O ativismo de milionárias como a atriz Jennifer Lawrence não dilui o feminismo, como criticam alguns. Ao contrário: reforça
MARCELO MOURA E HARUMI VISCONTI
19/10/2015
A atriz Jennifer Lawrence participa da Comic-Con em San Diego, Estados Unidos (Foto: Jason Merritt/Getty Images) |
“Por que eu recebo menos que os meus colegas homens?”. A pergunta é o título de um artigo publicado em 13 de outubro pela atriz americana Jennifer Lawrence, a mais bem paga de Hollywood. A renda da atriz de 25 anos atingiu a marca de US$ 52 milhões em apenas um ano. Mesmo assim, não ultrapassou o salário dos colegas de Trapaça (2014). Jennifer soube disso por acidente, graças ao vazamento de e-mails sigilosos do estúdio responsável pelo filme, a Sony, em 2014. A própria Jennifer, no texto, explica que não precisa de mais milhões. O que ela lamenta, por meio de uma autocrítica, foi ter negociado mal e ter se esforçado demais para agradar, diferente do que seus colegas homens costumam fazer. O texto de Jennifer foi aclamado por muitos, mas também levantou algumas críticas. É razoável que uma mulher milionária, influente, requisitada e considerada referência de beleza critique o sexismo no mercado de trabalho?
Alguns críticos receiam que, ao se apropriar do discurso feminista, mulheres poderosas o desgastem, pois é difícil enxergá-las como injustiçadas. “Alguns perigos nos espreitam quando a diferença salarial (entre homens e mulheres) é tirada de um contexto de vida ou morte para servir à causa de celebridades que já ganham milhões”, afirmou a articulista Sarah Seltzer, que trata de temas como ativismo e aborto no site americano Flavorwire. Sarah lembra que, nos EUA, a diferença salarial entre os sexos afeta mais duramente as negras e as latinas, e que os dólares a menos, para essas mulheres, significa dificuldades concretas para pagar por comida, fraldas, creche e educação. “Quando mulheres poderosas e atrizes usam ideias e linguagem criadas por ativistas de campo, elas têm certa responsabilidade por transmitir toda a mensagem de que estão se apropriando”.
A atual onda de indignação de atrizes americanas com a diferença salarial cresceu desde março, com o discurso de protesto da atriz Patricia Arquette, ao receber o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante. “É nossa hora de ter igualdade de salários de uma vez por todas e direitos iguais para as mulheres nos Estados Unidos”, disse. "É hora de haver igualdade salarial de uma vez por todas e direitos iguais para todas as mulheres". Na plateia, Meryl Streep, atriz mais premiada da história, comemorou como numa partida de futebol. Mas, em redes sociais mundo afora, muitos questionaram a pertinência desse brado por igualdade vindo de uma atriz branca, de olhos claros, nascida nos Estados Unidos e premiada por seu meio profissional. A atriz disse que não havia ganho muito para atuar em Boyhood (o filme que rendeu a ela o Oscar ), mas sua negação valeu como um atestado de elitismo: "Paguei mais para minha babá e meu passeador de cachorros do que recebi por esse filme". Articulistas feministas como Amanda Marcotte, Morgan Jerkins e Roxane Gay a criticaram porque uma fala complementar, nos bastidores do Oscar, fez parecer que a discriminação contra gays e negros era um problema mais bem resolvido que a discriminação contra mulheres. Os que atacam discursos como os de Jennifer e Patricia, porém, costumam incorrer em dois tipos de erros: achar que a desigualdade é um problema só (como se fosse sempre necessário e como se fosse possível tratar de todas as desigualdades ao mesmo tempo) e subestimar o poder que mulheres bem sucedidas têm para chamar a atenção para esse tema.
Em 1994, a senadora americana Patty Murray acusou o senador Strom Thurmond de agarrar os seios dela, em um elevador do Congresso nos EUA. Hoje, Patty faz campanha pela aprovação de leis contra assédio em escolas e universidades. "Esse projeto assegura aos estudantes o direito de buscar seus sonhos livre de assédio", diz. O caso apenas mostra que, em qualquer ambiente de trabalho, por mais elitista que seja, mulheres podem sofrer pelo simples fato de serem mulheres. No mundo todo, mulheres têm menos oportunidades de ascensão profissional que homens e ganham menos pela mesma função. Em média, as atrizes americanas ganham 15% menos que seus colegas. O vazamento de e-mails da Sony Pictures, divisão de filmes da Sony, mostrou que Jennifer Lawrence e Amy Adams receberam 7% do percentual dos lucros do filme Trapaça, enquanto os atores Christian Bale, Bradley Cooper e Jeremy Renner ganharam 9%. Fora dos holofotes, a desigualdade de gêneros se repete, numa infinidade de graus.
No Brasil, apenas 6% das 64 empresas listadas no índice Ibovespa, da Bolsa de Valores, têm alguma mulher no topo da hierarquia. Mesmo nessas poucas empresas, elas costumam dirigir áreas não relacionadas ao negócio primordial da empresa, como recursos humanos e sustentabilidade. Elas comandam apenas 4% das 500 empresas listadas na Bolsa de Nova York que compõem o índice S&P500. No meio político, mulheres ocupam 10% das cadeiras do Congresso no Brasil e 19% nos Estados Unidos. Pesquisas mostram que estar no topo, como Patricia Arquette, não desautoriza o discurso contra a desigualdade. Ao contrário. Quanto maior o nível de escolaridade entre homens e mulheres, maior a diferença salarial entre os dois. Um levantamento feito pelo IBGE, em 2013, mostrou que, em geral, mulheres recebem 27% a menos que homens. Entre os trabalhadores com mais de 12 anos de escolaridade, a disparidade aumenta para 34%. “Embora a educação tenha sido a porta de entrada que permitiu às mulheres entrar no mercado de trabalho, ela constrói uma separação nítida entre os dois sexos”, afirma Hildete Pereira de Melo, professora de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Assim como o problema assume muitas formas, multiplicam-se as sugestões sobre como combatê-lo.
Chefe operacional do Facebook e nona mulher mais poderosa do mundo, segundo a revista de negócios americana Forbes, a empresária Sheryl Sandberg assumiu o papel de exemplo e ativista para a ascensão profissional das mulheres. Mãe de dois filhos, aos 45 anos, Sheryl lidera o movimento Lean In, pela inclusão de mulheres no mercado de trabalho. No Faça Acontecer - Mulheres, Trabalho e a Vontade de Liderar (2013, Companhia das Letras), a executiva diz que vencer a insegurança de ser mulher, em círculos dominados por homens, é importante para chegar ao topo. “Mulheres tendem a se arriscar menos do que os homens. Mas ser cautelosa pode te deixar para trás”, afirma. Críticos dizem que o livro é simplista e até machista. “Sheryl repete aquilo que muitas outras mulheres bem-sucedidas fizeram antes dela: culpar outras mulheres por não tentar o suficiente”, diz Avivah Wittenberg-Cox, diretora da 20-first, consultoria britânica dedicada à inclusão de mulheres em empresas.
A atenção à postura pessoal, defendida por Sheryl, encontra respaldo em estudos acadêmicos. Victoria Brescoll, professora da Universidade Yale, analisou o tempo dos discursos no Senado americano. Observou que senadores poderosos, segundo uma fórmula que considera critérios como leis aprovadas, falam mais do que seus pares com menos poder. Senadoras poderosas, no entanto, não diferem de suas colegas. Victoria sugere que, para os homens, falar mais é uma forma de ampliar a influência. Para as mulheres, falar mais pode ser contraprodutivo. Erica Dawson, professora da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, chegou a conclusões semelhantes em um estudo de 2010. “Se ela demonstra ser mais aberta ao diálogo, é tida como menos competente”, diz. “Se demonstra ser menos aberta, é tida como fria. Muitas mulheres são mais fechadas por temerem parecer ameaçadoras”, afirma. Para além da postura de cada profissional, discutem-me quais políticas públicas mais fariam para reduzir as diferenças.
O apoio à maternidade é fundamental à ascensão profissional das mulheres. No Brasil, apenas 20% das empresas ampliaram a licença-maternidade de quatro meses para seis. Nos Estados Unidos, a licença remunerada não é obrigatória. Segundo um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), 40% das mulheres que trabalham em meio período dedicam o resto do tempo a cuidar de filhos. Um estudo da Universidade Cornell indica que, se os Estados Unidos tivessem uma lei trabalhista mais favorável a famílias, como a europeia, a taxa de emprego entre americanas seria 7,2% maior. Sem apoio durante a maternidade, mulheres interrompem a carreira, ou diminuem seu empenho para construir uma.
Cotas para mulheres são adotadas em vários países. Na Bélgica, um terço das cadeiras dos conselhos administrativos das empresas deve ser ocupado por mulheres. Dinamarca, França e Índia adotam medidas semelhantes. Desde 1997, a lei eleitoral brasileira exige ao menos 30% de mulheres no quadro de candidatos a eleições proporcionais. Mesmo com a exigência, na última eleição apenas 51 deputadas foram eleitas, das 513 cadeiras na Câmara. Segundo a União Interparlamentar (IPU), o Brasil é o 124o país com mais representação feminina na política, entre 189 pesquisados, distante de África do Sul e Timor-Leste.
Eliminar preconceitos contra a mulher e abrir caminho para elas, em qualquer organização, é bom para todos. Empresas com maior diversidade de gêneros têm trabalhadores mais satisfeitos e produtivos, diz um estudo do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), conduzido pela economista Sara Ellison. As chances de encontrar melhores profissionais e melhores ideias aumentam conforme a busca ocorre em um universo maior de candidatos. Grupos diversificados – não só em gênero – são melhores para perceber problemas e propor soluções. Isso vale vale para a cúpula dos poderosos de Hollywood, como vale para o mais modesto grupo de funcionários da mais modesta microempresa.
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