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quinta-feira, 22 de outubro de 2015

“Precisamos de mais homens e mulheres desobedientes”

    Judy Chicago, no Azkuna Zentroa de Bilbao. / FERNANDO DOMINGO-ALDAMA

    A criadora norte-americana, discípula de Anaïs Nin, há 50 anos luta para que as mulheres tenham o reconhecimento de seu papel na história da arte

Judy Chicago é uma artista brigona e desobediente que nunca se resignou a aceitar a marginalização das mulheres no mundo da arte. Sua obra-prima, The Dinner Party (O Jantar, em tradução literal), uma instalação tão elogiada quanto difamada por parte da crítica, reivindica o papel de 39 grandes mulheres – como Virginia Woolf e Leonor da Aquitânia – através de uma mesa de 39 pratos com formas que lembram uma vulva. Impulsora da arte feminista na década de setenta, discípula de Anaïs Nin, seus quadros, colagens, fotografias e instalações experimentaram um notável processo de reivindicação nos últimos anos, algo do qual se mostra profundamente orgulhosa. Aos 76 anos, finalmente, chega o ansiado reconhecimento. Ela é uma das assinaturas em The World Goes Pop, mostra em cartaz na Tate Modern de Londres e que reúne obras de mulheres da pop art. E tem seu trabalho reunido e exibido no Azkuna Zentroa, em Bilbao, na Espanha, até 10 de janeiro de 2016. A exposição Por que não Judy Chicago? percorre seus 50 anos de carreira e não deixa de lado seu eterno cavalo de batalha: a luta pelo reconhecimento das mulheres artistas. Em uma das salas do centro cultural, ao lado do marido, o fotógrafo Donald Woodman, de quem nunca se separa para as entrevistas, ela responde às perguntas com seu acentuado sotaque de sua cidade natal: Chicago, claro.

O feminismo não é só a igualdade de direitos para as mulheres. O feminismo é desafiar o paradigma predominante”
Pergunta. A senhora é considerada uma impulsora da arte feminista. O que transforma uma obra de arte em uma obra de arte feminista?
Resposta. Não é preciso estar centrada na mulher nem precisa ser feita por mulheres. Deve conter um reconhecimento do gênero, deve ser filtrada por uma lente que vê o mundo de uma maneira mais holística. O feminismo não é só a igualdade de direitos para as mulheres. O feminismo é desafiar o paradigma predominante, o paradigma da dominação.
P. E, como feminista, quais deveriam ser agora as prioridades do movimento, em sua opinião?
R. Traduzir as mudanças de conscientização em mudanças institucionais. Porque é aí que não foi produzido uma mudança suficiente. E também, transformar o planeta de modo que as meninas no Paquistão não tenham medo de ir à escola porque vão receber ácido na cara ou vão ser mortas. Há tanto trabalho por fazer, e somos tão sortudas no Ocidente... Temos direitos que damos por garantidos e esquecemos como os conseguimos.
P. A senhora afirma que as mulheres foram apagadas da história da arte. Como se produz esse “apagão”?
R. Esse “apagão” não é consciente. E não direi que as coisas não mudaram: vemos mais trabalhos de mulheres, de artistas de minorias, mas principalmente em centros regionais. Nos grandes centros, que são os que entram para a história da arte, houve pouca mudança. Como ele se produz? “Ah, sim, esta pessoa deveria estar na coleção, mas não temos dinheiro suficiente”; “Não estou interessado em seu trabalho”; ou “Não se encaixa em nosso calendário” – são expressões que cobrem um vasto território. Há uma linguagem codificada no mundo da arte.

O discurso político se transformou em teatro político”
P. Nesta exposição em Bilbao, podemos ver desenhos de Fragments from the Delta of Venus and other Femerotica nos quais...
R. É um trabalho baseado na obra de Anaïs Nin, que foi minha mentora. No início de 2000 li uns artigos sobre Anaïs que me enfureceram. Além disso, fazia tempo que eu tinha interesse em criar imagens paralelas ao do falo dos tempos dos gregos, que fala da sexualidade ativa do homem. Não havia uma iconografia visual comparável na sexualidade feminina. Eu não tinha lido esses relatos eróticos que ela escreveu, Delta de Vênus. O que me lembro é que, quando foram publicados, ela estava muito preocupada se as histórias tinham ou não um olhar feminino. Esses contos contêm alguns dos primeiros exemplos do erotismo feminino. Pensei que eu poderia prestar uma homenagem a Anaïs, responder a esses artigos cruéis sobre ela escrevendo algo distinto, e também dar um novo passo no meu enorme interesse em criar imagens da sexualidade feminina.
P. Há algo especificamente diferente no erotismo do ponto de vista feminino?
R. Uma das minhas imagens favoritas de Fragmentos do Delta de Vênus é uma boca de mulher e um falo que se transforma em um morango. Quantas imagens já não vimos nos museus de corpos ou seios femininos que são peras, frutas e outras iguarias deliciosas? No ateliê, o rapaz que faz as impressões se mostrou muito incomodado com essa imagem. Ele não estava acostumado a uma representação do corpo do homem como uma fruta deliciosa.
P. Enquanto alguns ressaltam que suas obras rompem tabus e estão profundamente comprometidas com uma causa, outros as qualificam como semipornográficas. Parece-lhe estranho que, quase 40 anos depois de começar a trabalhar nelas, ainda gerem esse tipo de polêmica?

Coordenadas

Um livro. “A Language Older Than Words [Uma linguagem mais antiga que as palavras], de Derrick Jensen. Descreve o mundo em que vivemos e fala da possibilidade de mudá-lo”.
Uma ideia. “Se todas as pessoas deste planeta desfrutassem dos direitos humanos básicos, o mundo seria totalmente diferente”.
Uma certeza. “Vou morrer. Não posso acreditar que já tenha vivido tanto tempo!”.
R. A controvérsia que meu trabalho gera tem sua parte positiva e sua parte negativa. Significa que esses temas continuam vigentes. Sou muito feliz por The Dinner Party ter tido uma audiência tão grande, mas por que acaba sendo tão revelador o fato de tantas mulheres terem feitos grandes contribuições históricas?
P. A senhora apresenta a si mesma como uma mulher desobediente.
R. Sim, isso é coisa do Arakis [Xavier Arakistain, responsável pela mostra no Azkuna Zentroa], que identificou duas críticas em meu trabalho: o déficit de mulheres na arte e na cultura, e o déficit de perspectiva feminina, de experiências de mulheres expressadas artisticamente. Tornei-me desobediente porque me recusei a aceitar tudo isso. Precisamos de mais homens e mulheres desobedientes neste mundo.
P. Alguns movimentos sociais de hoje estão reivindicando a desobediência como motor da mudança. A senhora se identifica com eles?
R. Claro que sim! Será que sou menos desobediente aos 76 anos do que aos 30? Não. Na realidade, agora que sobrevivi a terem dito as piores coisas sobre mim e sobre a minha arte, que diferença faz? Pode vir, dizer que meu trabalho é horrível. Não será o primeiro nem será o último. Tanto faz! De certo modo, isso me tornou mais livre. O que aconteceu nos últimos cinco anos? Vendo como meu trabalho mobiliza as pessoas, pode-se dizer que só fez com que a desobediência seja ainda mais atraente. O [movimento] Occupy Wall Street, a Primavera Árabe, que infelizmente não acabou em primavera, senão em algo muito obscuro, os protestos da Praça da Paz Celestial... Meu coração está com essas pessoas, continuo sendo a filha do meu pai.
P. Seu pai foi vítima do macarthismo. Ainda resta algo do macarthismo hoje em dia?
R. O macarthismo foi apenas uma demonstração a mais do comportamento reacionário. Vimos muitos exemplos de terrorismo intelectual ao longo da história. O que está acontecendo com os jornalistas no Egito? O que está acontecendo com Ai Weiwei na China? Vemos muitos exemplos do Estado atuando de forma terrorista. Vocês não sofrem isso aqui? O macarthismo foi uma vergonha para os Estados Unidos. Meu pai foi uma vítima e tentaram me fazer acreditar que pessoas como ele eram terríveis. Aliás, vou dizer algo que é fundamental para entender quem eu sou. Às vezes me perguntam como encarei alguns dos obstáculos e críticas que encontrei ao longo da minha carreira. Meu pai morreu quando eu tinha 13 anos, e naquela época havia um bombardeio de propaganda anticomunista, até mesmo nas histórias em quadrinhos infantis. Tive que decidir se ignorava minha experiência com meu pai, um homem maravilhoso com uma paixão pela justiça e uma esperança de mudança, ou se acreditava no que os outros me diziam. Tive que dizer isso aos 13 anos. Que o fato de todo o mundo acreditar em algo não queria dizer que aquilo era a verdade.
P. E como a senhora vê a sociedade norte-americana de hoje?
R. É obscena. O discurso político se transformou em teatro político. Como na Europa com Berlusconi. O dinheiro entrou no mundo da arte. Quando eu era jovem, não se fazia arte para ganhar dinheiro. Hoje, o valor da arte se mede pelo que ela gera nos leilões. Devem estar brincando, né? O valor da arte reside em seu significado!
P. O dinheiro contamina tudo?
R. Contaminou o processo político, o mundo da arte... Os jovens já não sabem por que se dedicam à arte. Depois, você vai ao supermercado e vê que tem tanta coisa... E, enquanto isso, há tanta gente no planeta que não tem nada. É obsceno e doloroso.
P. Algum dos candidatos às eleições norte-americanas pode fazer uma contribuição que signifique algo para a senhora?
R. Idealmente, eu gostaria de ver uma mulher ser presidente dos Estados Unidos. Se eu acredito que Hillary Clinton vai poder mudar as coisas? Duvido. Mas eu votarei nela. Não temos alternativas reais em cena. Aqui na Espanha parece que vocês, sim, têm mais alternativas.

El País

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