PAULA COSME PINTO
21.12.201
Expresso
The Handmaid’s Tale chegou a Portugal esta semana e, embora já tenha falado por aqui sobre as obras de Margaret Atwood adaptadas para tv, não resisto a escrever sobre isto. Confesso-vos que quando vi o primeiro episódio tive de parar a meio porque achei que ia vomitar. A brutalidade de tudo o que é retratado nesta adaptação do livro é aterradora para qualquer pessoa que a veja, principalmente para quem nasceu mulher. Mas porque é que uma distopia nos pode chocar tanto? Porque, embora noutro contexto, uma boa parte das agressões atrozes retratadas nesta série não são mera ficção, acontecem no mundo real. Neste preciso momento em que escrevo estas palavras.
21.12.201
Expresso
The Handmaid’s Tale chegou a Portugal esta semana e, embora já tenha falado por aqui sobre as obras de Margaret Atwood adaptadas para tv, não resisto a escrever sobre isto. Confesso-vos que quando vi o primeiro episódio tive de parar a meio porque achei que ia vomitar. A brutalidade de tudo o que é retratado nesta adaptação do livro é aterradora para qualquer pessoa que a veja, principalmente para quem nasceu mulher. Mas porque é que uma distopia nos pode chocar tanto? Porque, embora noutro contexto, uma boa parte das agressões atrozes retratadas nesta série não são mera ficção, acontecem no mundo real. Neste preciso momento em que escrevo estas palavras.
Quando falo em brutalidade, não estou apenas a referir-me às inúmeras cenas de violência extrema. Sim, as cenas dos abusos sexuais dão a volta ao estômago (por mais que a realização da série as mostre de uma forma quase poética). São igualmente angustiantes as cenas de castigos físicos atribuídos às mulheres que questionam as leis do patriarcado ou as reduções maquiavélicas dos direitos humanos mais básicos do sexo feminino. Contudo, o que me parece mais perturbador é aquela noção sempre presente de que aquilo que aquelas mulheres estão a passar num futuro que devia ser distante e impossível, está na realidade a acontecer agora mesmo, nos dias de hoje. E isso é algo que não nos pode deixar indiferentes.
Exagero da minha parte? Acho que não. Aliás, basta pensar em algumas das situações a que as personagens femininas de The Handmaid’s Tale são expostas para percebermos melhor isto. Tal como escrevi por aqui há uns tempos, seguem alguns exemplos: Mulheres trocadas como mercadoria. Mulheres a quem o acesso à educação é vedado, tal como a qualquer livro (quem for apanhada a ler ou ousar dizer que sabe ler é punida) ou à simples condução de um automóvel. Mulheres divididas por classes sociais e privadas de liberdade individual. Mulheres condenadas à morte ou a tratamento de choque por serem lésbicas. Mulheres mantidas em cativeiro, mulheres subjugadas por homens, mulheres levadas a subjugar outras mulheres em prol da sua própria sobrevivência, em verdadeiros jogos de poder e lavagem cerebral. Mulheres que precisam da autorização do marido ou de um guardião legal para decidir os mais variados aspetos das suas vidas. Mulheres mutiladas genitalmente. Mulheres que são privadas de ter uma carreira ou de aceder ao mercado laboral – a não ser que sejam cidadãs de segunda, remetidas ao trabalho doméstico e de limpeza. Não vos faz soar um campainha dentro da cabeça?
Mas há mais nesta série vencedora do Emmy para Melhor Drama: preparem-se para assistir na primeira fila à vida de mulheres também privadas do prazer sexual. Mulheres traficadas e exploradas sexualmente (sim, porque embora o patriarcado defenda que a sexualidade não se deve relacionar com o pecado do prazer, é claro que não dispensa o lenocínio para dar asas aos instintos e devaneios supostamente próprios dos machos endinheirados). Mulheres que não têm acesso a dinheiro e que são eternamente dependentes dos pais e dos maridos, reduzidas à gestão da esfera familiar. Mulheres cujo principal propósito no mundo se limita à sua capacidade de procriar, independentemente de essa ser ou não ser a sua vontade individual. Mulheres abusadas sexualmente em rituais consentidos aos olhos da lei patriarcal. Tudo isto levado a cabo por um grupo extremista religioso, que faz uma extrapolação brutal do que se lê na Bíblia para justificar os seus atos e ideais, também eles brutais. Indo contra todos os acordos e tratados internacionais, e recorrendo à força e à defesa militar contra quem ali quiser meter o bedelho.
Noutros contextos, todas estas situações acontecem atualmente. A diferença é que The Handmaid’s Tale condensa-as a todas numa só sociedade, num país desenvolvido. Aliás, embora o livro não o faça, a série remete-nos precisamente para os tempos de hoje. Retrata uns Estados Unidos atuais, onde antes de um golpe de Estado a vida era pautada por coisas que nos parecem tão banais como encontros marcados via Tinder, liberdade sexual, liberdade de expressão, acesso à educação, protestos organizados na Internet e uma Constituição que previa igualdade de direitos para todos.
Ao longo de toda a narrativa, esta distopia de Margaret Atwood mostra-nos várias formas de machismo que também estão presentes nas nossas vidas, aqui e hoje. O machismo que violenta e que intimida, que exerce o poder das formas mais agressivas, mas também aquele que tem muito de paternalista e benevolente, assente em estereótipos de diminuem a mulher supostamente para o seu próprio bem, e que a levam a acreditar que aceitá-lo é uma mais-valia na sua vida. Mas que, na realidade, não passam de mais uma forma de discriminação, de acentuação da desigualdade num mundo que deveria ser par entre homens e mulheres.
Ver The Handmaid’s Tale – que estreou esta semana em Portugal no Nos Play - exige estômago. Mas é um exercício importante, diria mesmo que essencial, quando se quer perceber melhor quão frágeis podem ser a liberdade e os direitos que julgamos ter para sempre como adquiridos. Ganhem coragem e vejam.
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