Milhões migraram para a cidade, mas muitos deixaram os filhos nos vilarejos de origem
- MACARENA VIDAL LIY Beikou 19 OCT 2015
Xiu Jiaqi tem cinco anos, um longo rabo-de-cavalo e um sorriso maroto. Hoje, porém, está um pouco mais triste do que de costume. Seu pai acaba de partir para trabalhar como operário na construção de estradas. Não vê a mãe, que trabalha em Pequim (China), há vários meses. “Ela vai voltar quando o trabalho terminar”, diz a menina, que ficou sob os cuidados de seus avós e lamenta que estes não têm condições de ajuda-las com os deveres de casa. Sua professora, Ping Xiaorong, explica: “São analfabetos”.
Zhao Yicheng, de seis anos, se senta ao lado de Xiu. Diz que não verá os pais até o Ano Novo chinês, que é a única vez em que isso acontecerá ao longo de todo um ano. Nessa ocasião, “eles vão me trazer presentes. Roupas cor-de-rosa, que é a minha preferida. E brincaremos juntos. O que eu mais gosto é de esconde-esconde”.
As duas meninas fazem parte de um fenômeno provocado pelo crescimento econômico da China. Desde 1995, mais de 300 milhões de pessoas mudaram do campo para a cidade em busca de uma vida melhor. Mas muitas delas tiveram de deixar os filhos em seus vilarejos de origem, geralmente sob os cuidados dos avós. São as crianças “deixadas para trás”: segundo a Federação das Mulheres Chinesas, uma organização oficial, elas constituem um total de 61 milhões de crianças, uma em cada cinco dentre os menores de todo o país.
No vilarejo de Beikou, em Songjiazhuang, na província de Hebei (norte da China), restam apenas 1.770 pessoas dentre os 2.600 habitantes que havia ali quatro ou cinco anos atrás. As condições de vida são rigorosíssimas: ao pé da montanha, já próximo do deserto do Gobi, a temperatura no inverno pode chegar a 30 graus abaixo de zero. A maior parte das casas não tem aquecimento nem água quente. Em algumas delas, as janelas ainda são de papel. A possibilidade de emprego é limitada: ou pastor ou camponês. E conseguir fazer uma colheita anual de cerais —painço e milho, principalmente— é extremamente trabalhoso.
“Quem sai daqui o faz principalmente pela educação de seus filhos”, explica a professora Ping. “Aqui, eles sempre têm garantido pelo menos um prato de comida. Mas ensino, não”. Em Beikou, só há ensino até o segundo ano primário; depois disso, as crianças são obrigadas a se mudar para um vilarejo maior. Aqueles que almejam uma formação melhor para seus filhos, e podem arcar com isso, precisam manda-los para uma escola particular na cidade maior da comarca. E isso custa caro. Por isso, os pais emigram, segundo Ping, para obter o dinheiro.
O problema é acentuado pela exigência do hukou, uma certidão de residência concedida no local de nascimento e sem a qual os imigrantes das zonas rurais não podem ter acesso a serviços básicos como educação e saúde. Mesmo que os pais de Beikou levassem seus filhos junto com eles para Pequim, não teriam como coloca-los na escola.
Ping cuida de 40 crianças, entre dois e seis anos de idade. No ano passado, cuidava de 60; 20 se mudaram para a cidade ou passaram para o ensino primário. A creche do vilarejo, Shibo, foi fundada por ela há seis anos, como uma iniciativa integralmente privada, diante da falta de opções para deixar seu filho, na época com quatro anos de idade. Em suas aulas, os alunos aprendem o mandarim, matemática e um pouco de inglês, que ela mesma aprendeu por conta própria.
Cerca de metade de seus alunos, diz ela, são crianças “deixadas para trás”. “Percebe-se a diferença”, afirma. “São mais retraídas. Outro dia, uma menina começou a chorar na classe porque via muito pouco o pai... Também são um pouco mais fracos do ponto de vista do aprendizado. Há casos, como o de Xiu Jiaqi, em que os avós não sabem ler nem escrever, e é preciso, então, lhe dar um apoio especial”.
De acordo com um relatório do programa beneficente Road to School, a ansiedade das crianças aumenta exponencialmente quando ficam mais de três meses sem ver os pais. Cerca de 15% das crianças “deixadas para trás” só vem os seus uma vez por ano; e 15 milhões delas só recebem um telefonema a cada três meses. São menores de idade mais suscetíveis a problemas psicológicos, abusos sexuais ou de cair nas mãos do crime organizado.
Para tentar reduzir o problema, o Governo chinês fixou como objetivo formar, em 2016, três milhões de assistentes sociais, uma profissão praticamente desconhecida até hoje no país, assinala Tong Xiaojun, professora de Trabalho Social no Instituto para a Juventude e a Adolescência da China. Um programa piloto criou uma rede de assistentes locais em 120 zonas distantes das cinco províncias mais atingidas pelo problema, o que atinge, ainda, apenas 250.000 crianças, uma quantidade ínfima.
Outras ONGs também procuram estimular a comunicação entre as crianças “deixadas para trás” e seus pais e convencer as empresas a flexibilizarem os horários de trabalho e os dias de férias, explica Pia McRae, diretora da Save The Children para a China.
Pais infelizes
Xu Yingxia, faxineira doméstica de 41 anos de idade originária de Anhui, no sul do país, também menciona a educação como o fator determinante para viver separada de seu filho. O menino, de 11 anos, é interno em Hefei, a capital de sua província natal. “Poderíamos leva-lo conosco para Pequim. Mas não seria boim para ele. Na nossa opinião, o mais importante é que ele receba uma boa educação e tenha mais oportunidades na vida”.
Para os pais, a separação também é muito difícil, algo a que cedem por não haver alternativas. Um estudo da consultoria CCR CSR registra que cerca de 80% daqueles que deixaram seus filhos “para trás” carregam um sentimento de culpa por isso. Sessenta e oito por cento afirmam não ter tempo para cuidar dos filhos; cerca de 53% alegam não ter dinheiro para bancar as despesas básicas. Algo como 30% se queixam de que na cidade seus filhos não podem ter acesso à educação e a outros serviços sociais apropriados.
Cerca de 59% desses pais dizem que “não se sentem compromissados com seu posto de trabalho” em razão dessa separação familiar. Aproximadamente 38% admitem cometer “erros frequentes” no trabalho por causa da preocupação com seus filhos. Cerca de 33% admitem estar “infelizes e desestimulados”.
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