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sexta-feira, 1 de abril de 2016

Lei antibullying reforça a valorização dada às crianças

Para especialistas, fenômeno tão antigo quanto a humanidade é visto de outra maneira hoje por reflexo do novo sentido que atribuímos aos jovens na sociedade

MARSÍLEA GOMBATA
4 de março de 2016

bullying, fenômeno em voga e tão polêmico, talvez seja tão antigo quanto a humanidade. O que o coloca no centro do debate, principalmente por conta da nova lei antibullying (sancionada em novembro e em vigor desde a volta às aulas), é o fato de termos como elemento novo o sentido que hoje atribuímos às crianças. A observação é feita pelo advogado e doutor em Antropologia Social, Geovanio Rossato, que escreveu o livro Educando para a superação do Bullying escolar(Edições Loyola), em coautoria com a doutora em psicologia Solange Marques Rossato.

Para o especialista, hoje simplesmente as crianças são escutadas, o que não acontecia antigamente: “Antes elas eram socialmente desprezadas, pouco valorizadas, inclusive pelos pais, pelo Estado e pela sociedade em geral. Hoje elas são socialmente valorizadas, transformaram-se em uma das grandes prioridades humanas do mundo ocidental”, ressalta.
Leia, a seguir, a entrevista com os autores do livro:
Carta Educação – O que é bullying? Como diferenciar a prática de uma brincadeira mais maldosa entre crianças ou adolescentes?
Solange Marques Rossato – O termo é inglês. Origina-se do verbo “bully” que significa ameaçar ou intimidar. Por essa razão muitos nomeiam o fenômeno de intimidação, como o fez a lei antibullying, recém-aprovada, que obriga escolas e clubes a criarem Programas de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying)”De modo genérico bullying se refere a um ato de violência, geralmente gratuito, que se dá de forma repetida, continua e intencional, pode se dar contra qualquer pessoa, em qualquer lugar, inclusive nas redes sociais.
O bullying se diferencia de uma “brincadeira” maldosa, justamente por ser “uma” brincadeira maldosa, pois se a “brincadeira” se repetir sistematicamente deixará de ser um fato “normal” e passará a causar sentimentos e consequências negativas como a dor, angústia, tristeza, revolta. O bullying não é uma brincadeira, muito menos uma brincadeira de criança. Imagine um adulto que no trabalho se enfrente sistematicamente a atitudes de zoação, atitudes que incomodam, causam sofrimento e tristeza, que prejudicam sua produtividade e traz um ambiente de desconforto à empresa. O que ocorreria? Possivelmente, o caso chegaria ao chefe ou iria parar na justiça e os responsáveis seriam punidos. Então, se não aceitamos isso para os adultos, porque temos que tolerar para com as crianças?
CE – Há quem diga que o bullying é um fenômeno tão antigo quanto o surgimento da escola e desde que existe agrupamento de crianças, existe bullying.
Geovanio Rossato – Sim, é um fenômeno antigo e, possivelmente exista desde que existe o ser humano. Mas nessa história o elemento novo está no novo sentido que hoje atribuímos às crianças. Antes elas eram socialmente desprezadas, pouco valorizadas, inclusive pelos pais, pelo Estado e pela sociedade em geral. Hoje elas são socialmente valorizadas, transformaram-se em uma das grandes prioridades humanas do mundo ocidental.
CE – Como avalia a lei antibullying, sancionada em novembro do ano passado e que institui o chamado Programa de Combate à Intimidação Sistemática?
GR – Avaliamos como positiva. Nela, como dissemos, o bullying é definido como “intimidação sistemática”. Nossas crianças, adolescentes e jovens, bem como nossas instituições sociais e escolares ganham qualidade de vida com ela. Primeiro, porque há o reconhecimento legal, em nível nacional, que existe bullying. Ela oficializa um problema, o reconhece como sério, como algo que existe na nossa sociedade e nas instituições como as escolas, clubes e agremiações recreativas, citada na lei.
Em segundo lugar, a lei é um avanço por dar às vítimas e aos que são solidários a elas, um instrumento a mais de luta, de combate e de organização. A lei ao obrigar escolas, clubes e agremiações a prevenir, diagnosticar e combater o bulllying, as vinculam como parceiras desta luta. Não poderão mais se omitir, como muitas o fazem. Daqui por diante, as citadas instituições podem até se omitir, mas terão de indenizar qualquer vítima de bullying.
CE – Como ela pode mudar a prática e dia a dia nas escolas? Quais as ações de prevenção que a escola pode adotar? E de punição?
GR – Na prática muda o “olhar” dos agentes escolares sobre o fenômeno. Eles estarão mais atentos, mais dispostos a resolver o problema, pois ele deixou de ser apenas um problema dos “outros”, daquela que não sabe se defender. Passa a ser um problema que diretamente os envolve já que a lei os tornou co-responsáveis pela violência que envolve o bullying na instituição.
Desse modo, no dia a dia da escola haverá mais ações de prevenção, de controle, mais atenção, cuidado, mais debate, mais campanhas e grupos serão criados especificamente para cuidar disto. A melhor ação de prevenção é a escola assumir que lá há bullying, até que provem o contrário. As pesquisas indicam que bulllying há em todas as escolas, o que muda é a forma, intensidade e a quantidade. Nenhum trabalho, no entanto, logrou eliminá-lo de forma completa.
Quanto à punição, no caso do bullying, ao lidar com o agressor devemos partir do princípio que ele é uma criança, um adolescente, jovem e como tal está aprendendo a viver, alguém que como todo ser humano tem o direito de errar, que tem o direito a uma segunda chance, a mudar. Há de se entender, ainda, que o agressor é  uma vítima de seu comportamento antissocial. Cedo ou tarde sua conduta trará sérias consequências negativas para sua vida, problemas em família, problemas na escola, problemas no trabalho, problemas com o Estado e com a Justiça.
CE – Qual o limite entre punir o bullying e deixar a criança se defender sozinha? O saber se defender sozinho não é, por sua vez, importante para o amadurecimento da criança?
SMR – Há quem diga que certos processos ou situações de violência ajudam, são naturais e auxiliam as crianças e adolescentes a se desenvolverem, a amadurecerem. Essa perspectiva aplicada à questão do bullying é um mito. A brincadeira é um jogo de faz de conta em que as crianças socializam-se, representam papeis sociais, de personagens bons e maus. Aprende a lidar com o medo, a ansiedade a frustração, raiva, a vencer desafios, a criar estratégias para resolver seus problemas atuais e futuros. O bullying, ao contrário, não promove nada disso, diferentemente de um conflito natural e saudável, em que as duas partes são responsáveis, tornando as crianças mais fortes para enfrentar as adversidades da vida, o bullying é uma violência gratuita e unilateral de uma parte “forte” que maltrata a “fraca”, fragilizando-a ainda mais.
CE – Qual deve ser a atitude dos pais cujo filho é alvo de bullying? A quais sinais se ater para que esse jovem não venha a ter problemas de  convívio, como aparentemente aconteceu em alguns casos chocantes, como Virginia Tech ou Realengo, no Rio?
SMR – As crianças, adolescentes ou jovens que sofrem o bullying geralmente sinalizam que algo não está bem (ainda que nem sempre consigam falar sobre isso, por acreditarem que estão sendo fracos, ou mesmo, por medo das ameaças do agressor). Podem em casa, na escola, nos clubes e outros espaços mostrarem-se mais ansiosos, dispersos, receosos, assustados, agressivos, tristes, chorosos, depressivos, quietos, se isolarem mais do que o comum, demonstrarem maior relutância em ir para a escola, realizar um excesso de trabalho escolar mais do que o corriqueiro, solicitarem dinheiro com mais frequência e em maior quantidade, apresentarem machucados e hematomas pelo corpo mais do que o trivial, dentre outros.
Os casos chocantes são os geralmente divulgados pela mídia, todavia, desconhecemos inúmeras situações que podem não acabar com a vida diretamente de muitas pessoas, mas podem causar danos que repercutem na história presente e futura desses sujeitos e dos que estão ao seu redor, como os amigos, familiares.
CE – Como deve ser a capacitação de educadores e gestores para lidar com o bullying, segundo o proposto pela lei brasileira?
SMR – De acordo com a Lei em questão “os professores e equipes pedagógicas devem ser capacitados a fim de serem implementadas as ações de discussão, prevenção, orientação e solução do problema”.
As ações requeridas dos educadores e gestores precisam estar embasadas por uma formação de consistência teórica que forneça os subsídios a fim de compreender as relações e motivações em que se configuram o bullying escolar na rotina da escola e que podem ser tomadas como naturais como brincadeiras próprias da idade, inclusive muitas vezes blindadas pelo próprio professor, que sem se dar conta acaba reforçando o comportamento de colocar apelidos, dentre outros. Para conseguir perceber para além do que aparece de imediato, na aparente brincadeira, que pode estar alimentando a intolerância, a indiferença à dificuldade do outro é preciso um olhar e formação crítica.
Isso pode contribuir para que educadores e gestores desnaturalizem explicações que colocam os fenômenos e os sujeitos como naturalmente dados, desconectando dos mesmos o conjunto de relações em que são formados (cultural, econômico, social, político).  O professor, ainda que imbuído de uma ótima formação, não tem condições de resolver sozinho, um fenômeno que é social, por exemplo.
CE – Há diferenças entre a prática e a abordagem que se faz em relação ao bullying no Brasil e em outros países, como os Estados Unidos?
GR – Sim, existe diferença. Muitos desses países já passaram da fase de reconhecer o problema e estão implementando uma variedade de projetos eficazes, aplicáveis em todo o mundo, cujo foco é desenvolver o lado emocional da criança, promovendo um sentimento de solidariedade. A Austrália, por exemplo, considera oficialmente o bullying como um problema de saúde pública, levando educadores, psicólogos e neurocientistas a criar projetos para serem aplicados na escola e em casa.
Diferentemente, no Brasil, ainda estamos na primeira fase, tomando consciência e nos sensibilizando de que há um problema a ser combatido de forma sistemática. Creio que começamos a dar os primeiros passos no sentido de tomar as devidas providências.

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