03/09/2015 por João Aguirre
O tratamento dado à pessoa com deficiência ao longo da história remete ao grupo dos apartados, em que catalogados como loucos ou inválidos eram excluídos do sistema e, muitas vezes vítimas de opressão e crueldade. Notória é a proposta do filósofo inglês Jeremy Bentham de recolher à prisões-oficina toda sorte de mendigos, loucos, surdos-mudos, prostitutas, jovens desregradas, cegos e pessoas com deformações chocantes, o que, em sua opinião, aumentaria a felicidade dos transeuntes que seriam privados de com eles se avistarem.[1]
As normas de exclusão constituíam a tônica de antigos sistemas, cerceando direitos de estrangeiros, pessoas com deficiência, mulheres, escravos e outros que fugiam à sua pretensa normalidade. Com a Revolução Francesa consolidou-se a ideia da igualdade formal, característica do ideal liberal, porém, como ensina Fábio Konder Comparato, percebeu-se que “o espírito da Revolução Francesa era, muito mais, a supressão das desigualdades estamentais do que a consagração das liberdades individuais para todos”[2]. Nesse contexto, o Código Civil Francês de 1804, centrava-se na tutela dos interesses patrimoniais do pai de família e proprietário, como observava René Dekkers: “O Code Napoleon constitui uma ode ao bom pai de família, ao indivíduo dotado de razão, tal como o pintam o cartesianismo, a escola jusracionalista e a filosofia de Kant”.[3]
O Código Civil de 1916, alicerçado no sistema clássico do Código Napoleônico, também se destinava a regulamentar as relações patrimoniais do homem dotado de razão, catalogando os loucos de todo o gênero como absolutamente incapazes. Assim, quem apresentasse qualquer impedimento de natureza mental era enquadrado na grande categoria da loucura e não poderia praticar atos da vida civil sem estar representado. Também os surdos-mudos que não pudessem expressar sua vontade enquadravam-se nesse rol. Já as mulheres casadas, eram relativamente incapazes, enquanto perdurasse a sociedade conjugal.
Esse sistema estava em consonância com o paradigma patriarcal e patrimonialista característico da época em que entrou em vigor. Contudo, com o advento da Constituição Federal de 1988, rompe-se com esse vetusto paradigma, para se adotar outro, existencialista, ancorado na tutela da pessoa humana e de sua dignidade, pautando-se pela inclusão e respeito à diversidade. Assim, tutela-se o vulnerável, tal como a criança, o adolescente ou o idoso, em virtude de suas necessidades especiais, mas sem desconsiderar a sua singularidade. Como ensina Nelson Rosenvald, “em Estados plurais e antropocêntricos, não obstante imersos na abstração e no anonimato das massas, cada pessoa é portadora de especial dignidade, cláusula geral assecuratória de direitos fundamentais na esfera privada e salvaguarda dos direitos da personalidade que irradiam sobre sua integridade psicofísica, nas dimensões do corpo, alma e intelecto”[4].
Neste contexto de inclusão social e de tutela das situações jurídicas existenciais é que deve ser acolhido o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Fundamentada nos preceitos da Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, incorporada ao direito brasileiro pela promulgação pelo Decreto Executivo 6.949/09, a norma estatutária define a pessoa com deficiência como sendo “aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”. Esses sujeitos possuem direito à igualdade de oportunidades e não podem sofrer nenhuma espécie de discriminação (art. 4º), além de terem assegurado o exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas (art. 84).
Mais adiante, a norma do artigo 114 operou verdadeira revolução no sistema das incapacidades do Código Civil, ao revogar os incisos I, II e III de seu art. 3º e alterar a redação de seu caput, para estabelecer que apenas os menores de 16 anos sejam considerados absolutamente incapazes. Também foi alterado o texto do art. 4º do diploma civil, com a exclusão da pessoa com discernimento reduzido da previsão do inciso II, e a inserção, no inciso III, da pessoa que, por causa transitória ou permanente, não puder exprimir sua vontade.
De referidas alterações infere-se a clara intenção do legislador em retirar o emblema da incapacidade e da exclusão da pessoa com deficiência, abrindo-se caminho para o exercício pleno de sua cidadania e para a inclusão social. No entanto, grande controvérsia reside sobre a supressão de todo um sistema de proteção da pessoa com deficiência, que se espraia pela teoria das invalidades, produz relevantes efeitos jurídicos relacionados à prescrição e à decadência, expandindo-se por diversos dispositivos do Código Civil, na tutela dos interesses desse ente vulnerável.
A despeito da destacada preocupação com a simbologia representada pelos inúmeros significados do termo incapaz, o que encontra justificativa em uma história secular de preconceito e discriminação, é fato que a pretensão do legislador não passa pelo cerceamento de direitos da pessoa com deficiência que seja vulnerável, mas no reconhecimento de que essa não é a regra, mas a exceção. Na verdade, o que se pretende é reafirmar a necessidade de inclusão da pessoa com deficiência, não apenas no contexto jurídico, mas no sistema social, partindo-se do reconhecimento da igualdade, formal e material, e do exercício pleno da cidadania, reconhecendo-se a titularidade de direitos e extraindo-se a conclusão de que a “capacidade civil constitui um direito fundamental do ser humano, corolário de sua dignidade e liberdade”[5].
Partindo-se dessas premissas impõe-se uma análise das regras estatutárias consentânea com a base axiológica de nosso ordenamento, principalmente no que se refere à tutela do vulnerável e ao princípio da vedação do retrocesso. Nesse sentido, partilhamos da opinião de Flávio Tartuce, para quem “o sistema de incapacidades deixou de ter um modelo rígido, passando a ser mais maleável, pensado a partir das circunstâncias do caso concreto e em prol da inclusão das pessoas com deficiência, tutelando a sua dignidade e a sua interação social” [6].
Por essas razões, impõe-se que as normas estatutárias sejam analisadas sob à égide de um sistema jurídico que protege a pessoa vulnerável, em razão de suas necessidades especiais, mas que possui normas de inclusão e reconhece a singularidade da pessoa humana e tutele a sua dignidade.
[1]. Confira-se a agradável obra de Michael Sandel, Jusitça- O que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
[2]. Fábio Konder Comparato. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 148.
[3]. René Dekkers, “L’evolution du droit civil belge depuis le Code Napoleon”. Rev. Juridique du Congo Belgue, ano XL, 1965, 17-24, apud John Gilissen, Introdução Histórica ao Direito, 7ª ed., A.M. Espanha e L.M. Macaísta Malheiros, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 536.
[4]. Nelson Rosenvald. ”A necessária revisão da teoria das incapacidades”. IN: Direito & Justiça Social. Por uma Sociedade mais Justa, Livre e Solidária. São pAulo: Atlas, 2013, p. 147.
[5]. Nelson Rosenvald. ”A necessária revisão da teoria das incapacidades”. IN: Direito & Justiça Social. Por uma Sociedade mais Justa, Livre e Solidária. São pAulo: Atlas, 2013, p. 147.
[6]. http://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104,MI224217,21048-Alteracoes+do+Codigo+Civil+pela+lei+131462015+Estatuto+da+Pessoa+com
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