Para profissionais do cinema e cientistas norte-americanos, narrativas emocionantes e identificação com personagens ficcionais nos ajudam a compreender um pouco mais sobre esperanças, aspirações, sonhos e medos diferentes dos nossos
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Cena do filme Samba (2014), produção francesa que conta a história de um senegalês que, após dez anos na França, tem que lutar para permanecer no país |
No filme mudo de Charlie Chaplin O Imigrante, de 1917, há uma cena em que ele chuta um policial da imigração na ilha Ellis, no porto de Nova York. O personagem de Chaplin, Carlitos, acabou de cruzar o oceano Atlântico num barco cheio de imigrantes europeus. Ao chegar à América, eles são agrupados atrás de uma barreira, como se fossem gado. Frustrado com o tratamento, Chaplin dá um chute rápido no traseiro do guarda.
Chaplin ficou preocupado com a cena e até perguntou ao seu diretor de publicidade, Carlyle Robinson, se ela era muito chocante para o público. Não era. As pessoas adoraram a cena, e O Imigrante foi um sucesso. O chute no traseiro ajudou o público a ter empatia com as dificuldades da vida dos imigrantes e tornou-se um marco de Chaplin.
Mas será que algo tão simples quanto ver um filme e ter empatia com personagens ficcionais pode ajudar a gerar mais compaixão e compreensão no mundo real?
O crítico de cinema norte-americano Roger Ebert achava que sim. "O propósito da civilização e do crescimento é ser capaz de alcançar e ter um pouco de empatia com outras pessoas", disse Ebert em Life Itself [“A própria vida”, em tradução livre], um documentário de 2014 sobre o fim da vida e da carreira do crítico. "E, para mim, os filmes são como máquinas que geram empatia. Permitem que você compreenda um pouco mais sobre esperanças, aspirações, sonhos e medos diferentes dos seus."
A ciência comprova a teoria de Ebert. Jim Coan, professor de psicologia e diretor do Laboratório de Neurociência Afetiva da Universidade de Virgínia, nos EUA, afirma que Ebert estava certo. Nós "imergimos na perspectiva de outra pessoa", diz Coan. "E, ao fazer isso, começamos a acumular sutilmente essas perspectivas ao nosso próprio universo... e é assim que se gera empatia."
Muitos cientistas têm estudado a conexão entre narrativa e empatia. Um estudo realizado por Paul Zak, neuroeconomista que estuda o processo humano de tomadas de decisão, e William Casebeer, neurobiólogo que estuda como as histórias afetam o cérebro humano, mostrou que ver uma narrativa envolvente pode alterar a química cerebral. Quando os participantes do estudo viam um filme sobre um pai criando um filho com câncer terminal, seus cérebros respondiam produzindo dois hormônios: cortisol e ocitocina. O cortisol gera concentração ao desencadear um sentimento de angústia, enquanto a ocitocina gera empatia ao desencadear um senso de cuidado.
Quanto mais ocitocina era liberada, mais empatia os participantes sentiam pelas personagens numa história. O estudo também descobriu que aqueles que produziam mais cortisol e ocitocina enquanto viam um filme tinham mais probabilidade de doar para caridades relacionadas ao assunto depois.
É possível que os participantes do estudo de Zak e Casebeer tenham tido empatia com as personagens do filme porque, de certa forma, se identificam com elas. Coan diz que sentir empatia por alguém que lhe parece familiar, como um amigo, uma personagem ficcional ou até mesmo uma figura pública, é algo que se faz "quase sem esforço" para a maioria das pessoas. É muito mais difícil estender nossa empatia para aqueles que parecem muito diferentes de nós. Mas Coan também diz que a empatia é como um músculo, e "quanto mais você o exercita, mais forte ele fica".
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Cena de Que horas ela volta (2015), filme que trata de conflitos sociais e preconceitos de classe no Brasil
Outro estudo, publicado em 2014 no Journal of Applied Social Psychology [Revista de Psicologia Social Aplicada, em tradução livre], descobriu que ver filmes e ler livros também pode gerar empatia por pessoas que percebemos como muito diferentes de nós. Depois de ler Harry Potter, participantes do estudo mostraram respostas empáticas maiores para com pessoas das comunidades LGBT, de imigrantes e outros grupos definíveis como "marginalizados". Os pesquisadores concluíram que se envolver com a história de Harry Potter, recheada de personagens que lutam para superar preconceitos e buscam pertencer a algum lugar, ajudou os participantes a compreenderem melhor as perspectivas de outras pessoas.
E essa compreensão é essencial na construção de um mundo de compaixão. "É fundamental a nossa necessidade de empatia, compreensão, objetivos partilhados e cooperação", disse Coan. Quando não temos essa conexão, "nosso senso pessoal é literalmente – não metaforicamente, mas literalmente – diminuído". Em outras palavras, nossa identidade é diretamente ligada às nossas conexões empáticas com outras pessoas.
Quase 100 anos atrás, Chaplin ajudou o público a simpatizar com as famílias europeias que imigravam para os Estados Unidos. Hoje, encaramos nosso próprio conjunto de questões sociais e políticas, e a imigração segue sendo uma delas. Num mundo que ainda precisa desesperadamente de tolerância, compreensão e empatia, uma noite no cinema pode ser apenas o primeiro passo nessa direção.
Tradução: Jessica Grant
Matéria original publicada no site da revista norte-americana YES! Magazine.
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