O ano marcou denúncias de assédio, mas principalmente as consequências que elas trouxeram, e as empresas já entenderam isso
por Soraia Alves
B9
26.dez.2017
Das lembranças marcantes de 2017, com certeza temos o grande número de denúncias de abuso sexual contra figuras públicas, principalmente da indústria cinematográfica. Mas na verdade, o destaque vai para os desdobramentos que essas denúncias tiveram, pela primeira vez, nas carreiras dos abusadores e o como isso representa só o começo de um combate muito mais forte ao assédio sexual nas mais diferentes áreas, incluindo política, startups de tecnologia e o mercado de comunicação.
Cronologicamente, o primeiro grande caso de exposição sobre assédio sexual do ano veio com a engenheira Susan Fowler, ex-funcionária do Uber que relatou através de um texto em seu blog o assédio sofrido de seu gerente, que inclusive utilizou o software de bate-papo da empresa para tentar convencê-la a fazer sexo com ele. Tudo isso foi levado antes por Susan ao departamento de Recursos Humanos do Uber, que simplesmente ignorou a reclamação alegando que o gerente possuía “um alto desempenho” dentro da empresa.
Com a denúncia feita publicamente e acompanhada de prints das mensagens como prova, o então presidente-executivo do Uber, Travis Kalanick, soltou uma nota de repúdio e pediu uma grande investigação na empresa. O resultado: 215 reclamações de assédio moral e sexual, e mais de 20 funcionários demitidos.
Isso somado a alguns casos de passageiras que sofreram assédio e até estupro durante corridas pelo app levantaram o questionamento sobre a segurança não oferecida pelo aplicativo e até mesmo o quanto a própria cultura do Uber (e de muitas startups) sobre encontrar brechas para “funcionar como quiser e escapar das consequências” acabou contaminando todos os setores da empresa. Daí para os debates sobre uso de dados pessoais do usuário, remuneração injusta de motoristas e o movimento #DeleteUber foi questão de tempo.
Na indústria cinematográfica, a grande repercussão foi com os mais de 82 relatos contra o produtor Hervey Weinstein, que começaram a surgir em outubro e foram expostos pelo The New York Times. Com atrizes como Gwyneth Paltrow e Angelina Jolie endossando o coro de vítimas do produtor, restou a Weinstein amargar como resultadosa demissão de seu próprio estúdio, a Weinstein Company, a expulsão da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, responsável pelo Oscar e da British Academy Film Awards (Bafta), além de ainda estar sob investigação das polícias dos Estados Unidos e do Reino Unido.
O “Weinstein Effect” trouxe uma enxurrada de denunciais sobre abusos sofridos por mulheres e homens em Hollywood nas últimas décadas: James Toback, diretor e roteirista foi acusado por mais de 38 mulheres, Dustin Hoffmann, acusado pela escritora Anna Graham Huntes de assédio quando ela tinha 17 anos, Lars Von Trierdenunciado pela cantora Björk, Ben Affleck, que ao demonstrar-se enojado com o caso de Weinstein foi recordado pela atriz Hilarie Burton de seu comportamento nada apropriado durante a participação dos dois em um programa da MTV.
Por fim, Kevin Spacey, denunciado por Anthony Rapp (“Star Trek: Discovery”), que afirma ter sido assediado por Spacey quando tinha 14 anos, e que resultou no cancelamento da série “House of Cards”pela Netflix, na suspensão de sua homenagem no Emmy e na troca feita pelo diretor Ridley Scott de Spacey por Christopher Plummer no filme “Todo Dinheiro do Mundo”.
Assediadores não passarão e as empresas já entenderam isso
O que marca todos os casos relembrados acima é que, de fato, as denúncias resultaram em uma consequência para o abusador. Essas demissões e investigações surgem como um leve sentimento de “o cenário está começando a mudar”, afinal, denúncias sobre assédio sexual em indústrias como a de Hollywood não são novidades – Roman Polanski e Woody Allen estão aí para nos mostrar que a carreira de um acusado de assédio nunca deixou de seguir bem produtiva e reconhecida.
E não, não é uma “caça às bruxas” como Allen afirmou temer ao se pronunciar sobre o caso de Weinstein. É justamente uma evolução que mexe desde a visão do que é um assediador – que vai muito além de um estranho na rua – até o estabelecimento de um verdadeiro ambiente de trabalho saudável.
Nisso, pesquisas como a “Hostilidade, silêncio e omissão: o retrato do assédio no mercado de comunicação de São Paulo”, criada pelo Grupo de Planejamento de São Paulo em parceria com a Qualibest, são essenciais para mostrar a realidade do assédio entre profissionais em diferentes áreas de atuação. Aqui, por exemplo, vimos que entre os profissionais de comunicação de São Paulo, 99% já presenciaram situações de assédio moral e 97% de assédio sexual.
E é justamente esse combate à toxidade de cada mercado que começamos a ver em 2017. A Microsoft, por exemplo, eliminou uma política interna que requeria aos funcionários solucionar denúncias do ambiente de trabalho em particular. Ou seja, se antes casos de abuso e assédio deveriam ser resolvidas a portas fechadas na empresa, agora elas podem ser levadas à justiça.
Essa cláusula é tão comum nas empresas dos Estados Unidos que a estimativa é que, aproximadamente, 60 milhões de funcionários estão sob ela e não podem recorrer a um tribunal porque suas empresas os obrigam a resolver tudo internamente.
Denúncias contra o grupo Vice Media, por exemplo, alegam que a empresa fez 4 acordos internos, pagou indenização para as vítimas e tudo ficou por isso mesmo, mostrando como a cláusula funciona na prática. A Vice afirma ter demitido os envolvidos.
Sobre as atitudes de Weinstein, Quentin Tarantino afirmou que “sabia o suficiente para fazer mais do que realmente fez”. E é isso o que grande parte das gigantes mundiais estão entendendo: elas sabem o suficiente para fazer mais.
A realidade do assédio moral e sexual no ambiente de trabalho é conhecida pelos núcleos de RH, diretorias, gerências ou pelo colega de trabalho ao lado. Mas o saber e se manter em silêncio custará cada vez mais caro às empresas.
2017 é mesmo o ano que não acabou para o combate ao assédio sexual.
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