03/09/2015 por Gustavo Rene Nicolau
A Lei Ordinária n.º 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) é nova (ainda em vacatio legis), extensa e com dezenas de implicações práticas e institutos que serão aplicados no cotidiano da sociedade. É salutar aguardar um período depurador, para só então perceber os benefícios e malefícios que a nova lei trará. Mas desde já é possível antever algumas conse-quências bastante prejudiciais para as pessoas que não desfrutam da plena consciência mental e que, portanto, apresentam algum grau de prejuízo em seu discernimento.
Não desconheço a salutar tendência mundial de incluir tais pessoas no contexto normal da vida social, tentando integrá-las ao convívio da família e da sociedade, tentando – no mais das vezes – tratá-la exatamente como uma pessoa normal. Há, sem dúvida, uma série de benefícios nessa abordagem. Referida lei (art. 6º) faz justamente isso ao permitir que o deficiente possa se casar, unir estavelmente, exercer direitos sexuais e reprodutivos, decidir sobre o número de filhos, etc.
Contudo, quer me parecer que houve certo descuido do Estatuto da Pessoa com Deficiência na hora de observar que o Código Civil traz interessantes e úteis proteções para essas pessoas e que foram suprimidas, no afobamento legislativo de não chamá-las mais de incapazes. Que fique bem claro: o Código Civil continua dando proteções aos absolutamente incapazes. O que a nova lei fez foi retirar algumas pessoas do conceito de incapacidade absoluta. Com isso, retirou dessas pessoas também algumas proteções bastante especiais.
Na redação original do Código Civil, além dos menores de dezesseis anos, eram também considerados absolutamente incapazes “os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos” e “os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade”. Esses dois últimos grupos de pessoas deixaram de ser absolutamente incapazes. Aqueles simplesmente deixaram de existir enquanto estes passaram à categoria de relativamente incapazes. Ou seja, somente o menor de dezesseis anos será considerado absolutamente incapaz. O problema é que – ao deixar de receber o rótulo de “absolutamente incapaz” – a pessoa perde também uma série de prerrogativas e proteções legais.
A primeira dessas proteções é a conseqüência de nulidade absoluta do ato praticado sem o devido representante. Essa nulidade absoluta envolve uma excelente proteção, tendo em vista que o Juiz e o MP podem suscitá-la de ofício, não há possibilidade de confirmação, a sentença que a decretava gera efeitos ex tunc e – mais importante – não está sujeita a prazo, já que nulo é nulo prá sempre. Toda essa gama protetiva deixa de ser aplicada para aqueles dois grupos de pessoas que saíram da condição de absolutamente incapazes. Doravante, essa proteção toda só será aplicada ao menor de dezesseis anos, único solitário remanescente na condição de absolutamente incapaz.
Outra proteção importante que o Código Civil prevê e que deixará de ser aplicada é a previsão de suspensão/impedimento de fluência de prazo prescricional contra o absolutamente incapaz (CC, art. 198, I). Imagine, por exemplo, uma pessoa com grave deficiência mental e que conte hoje com quarenta anos de idade. Essa pessoa recebe uma herança, na qual se inclui um apartamento, o qual já está alugado. Tendo em vista que o locador do imóvel (o herdeiro) é um absolutamente incapaz, não corre prazo prescricional contra ele. Ou seja, todos os alugueis que forem se vencendo após a morte do de cujus estão com os prazos impedidos. Quando a nova lei entrar em vigor, os prazos prescricionais voltarão a correr contra essa pessoa. Doravante, só o menor de dezesseis anos é que estará protegido pela regra benéfica.
O Código Civil vai além e abre uma excepcional exceção, prevendo que também não correrá prazo de decadência contra o absolutamente incapaz (CC, art. 208). Excelente norma protetiva e que doravante só será aplicada ao menor de dezesseis anos. Imagine, por exemplo, que uma filha mate seu próprio pai. Se essa homicida tiver um irmão maior de dezesseis anos e que não tem discernimento mental, o prazo decadencial de quatro anos para se pleitear a indignidade irá correr normalmente (diferentemente do que ocorria antes do Estatuto do Idoso).
Não menos útil e interessante é a norma estabelecida no art. 1.244 do Código Civil, que proíbe a fluência de prazo de usucapião contra o absolutamente incapaz. Ou seja, se uma pessoa de má intenção começa a possuir um terreno de propriedade de um absolutamente incapaz, não correrá nem sequer um dia de prazo de usucapião. Uma vez mais, somente o menor de dezesseis anos estará protegido pela norma.
A conclusão que se chega é a de que o menor de dezesseis anos continua protegido, mas o mesmo não se pode dizer em relação aos maiores de dezesseis anos que não desfrutam da plena saúde mental. Tais pessoas conseguiram se desvencilhar do rótulo de absolutamente incapazes (pois não mais o serão), mas junto com isso perderam uma série de proteções estabelecidas pelo Código Civil.
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