Carolina de Assis
Quiseram as deusas que, no aniversário de 50 anos do golpe militar, a presidenta do Brasil seja uma mulher que se dedicou a combater a ditadura e que passou três anos na prisão, onde sofreu torturas e violências por parte de agentes do Estado que ela hoje representa*. Dilma Rousseff é uma das dezenas (centenas?) de mulheres que foram presas e torturadas por homens do regime, e muitas delas têm conseguido reunir a coragem e a força de contar suas histórias de luta e resistência, dentro e fora dos porões da ditadura. Histórias aterrorizantes de torturas físicas, sexuais e psicológicas, com requintes de crueldade e de sadismo difíceis de serem concebidos por quem tem a vida e o amor como valores maiores e absolutos.
A revista Marie Claire publicou em setembro do ano passado uma matéria com testemunhos de mulheres que passaram por alguns dos centros de tortura e detenção da ditadura militar. Leitura difícil e imprescindível em que as mulheres, hoje na faixa dos 60 anos, narram atrocidades cometidas contra elas e suas filhas e filhos que deixam claro que o fato de ser mulher era determinante na violência perpetrada pelos torturadores. “É claro que ser mulher fazia diferença. Porque ainda que os homens torturados também tivessem de ficar nus, eles tiravam as roupas na frente de outros homens. A mulher ficava nua diante dos olhos cobiçosos e jocosos daqueles homens, essa era a primeira violência”, afirma Tatiana Merlino, jornalista e co-organizadora do livro “Luta, Substantivo Feminino”, publicado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos em 2010 e que descreve os assassinatos de 45 mulheres que lutaram contra a ditadura. “Acreditamos que as mulheres sofreram violências específicas, sexuais, motivadas também por machismo, que buscavam destruir a feminilidade e a maternidade delas”, diz Glenda Mezarobba, pesquisadora do grupo de trabalho Ditadura e Gênero da Comissão Nacional da Verdade, que investiga especificamente a violência contra as mulheres e as maneiras em que elas foram afetadas pela ditadura militar.
A ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci, é uma delas. Ela foi presa em 1971, aos 22 anos, e os agentes envolveram sua filha Maria, então com um ano e dez meses, nas sessões de tortura contra a atual ministra. “A Maria superou tudo e hoje é uma vencedora. Eu também superei. Tive outro filho que me deu a certeza de que o que fiz foi correto e me mostrou que eu ainda era capaz de ser mãe mesmo depois de todas as torturas que sofri. Mas, ainda assim, relembrar isso é muito sofrido. Acho que cada um resolve à sua maneira. A Maria aprendeu a lidar com isso com mais liberdade e menos sofrimento. Eu, tudo o que tinha de falar, eu falei. Porque o pior não é a tortura física, mas a psicológica, a ameaça. As ameaças que faziam comigo de torturar a Maria na minha frente eram tão pesadas que talvez fossem mais fortes do que a própria tortura em si”, disse Menicucci à Marie Claire.
No artigo “As relações de gênero entre mães e filha/os na solidão da tortura: reflexão de uma experiência”, publicado na revista de estudos feministas Labrys em 2009, Menicucci reflete sobre o que viveu no DOI-CODI e sobre como o fato de ser mulher e mãe desempenhou um papel tanto na luta armada quanto na tortura que sofreu na prisão:
“O que gostaria também de discutir é a problemática do poder que está embutida na decisão de torturar a mãe na frente da filha ou a filha na frente da mãe, como uma problemática de relação de poder onde o torturador se afirma negando a existência de duas mulheres simultaneamente . O drama de Sofia eu o vivi, quando colocada nesta situação, falar ou não falar na condição de submetida a tortura física e psíquica minha e de minha filha. Se o torturador consegue sair ‘vitorioso” conseguindo informações, a tortura opera no sentido de transformar o torturado/a em sujeitos/as absolutamente degradados/das e expectador/a da própria ruína. Não falar supõe exigência sobre-humana, e é real que quase sempre ao torturado/a só resta o silêncio à custa de sacrifícios e suplícios indescritíveis. A escolha que consegui fazer pela estratégia do despistamento, não constituiu no caso o discurso da heroina. Ao contrário, constituiu no encontro com a vida de uma criança que já veio ao mundo crivada pela rotina da clandestinidade e pela busca da liberdade. (…) A tortura minha e de minha filha me mostraram a olho nu a nua e crua dimensão do terror instalado em nosso país e paradoxalmente nossa impotência frente a ele. Aqui me transformei em feminista.
(…)
Resgatar para romper com o silêncio que tem sido imposto às mulheres e desvelar todo um passado histórico na perspectiva de incorporar as experiências trabalhadas nas esferas da subjetividade, para interferir , neste mundo globalizado e transnacionalizado onde o predomínio da apatia, da imobilidade, e do conformismo são os ingredientes para o salve-se quem puder. Lembrar o passado deve ter o significado da recuperação da utopia, permeada por um pouco de loucura e devaneio, ingredientes que nos faltam para construirmos estratégias mais coletivas de resistência à internacionalização do capital e à transnacionalização da migração que transforma as relações sociais em práticas desterritorializadas e des-significadas.
Recuperar a utopia, assume o significado político de recuperar a nossa velha relação dialética entre opressão de classe que, transnacionalizável, faz esquecer, ela própria , a presença e o agravamento de velhas e novas opressões locais, de origem sexual, racial /étnica e de geração. O exercício de nossas perplexidades é fundamental para identificarmos os desafios a que merece a pena responder. Portanto, recuperar as experiências vividas no passado no nível individual e coletivo tem hoje o significado de contribuir para que, recuperando o pensamento de esquerda dialético, possamos enfrentar os desafios deste século onde os conceitos e teorias estão todos fora do lugar, para que possamos partir de algum lugar, com a habilidade desenvolvida no domínio prático ou teórico em que nos exercitamos. Finalmente, para a construção da utopia é importante que abandonemos a posição de contemplação da degradação alheia como se ela não nos dissesse respeito.”
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*Estado que continua perpetrando violências contra suas cidadãs e cidadãos: para o antropólogo Luiz Eduardo Soares, “a ditadura não inventou a violência policial, ela a qualificou, a tornou prática organizada de política de Estado.”
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