a Lei ajuda muito, porque o que existia antes eram apenas normas técnicas ou decretos – ou seja, os serviços não tinham obrigação de cumprir. Participo do Projeto Superando Barreiras e estamos agora, por exemplo, com trinta hospitais buscando capacitação para o atendimento de casos de violência sexual. Estou o tempo inteiro respondendo perguntas de advogados de hospitais sobre como cumprir a Lei.

Mas, embora a Lei ajude, é preciso divulgá-la para as mulheres conhecerem seus direitos e saberem quem procurar quando eles não forem garantidos. Também é necessário capacitar o Ministério Público para acompanhar esta questão, para exigir o cumprimento, porque só nós que trabalhamos com isso sabemos dessa legislação – e ainda assim há hospitais que nem conhecem a existência da Lei ainda. Também é preciso capacitar os gestores públicos para que obriguem os hospitais a implementar a Lei e realizar o atendimento humanizado.

E temos um problema adicional para a efetivação do atendimento previsto na Lei: muitos hospitais do SUS [Sistema Único de Saúde] não estão sendo geridos pelo Estado, mas por Organizações Sociais. E já aconteceu na nossa experiência de um hospital gerido por essas organizações se recusar a atender, dizendo que este tipo de atendimento não está no contrato celebrado com o Estado. Então, o Ministério da Saúde precisa incorporar a Lei em todos os contratos que faz.

Ou seja, avalio que a Lei é um instrumento legal para obrigar os hospitais, mas teremos muito trabalho para que isso ocorra, porque, para sair do papel, as normas precisam de um trabalho intersetorial: da Secretaria de Políticas para as Mulheres, para toda a sociedade conhecer os direitos; do Ministério Saúde, para seus quadros; e do Ministério da Justiça, para operadores do Direito, como os promotores públicos, que podem exigir o cumprimento da Lei.

Além desta Lei, outros vários instrumentos legais apontam diretrizes para o atendimento de qualidade e humanizado às vítimas de violência sexual; quais são as barreiras impedem que ele seja realidade em todo o Brasil?

Se toda lei tem um porteiro, que abre ou fecha sua efetivação, o porteiro dessa lei é o sistema patriarcal e o machismo perpetrado, principalmente, por uma parcela dos médicos. E, sem o médico, não se consegue qualificar o atendimento. Por exemplo, todos os procedimentos da Ginecologia, que são dez vezes mais custosos, são feitos pela grande maioria dos hospitais; então, porque o atendimento da violência sexual ou o aborto previsto por lei não? É só pensar: se você perguntar quem é o coordenador do programa de pré-natal de alto risco em um hospital, tem uma resposta na hora; mas se você perguntar quem é o coordenador do programa de violência sexual, provavelmente vai ouvir: existe isso?

Eu conversei, por exemplo, com a Secretaria de Estado da Saúde do Rio de Janeiro – a segunda cidade com maior número de estupros no país – e eles só têm um hospital que faz esse serviço. E nós estamos oferecendo desde o começo do ano a capacitação para os hospitais da Baixada e da Região Serrana e eles ainda estão tentando articular para ver se querem fazer. E é muito comum a gente oferecer a capacitação, convidar, com tudo pago, e os médicos não aparecerem. Então, eu não acredito que o grande entrave seja falta de  informação, de leis, normas, decretos – nada disso ; acho que é mais uma barreira do sistema patriarcal mesmo.

Qual é a importância do atendimento humanizado e da garantia dos direitos da mulher?

A violência sexual é o pior crime que o ser humano pode sofrer, depois do homicídio,  porque ela destrói toda e qualquer resiliência de construção da sexualidade do ser humano – e esse é um dos elementos mais importantes para a gente viver.

Quando uma mulher – criança, adolescente ou adulta – sofre uma violência, ela deve receber um atendimento para evitar gravidez, DSTs e tudo o que for necessário para sua saúde física, mas deve receber também um tratamento para garantir sua saúde mental, para a construção da sua resiliência e da sua sexualidade no futuro, para que ela possa se reconstruir.

Existe uma estatística que mostra que 17% das tentativas de suicídio das mulheres jovens está relacionada diretamente a uma violência sexual sofrida na infância ou na vida adulta. Uma outra parte pode evoluir para o uso de psicoativos e outra ainda para a prostituição, porque é muito difícil viver com a falta da autoestima, a dificuldade de construir resiliência e ter uma sexualidade saudável.

Depois do tratamento emergencial, a vítima ainda tem o tratamento para evitar doenças sexualmente transmissíveis, que dura seis meses, mas, para além disso, ela precisaria ter um suporte de saúde mental pelo tempo que for necessário. Na maioria dos serviços que têm esse suporte, depois de seis meses essa mulher sai do hospital de referência e é devolvida para a rede básica de saúde, em que a maioria dos hospitais não tem profissionais de saúde mental. Não tem profissional da saúde mental dentro do Programa Saúde da Família, por exemplo. Então, a gente ainda enfrenta uma defasagem grande no tratamento da saúde mental dessas vítimas. É um gargalo enorme. E isso é bastante preocupante, porque no Brasil, e no mundo inteiro, os crimes sexuais estão aumentando e os homicídios diminuindo.

Por que você acha que isso acontece? 

Tenho a impressão que existe o fato de haver uma rede de atendimento que permite a identificação dos crimes de uma maneira melhor do que no passado. Mas os crimes estão cada vez mais violentos também. Então, acredito que há também um resultado da cultura machista que, mesmo dentro de casa, não suporta as mulheres com direitos. Se o homem não pode mais bater, ele violenta, mata, corta ou queima. Quando a gente vê as pesquisas sobre os homens que estão na cadeia para cumprir pena pela Lei Maria da Penha e recebem atendimento psicológico, eles dizem: sou um pai de família, dou tudo em casa e só porque bati na minha mulher sou um criminoso? Há uma revolta aí.

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