O poeta romano Ovídio (século I a.C.) deixou-nos, entre tantos textos simbólicos do legado romano, um delicioso volume sobre a arte de amar.[1] O poeta sugere, aconselha, explica, avisa, promete, ensina truques: para apanhar as aves é preciso conhecer os bosques[2]. Misto de manual para conquistadores e repositório de sabedoria mundana, traduzida pela recorrente citação de passagens da cultura clássica, a Arte de Amar é um livro saboroso. Comprova-nos que os problemas e dilemas de ontem são, de algum modo, os mesmos problemas e dilemas de hoje. Nós somos os mesmos. Os conselhos de Ovídio são atemporais.
Do ponto de vista literário, o livro é um primor. Ainda que farta messe de livros do gênero tenham sido posteriormente escritos, o nosso apego ao texto de Ovídio confirma-nos um veneração circular pelo passado, cujas raízes estariam em razões de solidariedade tribal e familiar, ou mesmo “no empenho das classes privilegiadas em basear seus privilégios na hereditariedade”[3]. Mesmo diante das falsificações históricas a estilização de vida que mais nos atrai é a justamente a mais antiga[4]. Parece que ontem sempre foi melhor que hoje.
Sob um prisma de gênero, e de respeito humano, por outro lado, lido contemporaneamente, alguns conselhos de Ovídio seriam deploráveis, a exemplo da proposta do assédio sem trégua à pessoa visada[5]. O poeta romano não passaria pelo crivo dos moralistas de plantão, que negam a impossibilidade de julgarmos as pessoas fora de seus respectivos contextos. O desprezo pela benefício do retrospecto é uma covardia.
Ovídio sugere que se insinue pelas promessas: afinal, questiona, que mal poderia haver em prometer, ainda que não se tenha a intenção de cumprir a palavra[6]? O silêncio também é ardil a ser utilizado com frequência, recomenda Ovídio, para quem “muitas vezes uma boca calada tem uma voz e palavras bem eloquentes”[7]. Propõe além disso o abundante uso do choro, na medida em que “(...) as lágrimas amaciam os diamantes”[8]. Muito mais do que um artefato de retórica infantil, o choro revela a alma humana e seus dramas, especialmente quando legítimo.
O cuidado para com o espírito e para com a cultura transcende à mera preocupação para com a beleza do corpo. A estética não se revela apenas pelos traços do rosto ou por curvas atléticas, ou pela altura. Tudo que é belo é belo aos olhos e basta, mas tudo que é bom é subitamente belo, já afirmava Safo, uma mulher grega que nos deixou versos inspiradores. Segundo Ovídio, nessa mesma linha, em citação que revela o apego romano para com as qualidades do caráter e da alma:
“Para seres amado, sê amável, eis que não te será suficiente a beleza do rosto ou do corpo (...) A beleza é um dom frágil, tudo que se acrescenta ao tempo a diminui e ela se gasta com sua própria duração; nem as violetas nem os lírios desabrochados florescem sempre e, caída a rosa, só resta o espinho. Também tu terás em breve cabelos brancos, terás em breve rugas que ressecarão a tua pele. Trata de fortalecer agora mesmo o teu espírito, que há de durar e será o sustentáculo de tua beleza: ele apenas permanecerá até o fim, até a pira funerária”[9].
Com a pessoa amada Ovídio aconselha apenas as palavras doces, “a aspereza provoca o ódio e as guerras ferozes”[10]; o amor é alimentado com a ternura da expressão, que se revela na nuance da moderação da voz: os amantes sussurram. Cuidado com as palavras, insiste Ovídio, para quem deve se esconder o defeito do outro com a menção da qualidade mais próxima. Para quem ama o tempo passa de uma forma distinta: ou a espera o faz infinito, ou o encontro o faz surpreendentemente rápido. Deve, porém, a todo custo, ser aproveitado:
Pensai, desde agora, na velhice que virá; assim o tempo não passará em vão para vós. Diverti-vos, enquanto é possível, enquanto vos encontrais nos verdes anos; os anos passam como a água que escoa; nem a água que corre voltará para trás, nem as horas poderão voltar. O tempo tem que ser aproveitado: ele foge com passo veloz e por melhor que seja não é tão bom como o que o antecedeu”[11].
Ovídio nos confirma que a busca do afeto, isto é, a vontade de amar e a necessidade de ser amado, são situações comuns na experiência humana. Ocorrem no mundo contemporâneo, em qualquer latitude. Ocorreram no mundo romano, em qualquer rua da cidade das sete colinas.
Abona-se essa premissa, com Jorge Luís Borges, escritor argentino, e com Bertrand Russel, filósofo inglês. Na reconstrução de sua trajetória, e no fim de sua autobiografia, Borges lembrou-nos que lutava permanentemente, o que pareceria muito ambicioso, pela sensação de amar e de ser amado[12]. Bertrand Russell, ao contabilizar as razões pelas quais viveu, acrescentou à procura do conhecimento e a piedade pelo sofrimento da humanidade, a busca do amor[13]. É no amor, e talvez somente no amor, que alcançamos o êxtase, o deslumbramento com a vida, o que exige treinamento, resignação, autocontenção e talvez uma paciente e sugestiva leitura desse clássico romano.
[1] OVÍDIO, Públio Naso, A Arte de Amar, São Paulo: Ediouro, s.d. Tradução de David Jardim Junior.
[2] OVÍDIO, cit., p. 23.
[3] HAUSER, Arnold, História Social da Arte e da Literatura, São Paulo, Martins Fontes, 1995, p. 1. Tradução de Álvaro Cabral.
[4] HAUSER, Arnold, cit., loc. cit.
[5] OVÍDIO, cit., p. 38.
[6] OVÍDIO, cit., p. 40.
[7] OVÍDIO, cit., p. 44.
[8] OVÍDIO, cit., p. 48.
[9] OVÍDIO, cit., p. 62.
[10] OVÍDIO, cit., p. 63.
[11] OVÍDIO, cit., p. 93.
[12] BORGES, Jorge Luís, Ensaio Autobiográfico, São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 83. Tradução de Marina Carolina de Araujo e Jorge Schwartz.
[13] RUSSELL, Bertrand, Autobiography, London: Routledge, 1998, p. 9.
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).
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