E se ela deixar de me amar, e se ela perceber que não sou digno dela, e se ela cair de amores por outro, e se me deixar?
IVAN MARTINS
20/12/2017
Se você já se esqueceu, permita que eu relembre: estar apaixonado é inquietante. A gente olha aquela criatura ao nosso lado, depositária fiel ou infiel de nossos mais arrebatados sentimentos, e nos invade uma angústia inexprimível: e se ela deixar de me amar, e se ela perceber que não sou digno dela, e se ela cair de amores por outro, e se me deixar?
Estar apaixonado é bom, mas não é simples.
Não há como conciliar a ferocidade do sentimento com as certezas frágeis da racionalidade. A gente se percebe vulnerável, tem medo. É assustador que alguém possa nos causar tanta dor. Não adianta ela ou ele dizer que ama, porque sabemos que isso pode mudar. Já aconteceu antes, não? Vive em cada um de nós uma lembrança permanente de abandono. Ela contamina de sombra os momentos mais ensolarados de nossos romances, e imprime o tom subterrâneo de nossas relações.
Por isso a gente erra tanto quando ama, por causa do medo e da confusão de sentimentos. Existe o amor, mas existe também raiva de quem nos rouba de nós mesmos. Raiva que, pressentimos, ele ou ela também sente por nós. Tudo isso está junto e misturado, pulsando, e nos leva a dizer coisas estúpidas, e a fazer coisas das quais nos arrependemos. “Desculpe, eu não sou assim”, juramos. “Eu não me reconheço.” É verdade. Como ser nós mesmos, porém, se, dentro de nós, existe agora uma outra pessoa, a quem sentimos amar mais do que a nós mesmos, cuja presença e cujo afeto passou a ser mais importante que nossa própria preservação?
Mesmo que a loucura não dê as caras em seu namoro, imagine que ela está lá, escondida. O sujeito rumina, mas não fala. A moça sente, mas não deixa transparecer. A gente aprende, com o tempo, a esconder nossas bestas. Alguns nem mesmo se apercebem dela, de tão amordaçados. Mas a loucura de quem grita não é maior do que a loucura de quem delira em silêncio, devorado por dúvidas, receios e recriminações.
Ainda bem que a paixão costuma ser uma doença partilhada. Isso permite que a insegurança de um encontre abrigo na certeza temporária do outro. Eu duvido do que ela sente por mim, mas posso dar a ela a certeza trovejante do meu próprio afeto. Ninguém estará satisfeito, mas a troca declarada das certezas, e o comércio silencioso das dúvidas, permitirá que avancemos. Uma precariedade serve de abrigo a outra precariedade, sem que ninguém se aperceba quanto cada um se sente ameaçado. É um arranjo lindo e frágil. Ainda mais bonito porque tão frágil, tão humano.
Se você ainda não entendeu, permita que eu esclareça: amar dessa forma angustiada é doloroso, mas talvez seja essencial. A paixão nos põe nus diante de nós mesmos. Assegurados pelo olhar amoroso do outro, podemos confrontar nosso medo e nossa loucura, e finalmente falar sobre eles. Apenas a sensação de ser amado permite expor fraquezas e correr o risco imenso da desintegração: eu afastado de mim, sequestrado pelo outro, não mais inteiro, não mais no controle. O afeto nos ameaça, mas talvez seja capaz de nos salvar dessa armadilha insolúvel de nós mesmos.
É inquietante, é bom, e não é simples.
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